Exatos 12 meses depois da reintegração de posse do Hotel Açores, para onde a Ocupação Lanceiros Negros foi após o despejo violento de um prédio estadual na General Andrade Neves, em Porto Alegre, o clima ainda é de ressaca entre parte dos ex-moradores. Enquanto somente seis das mais de 70 famílias conseguiram obter o benefício do aluguel social, outras pessoas retornaram para suas moradias anteriores, em bairros afastados do Centro Histórico, em municípios próximos ou da casa de parentes. Pelo menos uma delas deixou o Estado.
Desde julho, GaúchaZH tenta contato com ex-moradores da ocupação indicados pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Dos quatro ouvidos pela reportagem, nenhum aceitou ser fotografado em sua nova casa — no caso de Ilda Gomes, que vive em uma aldeia indígena, o veto teria partido do cacique. Apenas duas mulheres concordaram em ser fotografadas — uma delas sob a condição de não ser identificada. Um homem agendou entrevista por duas vezes, mas não compareceu em nenhuma das ocasiões.
Em comum, os ex-integrantes lembraram da ocupação em tom nostálgico — todos usaram a palavra família para referir-se ao grupo. Depois da reintegração dos prédios que ocupavam, mostraram-se descrentes em relação ao poder público. Apesar do despejo, todos acreditam que foi uma via legítima em busca de moradia, e voltariam a participar de ocupações. Conheça as histórias:
Peça minúscula e sonho da casa própria
Observar o trabalho da máquina de lavar e secar roupas tem sido passatempo de Rosane Lima, 47 anos, desde que, meses atrás, mudou-se com dois filhos para uma peça na Rua Júlio de Castilhos, no Centro. No pequeno espaço retangular no qual acomodou um roupeiro e um beliche que divide com a filha mais nova — o filho acomoda-se no vão entre os dois móveis — há pouca margem para outro entretenimento. Testemunha das idas e vindas da família nos últimos dois anos, o eletrodoméstico que a distrai é também símbolo do futuro melhor com o qual sonha para si e para os filhos.
— Ela é meu xodó. Na época juntei R$ 2 mil para dar de entrada e pensei: vou comprar uma coisa boa. No fim da primeira ocupação, perdi quase tudo: minhas coisas chegaram quebradas, destruídas. Foi a única coisa que sobrou — conta.
Com prestações por quitar e uma ameaça de despejo iminente, a mulher que trabalha como cuidadora de idosos e vende pelúcias no Centro Histórico chegou no limite do desespero em 2016, quando a tentativa de alugar um novo quarto fracassou. Circulava em prantos quando avistou um senhor que, com dificuldades, subia a Rua General Câmara.
— Sempre tem alguém pior que a gente, né. Fiquei olhando aquele velho todo capenga, com tosse, e ofereci o braço para ajudar ele a subir — recorda.
Os minutos que seguiram até a porta da Ocupação Lanceiros Negros foram definitivos para o futuro de Rosane. Após relatar o drama do despejo ao recém-conhecido com "cara de paizão", foi convidada a participar do movimento. Semanas depois, instalou-se com os filhos em um quarto com cozinha no primeiro pavimento da casa. Além da lavadora, uma cama-baú e uma geladeira compunham sua mudança.
Em poucos meses, mais do que adaptada, passou a sentir-se como em família no local. Reuniões semanais, no entanto, alertavam para a possibilidade de uma reintegração do prédio. Antes que o pior acontecesse, resolveu salvar seu único objeto de valor: levou a máquina de lavar para um depósito. Na noite seguinte, o prédio foi evacuado pela Brigada Militar.
— Foi o pior dia da minha vida. Sempre lutei para ter o que é meu, e o plano não era ficar na ocupação: era me reestruturar e dar espaço para outras pessoas. Isso me fez ver que nós somos todos vulneráveis — diz.
Os móveis que ficaram para trás foram avariados ou se perderam no processo de desocupação. A máquina de lavar foi junto para a Lanceiros Negros Vivem, onde a família ficou até a segunda reintegração de posse.
Na saga pelo aluguel social, deparou com novas dificuldades: os imóveis pelos quais podia pagar não tinham escritura ou eram muito distantes da região central, onde se concentram as atividades da família. Acabou instalando-se no claustrofóbico quarto da Júlio de Castilhos, único que conseguiu com os R$ 600 mensais que recebe da prefeitura.
O espaço que falta dentro de casa contrasta com o vazio interior que a abateu desde agosto do ano passado. O sonho da casa própria segue de pé: junto com o filho, começou um pé de meia para investir em um imóvel.
— Quero melhorar, sair da vida que eu estou. Tem muitas pessoas que julgam (ocupações), mas não estão lá para saber como é. Nunca imaginei que eu ia ter tanta confiança, me sentir tão bem. A gente teve muito apoio. Eu tinha uma lacuna muito grande, uma solidão, que foi preenchida na Lanceiros. Isso não tem governo que tire: vamos levar para o resto das nossas vidas.
De volta às regras da aldeia
Indígena caingangue, Ilda Gomes, 51 anos, nunca se adaptou à vida em aldeias. Regras estritas, subordinação às determinações do cacique e pouca liberdade para as mulheres foram questões que, desde a mudança para Porto Alegre, há mais de duas décadas, a levaram para uma vida fora dos limites das reservas.
As dificuldades financeiras se impunham quando, morando de aluguel no bairro Cristal, a mulher que trabalha vendendo artesanato e roupas no Centro Histórico, foi abordada por um conhecido, também indígena, que falou sobre a Ocupação Lanceiros Negros.
— Às vezes, eu tirava só para pagar o aluguel. Gastava muito em passagem. Quando fui para a Lanceiros, endireitou muito — lembra.
Ao lado da estrutura que monta diariamente na Esquina Democrática, onde vende arcos em miniatura que leva três horas para confeccionar, Ilda lembra que passou por entrevistas antes de ser aceita na ocupação. Na Lanceiros, morava com três netos (o mais novo, de quatro anos) que cria como filhos, em um quarto no mesmo andar de outras famílias indígenas — mais tarde, seus irmãos também foram viver no local.
Bem mais em conta que o aluguel, a ajuda de custo mensal com a cozinha e a manutenção da casa proporcionou um respiro financeiro. Podia ir a pé para o trabalho, e as crianças passaram a frequentar escolas próximas. Suas melhores lembranças, no entanto, relacionam-se aos vínculos criados dentro da Lanceiros Negros.
— Era uma família. Até hoje eu sinto falta das pessoas que moravam ali — diz.
Assim como outras mulheres, foi acolhida pela Ocupação Mulheres Mirabal entre a saída do prédio do governo e a nova ocupação. Surpreendeu-se com a segunda reintegração de posse — segundo ela, apesar de estarem em uma propriedade privada, a maioria das famílias acreditavam que seria possível permanecer no hotel.
Abriu mão do benefício do aluguel social ("tinha gente que precisava mais", diz), e foi viver com uma filha e outros cinco netos em uma aldeia na Lomba do Pinheiro — onde estão quatro das oito famílias indígenas que moravam na ocupação. O semblante sereno esconde os percalços enfrentados desde então: levanta por volta das 5h30min para se preparar para o trabalho, que agora está a dois coletivos — e mais de duas horas — de distância de sua casa. Os conflitos entre as crianças e com a filha, que tem problemas com alcoolismo, são rotineiros.
— A aldeia não é uma coisa nossa. É muito governado pelo cacique, e tem umas regras que me preocupam: se as meninas se casarem com um homem branco, precisam deixar a aldeia. A mulher indígena perdeu seu direito. Estou lá até arrumar um canto — relata.
Com aluguel social, estudante concilia empregos, faculdade e militância
Invasão e ocupação sempre foram expressões familiares para Natanielle Almada, 25 anos. Em Viamão, onde vivia com a mãe e a filha no pátio da casa da avó, é comum conhecidos e parentes morarem em áreas invadidas. O que até então era encarado como um saída prática para o problema da falta de moradia passou a ser visto com outros olhos depois que começou a cursar Políticas Públicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cerca de quatro anos atrás.
— Nunca vi isso como um ato criminoso: para mim, sempre foi um ato de sobrevivência. De onde eu venho, há muitas áreas invadidas e regularizadas depois. Na faculdade, comecei a ter a noção do que era um movimento social organizado. Entendi que, no sistema capitalista, não tem como acabar com o déficit habitacional — diz a estudante.
Com o ingresso na militância, a ideia de deixar Viamão em busca de um lugar mais perto de suas atividades e de um bom atendimento de saúde para a mãe ganhou corpo. A aproximação com a Lanceiros Negros ocorreu quando a ocupação já estava no prédio da General Andrade Neves. Instalou-se com a mãe e a filha em um quarto de frente — de cuja janela ainda pende um pano vermelho, fragmento da bandeira do Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), na foto que abre a reportagem.
A vida se ajeitou: matriculou a filha de sete anos em uma escola próxima, e sua mãe passou a utilizar os serviços do Centro de Saúde Santa Marta. Natanielle envolveu-se na coordenação da ocupação, participando das decisões do grupo. A nova rotina pouco se alterou com a primeira desocupação — quando as três foram acolhidas pela Ocupação Mulheres Mirabal — e a posterior instalação no prédio do antigo Hotel Açores.
Ao final do período, foi uma das credenciadas para conseguir o aluguel social, e meses depois do fim da ocupação, mudou-se para um imóvel no bairro Nonoai, na zona sul da Capital. Os R$ 600 mensais pagam o aluguel e a luz. Mas, além de o imóvel ser pequeno, a distância do Centro incrementou os gastos — a filha recebeu passe livre para usar o ônibus, mas precisa ser levada à escola pela avó, que paga passagem.
Além do trabalho como bolsista em um projeto de pesquisa, passou a fazer bicos, como faxinas ou trabalhos com panfletagem, para complementar a renda. As atividades são conciliadas com a participação nos movimentos sociais, via na qual acredita como forma de efetivar mudanças em áreas que carecem do Estado:
— Minha mãe passou a vida inteira trabalhando e nunca conseguiu um espaço dela. O povo não se organiza porque não tem tempo de pensar. A luta por casa tem de ser feita através dos movimentos de luta por moradia.
Volta para a casa da mãe e dificuldade em conseguir emprego
Entre um bocejo e outro, ao telefone, André Luiz Ferraz, 27 anos, ilustra bem o sentimento que predomina desde o fim da Ocupação Lanceiros Negros, no ano passado: a falta de motivação para retomar uma rotina de trabalho e voltar a alimentar a ideia de deixar a casa onde vive com parentes em Viamão.
— Tive problemas familiares e o pessoal foi muito receptivo. Foi um tempo muito bom. Era todo mundo unido. Depois (do fim), não consegui o aluguel social. Procurei em um monte de lugar, mas todos queriam caução ou seguro-fiança. Desisti. Fiquei deprimido — relata.
Até então desvinculado de movimentos sociais, André conta que tomou conhecimento da ocupação quando passava em frente ao local. Viu nele uma oportunidade de mudar de vida: longe dos conflitos da família e mais perto de oportunidades de trabalho, pretendia estabelecer-se em Porto Alegre. Mudou-se para um quarto coletivo.
Passou a se interessar pelo movimento de luta pela moradia e a envolver-se cada vez mais com as atividades da Lanceiros Negros — além de contribuir em tarefas internas de rotina da casa. Entre uma ocupação e outra, acabou perdendo o emprego.
Ao final do segundo período, inscreveu-se para o aluguel social, mas, sem sucesso, resolveu voltar a viver com a família. Desde então, o jovem que trabalhava como auxiliar administrativo ainda não conseguiu voltar ao mercado de trabalho — conta com a ajuda da mãe e, eventualmente, faz "bicos" na vizinhança. As frustrações acumuladas viraram combustível para o desânimo constante.
— Toda essa situação, de correr atrás e não estar conseguindo... Está mais difícil de arranjar emprego. Queria ver se junto dinheiro para comprar uma casa. Não dá para viver o resto da vida embaixo da asa da mãe — diz.