Vizinhos do Gauchão traz uma série de reportagens de torcedores que moram nas cercanias dos estádios onde os jogos da competição são disputados. Ao longo do campeonato, GZH contará a história de personagens que, pela proximidade, tiveram a sua vida envolvida pelo clube do coração. Mais do que uma relação de vizinhança, criaram um sentimento de pertencimento. Nesta sexta-feira (8), confira a história de Dona Dora, dona de um bar na frente da Arena e que mora no local há 60 anos.
Quando Zaida Xavier, a popular Dona Dora, abriu pela primeira vez a porta da sua casa na Avenida Padre Leopoldo Brentano não existia Humaitá. Seus pés pisavam na terra. Chegar naquela parte de Porto Alegre era uma viagem. O Grêmio ainda engatinhava a sua vida no Olímpico. Se nos dias atuais uma multidão se aglomera em frente de sua casa/bar para provar seus dotes na cozinha, há 60 anos quando desembarcou naquela região com o marido não tinha sequer um vizinho para dar bom dia.
Os primeiros a chegarem foram os vizinhos, a conta gotas. Demorou um tempo para o chão batido ceder espaço ao asfalto. Depois, Dora, 80 anos, abriu um comércio para vender frango assado. Por fim, acompanhou da janela de casa a colocação do primeiro ao último tijolos usados para erguer a Arena.
Não foi apenas o entorno que ganhou novos ares. Sua moradia também se expandiu. A casa diminuta, em que a cama ficava no quarto e o roupeiro na sala por falta de espaço, desapareceu. No lugar, uma espaçosa residência de três andares.
— Sou a primeira moradora da rua. Morava com minha sogra quando ganhei a casa da Cohab. Era pequenininha. Era um areal. Foram 30 anos comendo areia —inicia suas reminiscências, sentada em uma cadeira dos tempos do olímpico.
A peça foi adquirida pelo marido Waldyr — falecido há três anos. O casal compartilhava do mesmo gremismo. O neto Diego conta que ele e o avô não perderam uma partida sequer do Grêmio na Azenha entre 1994 e 1997. Era jogo atrás de jogo. Título em cima de título. Quando Dora e marido ficaram raízes no que viria a ser o Humaitá, nunca imaginaram que do outro lado da rua estaria o estádio gremista.
A notícia de que teria um vizinho ilustre trouxe uma combinação de sentimentos. O mais evidente era a alegria de ter o clube do coração do outro lado da rua. Existia, também, um certo alívio. A eles se juntou o senso de oportunidade.
— Se falava que o Carnaval viria para cá. Eu não queria, é muito barulho madrugada adentro. Não esperávamos que o Grêmio viesse para cá. Foi muito bom para a região, deu trabalho para todos — comenta.
Com o início das obras da Arena, seu tino lhe disse que o público havia mudado. O frango assado seguia no cardápio, mas trabalhadores baianos contratados para erguerem o estádio eram dotados de um apetite diferente. O negócio se expandiu para um boteco.
— Aquela gente bebia. Nossa — exclama.
Enquanto ouviam da sacada o grasnar da betoneiras, o grito das Esmerilhadeira e a sinfonia dos outros equipamentos de construção, Waldyr brincava que um dia iria abanar para Dora lá do estádio. Acostumada com devaneios do marido, pouco deu bola. Pois, dito e feito. Sem o mesmo tato para os negócios, ele não se prendia ao balcão e ia aos jogos. Da esplanada sempre acenava para a esposa.
Há 11 anos, a Arena e os pastéis de Dona Dora bombam. O quitute faz os torcedores suspirarem antes e depois das partidas. A dela e da família vai das 7h da manhã às 4h da madrugada em dias de grandes jogos. O espaço também é alugado para grupos de gremistas fazerem um "esquenta" antes de a bola rolar, com direito a churrasco.
Apesar da idolatria por Renato Portaluppi e a paixão pelo Grêmio, ela não se desconecta do empreendimento. Certa feita a convenceram a ir assistir ao Grêmio das arquibancadas. Não conseguiu ficar até o final do jogo. Não por culpa do time.
— Disse que ia ficar até sair o primeiro gol. Quando saiu o gol do Grêmio, voltei para cá. Tinha de atender os torcedores no fim do jogo — enfatiza.
Dora sublinha que o Grêmio e a receita do aclamado pastel de carne estão no sangue, mas com uma diferença. Milhões sabem como manter o gremismo por gerações e gerações, mas só Dora e seus descendentes sabem a receita do pastel vendido do outro lado da Arena.