Se o sol pode atravessar as aberturas de janelas nunca instaladas no prédio de 19 andares quase à esquina das ruas Marechal Floriano Peixoto e Otávio Rocha, no centro de Porto Alegre, por dentro do "Esqueletão" a sensação é de estar numa câmara fria: quase sem incidência de luz natural nos primeiros pavimentos, o local tem corredores gélidos, onde o frio é acentuado pela umidade. Apesar do clima hostil e das infraestrutura precária, há décadas, o prédio é usado pelo comércio e por pessoas que, sem alternativas, viram na construção inacabada a possibilidade de um lar.
— Para mim, é a minha moradia, a minha casa. Quantas pessoas estão na rua e querem fazer as coisas, mas não têm condições? As autoridades deviam se preocupar com hospital, saúde pública. Mas não sabem construir, só destruir — desabafou Pedro Valmor Pires, 55 anos.
Depois de morar embaixo dos trilhos da Trensurb e, mais tarde, na rua, foi no "Esqueletão" que o papeleiro natural de Faxinal do Soturno encontrou, seis anos atrás, um refúgio para viver com a companheira Simone e os dois filhos em idade escolar. Chama atenção o capricho do pequeno apartamento de um dormitório, transformado em dois por um armário, onde vive a família: as paredes da sala ganharam um tom esverdeado — o quarto do casal é cor de rosa —, contrastando com um armário laranja onde guardam os utensílios de cozinha. Na sala, um filtro de sonhos pende do teto perto da mesa onde a família faz as refeições. Uma estante acomoda um aparelho do som com grandes caixas sonoras, enquanto nos quartos há TVs: uma grande, de tela plana, para os pais, e duas menores, de modelo tubo, para os filhos. Para amenizar o frio, o chão recebeu carpete.
— Vão vindo as coisas e nós vamos ajeitando: areia, tinta, portas, encanamentos e outras coisas consegui no carrinho (recolhendo papel). Tudo eu quem fiz — orgulha-se Pedro que, sem pagar aluguel, consegue manter Simone, que não trabalha devido a problemas de saúde, e os dois filhos, somente com o que ganha como papeleiro.
A habitação de onde, perto do meio-dia, exalava um cheiro bom de comida caseira, é uma das dezenas de unidades usadas como moradia — há salas utilizadas como depósitos por ambulantes que atuam no Centro Histórico. O vaivém nas escadarias do prédio era intenso no fim da manhã desta terça-feira (7), quando pelo menos meia dúzia de ambulantes saíram com produtos de salas do primeiro andar.
Puxando um carrinho repleto de garrafas térmicas, Derli Gonzaga Pereira, 62 anos, também deixava o local a caminho do trabalho. O homem que vende café no camelódromo é dos veteranos do "Esqueletão": mudou-se para o local em 1992. Depois de saber por ambulantes dos espaços vazios da edificação, instalou-se em uma unidade no fim do corredor do primeiro piso.
— Eu tinha me separado e precisava de um lugar para trabalhar e morar. Mas não tinha como pagar as duas coisas — lembra.
A outra ponta do mesmo corredor onde vive Derli é dos espaços mais precários do prédio. Devido a uma infiltração, o chão está empoçado — também há água acumulada no piso do térreo —, e o acesso às portas daquele lado dá-se nas pontas dos pés. Recém-chegado no prédio, Odair José dos Santos, 33 anos, mudou-se para um espaço naquele trecho há cerca de quatro meses. Paga R$ 480 por mês pelo local, que utiliza como moradia provisória: o homem, que vive de compra e venda de ouro no Centro, pretende alugar um imóvel em melhores condições na Região Metropolitana.
— Tenho que trazer meu filho para morar comigo, mas aqui eu não quero. É ruim por causa da umidade — diz.
Desocupação deverá ser feita com "equilíbrio", diz MP
Moradia de Pedro, Simone, Derli, Odair e outras dezenas de pessoas, o Esqueletão pode ser colocado abaixo: o Ministério Público (MP) protocolou um pedido de demolição do prédio no fim de julho. A solicitação foi feita pelo promotor de Justiça Heriberto Roos Maciel, usando como base uma vistoria técnica apresentada pela prefeitura em junho. O laudo indica que o lugar possui “grau de risco crítico” de incêndio e desabamento — um engenheiro consultado por GaúchaZH assegurou que o prédio não apresenta problemas que justifiquem sua demolição.
A preocupação com o prédio inacabado não é de hoje: o MP acompanha o caso desde 2009, quando instaurou um inquérito civil para avaliar as condições da estrutura. Em 2011, foi ajuizada uma ação civil pública contra o município, o edifício e seus ocupantes por não ter um Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI) e Carta de Habitação (documento expedido pela prefeitura que atesta que um imóvel está em condições para ser usado) — sem esta carta, a ocupação dos lojistas e dos moradores é considerada irregular perante às autoridades.
— Demos o tempo mais que necessário para conseguir uma medida útil de preservação da vida e do local. Não temos outra solução. O prédio está firme até agora, mas se amanhã uma parte da estrutura desabar, todos seremos responsáveis por isso — diz o promotor, que observa a demolição como a única alternativa. — A vida útil de um prédio é de cem anos. Se retomássemos a obra, teríamos uma vida útil de 30 ou 40 anos, no máximo.
A Associação dos Proprietários e Inquilinos da Parte Térrea da Galeria XV de Novembro afirma que foram feitas várias intervenções no prédio para manter a estrutura adequada para habitação. Eles aguardam a intimação judicial para apresentar uma proposta de conservação, e se colocam à disposição para arcar com os custos de uma vistoria mais detalhada da estrutura.
Caso o juiz aceite o pedido do MP e determine a demolição, o promotor afirma que o processo de desocupação deverá ser feito com “equilíbrio”. Ele afirma que há um grupo de trabalho envolvendo o MP, a Defensoria Pública, o Judiciário e a Brigada Militar para discutir e organizar desocupações.
— Queremos evitar quaisquer atos violentos e proteger as crianças de lá. Nossa preocupação é evitar novas tragédias — disse.
Os moradores e a prefeitura devem ser intimados pelo juiz responsável, Eugênio Couto Terra, para se manifestarem em uma nova audiência, a ser marcada nos próximos meses.