Ponto de referência e um dos únicos refúgios para mulheres vítimas de violência em Porto Alegre, a Ocupação Mulheres Mirabal, no Centro Histórico, corre o risco de ser despejada. Dona do imóvel ocupado em 2016, a Inspetoria Salesiana Pio X pediu à Justiça, em 1º de junho, o cumprimento da reintegração de posse do local. Formado há mais de seis meses por integrantes do governo do Estado, da prefeitura de Porto Alegre e por coordenadoras da ocupação, um grupo de trabalho para buscar alternativas ainda não conseguiu uma solução para realocar a Mirabal, que atualmente tem oito mulheres e 10 crianças abrigadas.
— Estamos em alerta. Nosso prazo já se esgotou, e os salesianos não aceitam conversar conosco. Além disso, as possibilidades oferecidas pelo grupo de trabalho sempre foram muito limitadas. Não nos foi dada nenhuma opção caso a gente não aceite o que foi oferecido, que não é o ideal — diz Victoria Chaves, uma das coordenadoras da ocupação.
No fim de maio, esgotou-se o tempo dado pelos salesianos para que as mulheres entregassem a casa, localizada na Rua Duque de Caxias. Dias antes, a Defensoria Pública pediu a prorrogação do prazo por mais 90 dias e, em 1º de junho, os proprietários solicitaram ao Judiciário que cumprisse a reintegração do imóvel. Os dois pedidos estão nas mãos do juiz Oyama Assis Brasil de Moraes, da 7ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, que deve avaliar o caso nos próximos dias. Em nota, os salesianos argumentaram que o local deve ser destinado a outro projeto social e consideram que é "chegado o momento de reaver o imóvel e viabilizar as condições para desenvolver o projeto do Lar Dom Bosco". Disseram, ainda, que "desde o primeiro dia da invasão, em diversas ocasiões e oportunidades, mantivemos contato com o movimento e suas representantes".
Criada em 2016, a Mirabal acolhe e oferece assistência psicológica e jurídica, além de realizar oficinas e debates com mulheres que sofreram agressões ou ameaças. Pelo menos 70 pessoas já estiveram abrigadas e mais de 200 acessaram os serviços oferecidos no local, que conta com a ajuda de dezenas de voluntários para se manter. O serviço atende a uma demanda crescente: somente em 2017, os processos judiciais de feminicídios aumentaram 36% no Rio Grande do Sul, e os casos de mulheres assassinadas por questão de gênero saltaram de 142 para 194.
A Mirabal já teve sua importância reconhecida por órgãos como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Arquidiocese de Porto Alegre e a prefeitura municipal. A Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Porto Alegre costuma enviar para lá casos que entram em lacunas da rede de proteção da Capital, quando há a impossibilidade de atender mulheres de outros municípios ou não há vagas nos abrigos públicos. Apesar disso, as negociações para garantir sua continuidade estão emperradas.
Desde que a Justiça definiu pela reintegração de posse em favor dos salesianos, no segundo semestre do ano passado, são discutidas alternativas para que o trabalho possa continuar. Mas questões relacionadas à rotina e à atuação específica da Mirabal (que fez um CNPJ e trabalha para se constituir como organização não-governamental) viraram impasses na busca de uma nova sede. Há aproximadamente dois meses, a coordenação da ocupação apresentou uma lista de 12 imóveis públicos atualmente desocupados que teriam condições de receber os trabalhos, mas as sugestões foram rejeitadas pela prefeitura e pelo Estado. Somente semanas atrás surgiu a primeira alternativa concreta: o prédio da Escola Benjamin Constant, na zona norte da Capital, foi oferecido pelo governo do RS à prefeitura — que deverá cedê-lo às mulheres.
A Mirabal precisa ser uma porta aberta, e o Centro é o melhor lugar para isso. Temos gente chegando todos os dias, pedindo ajuda. Acolhemos todas, vítimas de múltiplas violências
VICTORIA CHAVES
uma das coordenadoras da Mirabal
Em visita ao local, no entanto, a coordenação do movimento identificou problemas estruturais, que teriam de ser sanados com verba própria, inexistente. Além disso, a localização levantou questões sobre a segurança das abrigadas — que precisam manter sua identidade preservada. Por estar em uma região próxima de pontos de tráfico de drogas, a circulação exigiria cuidado redobrado.
— A gente precisa de um espaço seguro, de convívio. Passamos um ano e meio construindo esse lugar. Aqui, as mulheres têm liberdade: vão no súper, levam as crianças na escola. A Mirabal precisa ser uma porta aberta, e o Centro é o melhor lugar para isso. Temos gente chegando todos os dias, pedindo ajuda ou até um prato de comida. Acolhemos todas, vítimas de múltiplas violências — explica Victoria.
Segundo a coordenação da ocupação, as crianças em idade escolar foram matriculadas em instituições do Centro e as mães acessam os serviços de assistência social da região. Além disso, as doações que ajudam a manter a casa provém quase em sua totalidade de colaboradores do entorno: mercados, feiras, restaurantes, coletivos e vizinhos contribuem com mantimentos.
Coordenador do grupo de trabalho que discute as alternativas para a Mirabal e proprietário do imóvel oferecido ao grupo, o Estado respondeu, por meio da Secretaria da Modernização Administrativa e dos Recursos Humanos (Smarh), que "entregou uma lista de imóveis disponíveis, e que poderiam atender as necessidades do Mirabal", e que "na próxima semana haverá uma reunião do Grupo de Trabalho, juntamente o grupo Mulheres Mirabal, para tratar sobre o assunto". GaúchaZH solicitou a listagem, mas a pasta disse que os locais não poderiam ser divulgados, "por questões de segurança".
Estado tem de ceder imóvel à prefeitura, que fará convênio
Secretária de Desenvolvimento Social da prefeitura, também envolvida nas negociações, Denise Russo admitiu que tem havido dificuldades no encaminhamento de soluções.
— O município não tem imóvel que possa ceder. O Estado é quem vai indicar e transferir para a prefeitura. Mas esses imóveis estão em desuso, não estão nas mesmas condições dos novos, e não foram projetados para este tipo de atendimento. Existe um esforço e uma vontade de todos, mas o avanço é difícil por essas questões — avaliou.
O Estado é quem vai indicar e transferir (o imóvel) para a prefeitura. Mas esses imóveis estão em desuso, não estão nas mesmas condições dos novos, e não foram projetados para este tipo de atendimento
DENISE RUSSO
Secretária de Desenvolvimento Social de Porto Alegre
Segundo a titular do Desenvolvimento Social, a regularização da Mirabal como organização não governamental também é uma questão a ser resolvida antes de uma possível transferência do serviço para outro lugar. Por questões legais, o Estado tem de ceder o imóvel à prefeitura, e o município precisa realizar um convênio por meio de edital para que ele seja utilizado pela Mirabal, que passaria a integrar a rede de proteção à mulher da prefeitura. Apesar da burocracia, que promete adiar ainda mais a resolução do problema, não acredita que a ocupação esteja ameaçada.
— É um serviço importante, mas assim: digamos que não tivesse a Mirabal. Depois do atendimento no Centro de Referência, íamos tentar colocar essas mulheres na rede (de acolhimento existente). Tenho certeza de que (os salesianos) não vão fazer isso (despejá-las). Em última hipótese, vamos colocá-las para dentro da rede. Estamos conversando. É importante essa ampliação — disse.
Atualmente, apenas uma casa de acolhimento integra a rede de proteção à mulher da prefeitura: a Viva Maria, cuja localização não é divulgada, conta com 14 vagas para abrigar mulheres vítimas de violência — e crianças até 12 anos. O encaminhamento ao local, administrado pela Secretaria de Saúde, é feito pelo Centro de Referência de Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência (Rua dos Andradas, 1643), vinculado à Coordenadoria da Mulher.
Antes de ser ocupado, o imóvel de três andares e pertencente à Inspetoria Salesiana São Pio X estava fechado há três anos. Após uma marcha realizada pelas mulheres da ocupação em maio, integrantes do Movimento foram recebidas pelo secretário-executivo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), padre César Leandro Padilha, e pelo arcebispo metropolitano de Porto Alegre, dom Jaime Spengler, que prometeram acionar órgãos da Igreja que atuam na área de direitos humanos para auxiliar nas negociações. Procurada pela reportagem, a Arquidiocese de Porto Alegre manifestou-se, em nota, dizendo que está acompanhando "com atenção e solidariedade os referidos fatos" e participando do grupo de trabalho criado pela Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos Humanos. "Enfatizamos que o imóvel objeto de reintegração não pertence a Arquidiocese de Porto Alegre, mas à Instituição religiosa com administração e patrimônio próprio", dizia o texto.
QUEM FORAM AS MIRABAL
— Patria, Minerva e Antonia María Teresa Mirabal eram irmãs que viviam na República Dominicana.
— Conhecidas como irmãs Mirabal, formaram um grupo de oposição conhecido como Las Mariposas.
— As três foram presas e torturadas, mas continuaram lutando. Em 25 de novembro de 1960, ao comando de Rafael Leónidas Trujillo, foram interceptadas quando seguiam para visitar os maridos na prisão, sendo estranguladas e apunhaladas até a morte.
— Elas foram assassinadas por se oporem à ditadura de Trujillo.
— As mortes causaram comoção na República Dominicana, levando o povo a se levantar contra o regime de Trujillo, que acabou assassinado em maio de 1961.
— Em 1999, a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou que 25 de novembro é o Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra a Mulher, em homenagem ao sacrifício de Las Mariposas.