Nunca antes na história deste país alguém que foi presidente da República acabou na prisão, condenado criminalmente. Que tenha acontecido com Lula é uma das amargas ironias destes 518 anos de Brasil e, goste-se do homem ou não, um momento funesto da vida nacional.
Não porque a prisão seja uma injustiça, mas porque ela macula e dá um fim ao mesmo tempo trágico e melancólico à mais extraordinária e romântica das trajetórias políticas brasileiras. Sepulta, sob a campa vulgar do poder como arena das transações para proveito próprio, a utopia da regeneração nacional pela troca, nas rédeas do país, da elite decrépita pelas classes desfavorecidas, exploradas, esfomeadas.
Dos 37 presidentes que o Brasil teve, nenhum veio tão de baixo. Nenhum foi tão popular por tanto tempo.
Nenhum esteve à frente do país durante um período tão luminoso, em que parecia mesmo que estávamos a caminho de virar uma potência.
Nenhum foi tão conhecido, admirado, premiado e festejado no Exterior.
— Esse é o cara. Eu adoro esse cara. É o político mais popular do mundo — disse famosamente o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ao cumprimentar Lula em uma reunião do G20, em 2009.
Era uma história boa demais para ser verdade, a do retirante nordestino miserável que, depois de perder um dedo na fábrica, de desafiar a ditadura comandando greves colossais, de fundar um partido que levantava a bandeira da ética, de ser derrotado três vezes consecutivas, consegue chegar à Presidência, se reeleger e fazer sucessor.
Era uma história boa demais para ser verdade, e no final a história se esboroou.
O baluarte da ética, sabe-se hoje, comandou um governo erguido sobre o alicerce do toma-lá-dá-cá e das propinas.
O líder carregado nos braços do povo virou um político acuado, capaz de entregar-se a uma manobra desesperada e desastrada de fugir à Justiça pela via de um cargo no ministério.
O campeão da aprovação popular, capaz de eleger um poste para o seu lugar, viu o poste que ele indicou encaminhar o país para a crise, afundar na impopularidade e perder o cargo num processo de impeachment.
O ícone que podia ostentar a glória de ter sido preso por contestar um regime criminoso virou ele próprio um criminoso condenado e, agora, um presidiário inglório, carimbado com a pecha da corrupção.
O campeão de votos tornou-se praticamente carta fora do baralho nas eleições deste ano, enquadrado na Lei da Ficha Limpa.
Lula nasceu Luiz Inácio da Silva, em 1945, no agreste pernambucano. O pai, Aristides, havia deixado a mãe, Eurídice, conhecida como Lindu, e os outros seis filhos, algum tempo antes.
Depois de mudar-se para Santos (SP), de casar-se novamente e de ter outros dois filhos homens, Aristides retornou a Pernambuco, ocasião em que Lula, então com cinco anos, conheceu o pai. Desse reencontro entre Aristides e Eurídice nasceu Ruth, a oitava filha.
Era uma vida de pobreza extrema, a da família. Em 1952, Lindu decidiu ir para São Paulo. A jornada, na caçamba de um caminhão, levou 13 dias. Na metrópole, a família ocupou um cubículo insalubre nos fundos de um bar. Para ajudar a mãe, o pequeno Lula vendia amendoim, cocada e laranja. Aos 14 anos, conseguiu vaga numa metalúrgica em São Bernardo do Campo. Trabalhava 12 horas por dia e, à noite, frequentava um curso de torneiro mecânico. Tinha 19 anos quando o colega com quem dividia a prensa, em uma fábrica de parafusos, cochilou por causa do excesso de trabalho. A máquina decepou o dedo mínimo da mão esquerda de Lula.
Enveredou pelo sindicalismo meio por acaso. Só queria saber de bailes e futebol, mas um de seus irmãos, Frei Chico, simpatizava com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e indicou Lula para fazer parte da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, em 1969. Lula achava que era uma perda de tempo, mas entrou. Pouco mais de cinco anos depois, presidia o sindicato.
Em plena ditadura, sem esperar que os trabalhadores aparecessem, começou a organizar assembleias nas portas das fábricas. Em 1979, convenceu 200 mil operários a cruzar os braços. No ano seguinte, liderou uma famosa greve de 41 dias, que lhe custou um mês na prisão. Libertado, a primeira coisa que fez ao chegar em casa foi abrir a gaiola e libertar os passarinhos.
As greves lideradas por Lula no ABC tiveram um alcance muito maior do que a simples luta por salários e melhores condições de trabalho. Desde 1964, o movimento sindical se encontrava sufocado pelo militares. Ao se insurgirem, os metalúrgicos soltaram um grito de protesto que foi a primeira grande manifestação popular por democracia. Estava lançada a semente que levaria à agitação pelas eleições diretas e ao fim do regime dos generais. À frente desse movimento, Lula se destacava já como figura nacional e internacional.
Projetado pelo movimento operário, puxou a criação de um partido. Era o PT, uma novidade no panorama político nacional, uma agremiação esquerdista que sintetizava sua proposta com o mote "trabalhador vota em trabalhador". A estreia do partido nas urnas, em 1982, foi modesta: uma única prefeitura (Diadema), oito deputados federais, 12 estaduais e 78 vereadores. Lula concorreu ao governo de São Paulo, ficando na última colocação, com 1.144.648 votos. Em 1984, subiu nos palanques das Diretas Já, junto com Tancredo Neves, Franco Montoro e Leonel Brizola.
Candidatou-se à Presidência em 1989, na primeira eleição direta desde o golpe de 1964, e surpreendeu. O PT era ainda um partido minúsculo, mas Lula chegou em segundo lugar, com 31,5 milhões de votos contra 35 milhões do vencedor, Fernando Collor, um ex-aliado do regime militar. A campanha foi dura, especialmente no segundo turno, com os fortes ataques de Collor, que chegou a acusar o adversário de tentar convencer uma ex-namorada, Miriam Cordeiro, a praticar aborto.
— A verdade nua e crua é que quem nos derrotou, além dos meios de comunicação, foram os setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade — disse Lula após a eleição.
Em 1994 e 1998, voltou a candidatar-se e voltou a perder, nas duas ocasiões para Fernando Henrique Cardoso. Mas o partido que criara e liderava era agora uma potência, com uma militância realmente militante, como nunca se vira no país. A imagem de radical, alimentada pelos adversários e pelo próprio PT, no entanto, parecia condenar Lula às sucessivas derrotas.
E então ele decidiu mudar. No pleito de 2002, apresentou-se com uma nova roupagem, a do "Lulinha Paz e Amor", moderado e amigo dos negócios. O Partido Liberal indicou o empresário e senador José Alencar para candidato a vice. A chapa Lula-Alencar prometeu manter a política econômica de Fernando Henrique Cardoso - metas de inflação, câmbio flutuante e responsabilidade fiscal.
E, assim, como num conto de fadas, o retirante virou presidente. Obteve a cifra recorde de 52,7 milhões de votos (61,3% do total de válidos) contra 33,3 milhões (38,7% do total) dados a José Serra (PSDB).
A impressão era que viviam-se anos de ouro. O país chegou a crescer 7,5% em um único ano, o desemprego quase inexistia, o escândalo da desigualdade amainava, a popularidade do mandatário batia recordes. O Brasil estava na moda, era levado a sério, conquistava o direito de sediar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada. A reeleição, em 2006, foi quase um passeio. No segundo turno, Lula fez mais de 60% dos votos válidos, derrotando um cinzento e apagado Geraldo Alckmin (PSDB).
O problema é que, sob essa superfície reluzente, uma outra narrativa, sombria, tenebrosa, se desenrolava: a dos esquemas de corrupção. Para chegar ao poder e se manter nele, Lula se aliara a políticos e partidos que representavam muito do que ele sempre combatera. Em 2005, reportagem da revista Veja mostrou um vídeo no qual um alto funcionário dos Correios, Maurício Marinho, filiado ao PTB, embolsava propina. O fato provocou a ira de Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB e, até então, aliado de Lula.
O petebista interpretou aquele episódio como uma tentativa de parte do governo e do PT de esvaziar o PTB na partilha de cargos e verbas. E partiu para o ataque: em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, trouxe a público, pela primeira vez, o "mensalão", esquema de propina para compra de votos da base aliada no Congresso. Toda a cúpula do PT foi envolvida no escândalo. Lula escapou. Em pronunciamento, no auge da tensão, afirmou:
— Me sinto traído.
Mas o mensalão era coisa pouca, comparado com o que viria depois: a Operação Lava-Jato. Iniciada de forma modesta em 2014, a investigação revelou o pagamento de bilhões de reais em propina, colocou atrás das grades nomes destacados da política e do empresariado e, desta vez, comprometeu Lula, acusado de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e ocultação de patrimônio.
O dia 16 de março de 2016 marcou um ponto de viragem na imagem pública do petista. Pressionado pelas investigações, temeroso de ser preso (havia sofrido uma condução coercitiva dias antes), aceitou o cargo de ministro da Casa Civil no governo de Dilma Rousseff, o poste que elegera, numa tentativa de alcançar foro privilegiado e fugir da alçada do juiz Sergio Moro. Foi uma grande trapalhada. Sob um bombardeio de críticas, chegou a assumir o posto, apenas para ver a posse suspensa pelo STF no dia seguinte.
Dali em diante, o que se veria seria um Lula cada vez mais acuado. Em julho do ano passado, no caso do triplex do Guarujá, Moro condenou-o a nove anos e seis meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Em janeiro último, em Porto Alegre, três desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região julgaram recurso do petista e foram além de Moro: aumentaram a pena de prisão para 12 anos e um mês.
A defesa do ex-presidente recorreu ao STF por meio de um habeas corpus preventivo, cujo julgamento na última quarta-feira resultou em quase 11 horas de um intenso debate jurídico. Por 6 votos a 5, o pedido foi negado, selando o destino do petista.
Lula, correligionários, admiradores, intelectuais e até mesmo alguns oponentes denunciaram na condenação judicial do petista uma perseguição política. Verdadeira ou delirante, essa interpretação assenta pelo menos em um dado real: o pernambucano tornou-se alvo do ódio renhido de parcelas poderosas da sociedade e do PIB brasileiros. Ele continuava a ser visto como uma grande ameaça e era o candidato mais bem posicionado para a eleição presidencial deste ano. Era um símbolo a destruir, um ícone a derrubar, um mito a desmistificar.
Depois da condenação em primeira e segunda instâncias, essa meta parecia prestes a ser cumprida. A ida de Lula para trás das grades tornou-se uma questão de tempo. E esse tempo, para o bem e para o mal, chegou.