Parte das famílias removidas na noite de quarta-feira (14) do prédio público onde estava a Ocupação Lanceiros Negros convive com a falta de condições mínimas de abrigo e com a incerteza sobre onde passará a noite nesta quinta.
Encaminhados a um ginásio no Vida Centro Humanístico, no bairro Sarandi, cerca de 20 integrantes precisam deixar o espaço até o fim do dia. O abrigo improvisado foi oferecido pelo Governo do Estado na noite anterior. Três caminhões de frete com pertences recolhidos pela Brigada Militar – como geladeira, fogão, cobertas, roupas – foram deixados no local. Ao chegar lá, descarregaram em um ginásio frio e sem estrutura para cozinhar ou tomar banho.
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– Não tem como eles ficarem aqui, nós não temos estrutura, não tem segurança. Aqui não é um abrigo. Nós temos atividades todos os dias aqui que são abertas à comunidade. Tinham nos avisado que viriam só as 20 pessoas, não sabíamos que viriam os pertences também – explica o coordenador do Vida Tiago Machado.
Segundo ele, a orientação foi passada pela Secretaria da Modernização Administrativa e dos Recursos Humanos do RS. Após a ação de reintegração de posse, as famílias dizem ter sido informadas de que seriam acolhidas em um local com estrutura, com cama, comida e banho. Segundo o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), a promessa era de que ficariam no abrigo o tempo que fosse necessário.
Chegando ao Vida, porém, homens, mulheres e adolescentes foram recebidos com dois litros de leite, um galão de 20 litros de suco em pó e duas panelas pequenas de massa com salsicha. Essa foi a única refeição oferecida pelo Estado. Alimentos para o café da manhã e almoço do dia seguinte não chegaram, e nem devem chegar, segundo o MLB.
– As famílias estavam bem, bem alojadas, tinham emprego, rotina, as crianças iam para a aula e agora o Estado joga elas num depósito? – questiona Priscila Voigt, uma das coordenadoras do MLB.
O movimento relata, também, que durante toda a ação de reintegração de posse o Conselho Tutelar não esteve presente, e que as famílias só foram procuradas na manhã de quinta-feira. Não foi oferecida outra alternativa de abrigo, afirmam os integrantes.
De acordo com o MLB, as demais pessoas que viviam na ocupação foram acolhidas por movimentos parceiros até que encontrem moradia, ou foram para casa de amigos e familiares. Parte das famílias está abrigada na Ocupação Mulheres Mirabal – que também é ponto de coleta para doações às famílias despejadas, como alimentos, material de higiene e roupas.
Para Elisa Torelly, advogada do movimento, o cumprimento da ordem reintegratória contraria a recomendação do Conselho Estadual de Direitos Humanos:
– Pela ótica de integridade humana, física, o Estado não poderia fazer isso. É preciso garantir o reassentamento digno às pessoas, o que não aconteceu.
Elisa explica que, como a reintegração foi uma liminar e o processo ainda não foi julgado, há chance de recorrer após a publicação da sentença.
Na tarde desta quinta-feira, as pessoas que estavam no Vida Centro começaram a deixar o local. Segundo a organização da ocupação, o destino de mulheres e crianças da Lanceiros Negros será a Ocupação Mulheres Mirabal, no bairro Centro Histórico.
Contraponto
O que diz o Estado:
Por meio de nota, a Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos Humanos (SDSTJDH) afirmou que "desde o início do processo, se preocupou com o destino e o acolhimento" das famílias da ocupação, destinando o Vida Centro Humanístico para o abrigo provisório.
"O centro é um local seguro, com banheiro, cozinha e refeitório. Cerca de vinte famílias foram até o centro após a reintegração. Mas, por vontade própria, decidiram não passar a noite lá, deixando apenas seus pertences, e não informaram para onde foram", diz um trecho do comunicado.
De acordo com a secretaria, nesta quinta, os moradores foram até o local para recolher os seus pertences e não aceitaram ajuda para transportar os objetos.
O que diz a PGE:
A Procuradoria-Geral do Estado (PGE-RS) informa que o Estado não tem a obrigação legal de garantir a relocação dos moradores da ocupação após a retirada das famílias do local. Conforme a procuradoria, a Justiça do RS decidiu que a garantia de uma nova moradia para as pessoas da comunidade não deve ser condicionada ao processo de reintegração de posse. Na decisão, a 19ª câmara Cível do Tribunal Câmara de Justiça do Estado diz que "existem inúmeras outras famílias que padecem das mesmas carências e aguardam concretização de seus anseios mediante polícias públicas que atendam igualitariamente a todos".