Uma sessão, apenas para convidados, de O Próximo Passo (2022) abre nesta terça-feira (21) a edição gaúcha do 13º Festival Varilux de Cinema Francês, que neste ano se espalha por 49 cidades de 23 Estados, além do Distrito Federal. No RS, as sessões serão realizadas de 23 de junho a 6 de julho em Porto Alegre (Cine Grand Café e Espaço Bourbon Country), Caxias do Sul (Sala Ulysses Geremias) e Pelotas (Cineflix Shopping Pelotas).
Ao todo, serão exibidos 17 filmes inéditos, mais a comédia Papai Noel É um Picareta (1982), de Jean-Marie Poiré, e As Aventuras de Molière (2007), de Laurent Tirard e Ariane Mnouchkine, em homenagem aos 400 anos do nascimento do dramaturgo autor de Tartufo, O Avarento e O Doente Imaginário.
A seleção inclui o vencedor do Festival de Veneza de 2021, O Acontecimento, de Audrey Diwan; o ganhador do Grand Prix no Festival de Cannes do ano passado, Um Herói, que é dirigido pelo iraniano Asghar Farhadi e ambientado no Irã, mas tem produtora francesa; e o 22º longa-metragem do prolífico diretor François Ozon, Peter von Kant, releitura de um clássico do alemão Rainer Werner Fassbinder. Em cena, poderemos ver ícones como o ator Daniel Auteuil (em O Destino de Haffmann) e as atrizes Fanny Ardant (Os Jovens Amantes) e Isabelle Adjani (Peter von Kant). Alguns dos realizadores e dos artistas vieram ao Brasil para divulgar a mostra, em eventos no Rio e em São Paulo, como os diretores Eric Gravel (Contratempos), Diastème (O Mundo de Ontem) e Régis Roinsard (Esperando Bojangles, que traz no elenco Virginie Efira, de Benedetta, e Romain Duris) e o ator Gilles Lellouche, presente em três títulos: O Destino de Haffmann, Golias e Kompromat.
3 perguntas para Emmanuelle Boudier
Por e-mail, a codiretora e cocuradora do Festival Varilux concedeu a seguinte entrevista:
Fora a contemporaneidade, o que norteou a seleção dos filmes deste ano? Existem denominadores comuns?
O cinema francês, mais do que qualquer outro, tem uma capacidade singular de se inspirar em tudo o que movimenta a nossa sociedade. Nossos medos, nossas desordens, mas também nossas esperanças e nossas alegrias refletem-se nele, de forma fiel, exagerada ou minimalista, mas sempre criativa e surpreendente, porque diversificada. Os filmes da edição 2022 apresentam aos espectadores uma visão de mundo sem dúvidas menos leve do que o habitual: a pandemia, a guerra às portas da Europa, as migrações forçadas, as ameaças ambientais, a ascensão dos extremos… Mas essa urgência os torna ainda mais ricos, mais relevantes, mais inspiradores.
Como veem o mercado brasileiro, cada vez mais dominado pelos filmes de super-herói, pelas franquias e afins, para o cinema francês? Qual é a estratégia para garantir visibilidade e retorno?
O cinema francês e o cinema independente em geral têm dificuldades em se recuperar neste período pós pandemia. Os exibidores, mas particularmente os que têm programação voltada para esse nicho, estão sofrendo muito. E a conversa com os grandes circuitos é sempre mais complicada porque a prioridade é sempre dada aos blockbusters norte-americanos, que conseguem se impor com investimentos maciços em divulgação e propaganda. Tendo esses desafios em vista, algumas estratégias estão sendo adotadas pelo festival, como um investimento maior — mesmo que forçosamente limitado — em comunicação e divulgação, além do apelo da programação, sempre diversa e robusta, navegando entre dramas, comédias, suspense e outros gêneros. Criamos a melhor seleção possível porque sabemos que somente dessa maneira temos chance de reconquistar o público e, portanto, de ajudar também as salas de cinemas e convencê-las a dar mais visibilidade ao cinema independente.
Se o espectador só pudesse assistir a um filme, qual seria a sua indicação?
Essa questão dificilmente pode ser respondida, porque todos os filmes são de grande qualidade e porque é precisamente a diversidade que faz a riqueza da nossa cinematografia. Não tem um melhor do que o outro, todos são diferentes e para todos os gostos. Pessoalmente, como mulher, mãe e parisiense, fiquei muito emocionada pelo filme Contratempos, de Eric Gravel, que dá uma visibilidade bem-vinda a todas as mulheres que lutam diariamente para garantir o bem-estar — e muitas vezes a sobrevivência — da família. Premiada no Festival de Veneza, a atriz Laure Calamy é absolutamente excepcional! Quero destacar também o filme O Próximo Passo, de Cédric Klapisch, que foi o maior sucesso de bilheteria na França no primeiro semestre de 2022, por ser um filme universal e cheio de esperança. E para terminar, quero citar o muito romântico Esperando Bojangles, de Régis Roinsard (o mesmo de A Datilógrafa e Os Tradutores), que inclusive inspirou a identidade visual do festival deste ano.
Oito destaques
Por cortesia da organização do Festival Varilux, já pude ver sete dos 17 filmes inéditos. Na lista abaixo, misturo recomendações com títulos que despertam a minha curiosidade. Confira datas, horários e endereços das sessões em Porto Alegre (o Espaço Bourbon Country só divulgou a grade da primeira semana). E veja a programação completa no site variluxcinefrances.com/2022/
O Acontecimento (2021)
De Audrey Diwan. Na França de 1963, Anne (Anamaria Vartolomei), uma estudante promissora, engravida. Em nome de seu futuro, ela decide abortar, desafiando a lei em uma jornada solitária. Sessões no Cine Grand Café: 30/6, às 16h30min, e 5/7, às 16h30min. Sessões no Espaço Bourbon Country: 27/6, às 16h20min, e 29/6, às 21h.
Por que ver: recebeu o Leão de Ouro de melhor filme e o prêmio da crítica no Festival de Veneza, em 2021, e ganhou o troféu César de atriz revelação.
Contratempos (2021)
De Eric Gravel. O filme acompanha a saga de Julie (Laure Calamy), que luta sozinha para criar seus dois filhos pequenos no subúrbio e manter seu emprego em Paris, como camareira-chefe em um hotel. Quando ela finalmente consegue uma entrevista para um cargo correspondente a seu currículo e as suas aspirações, eclode uma greve geral, paralisando o transporte. Sessões no Cine Grand Café: 26/6, às 16h40min, 29/6, às 19h, e 6/7, às 21h25min. Sessões no Espaço Bourbon Country: 25/6, às 16h20min, e 28/6, às 18h40min.
Por que ver: ganhador dos troféus de melhor direção e melhor atriz na mostra Horizontes do Festival de Veneza, o filme é muito eficiente em mostrar um problema universal — o da precarização do trabalho — por uma perspectiva individual e muito envolvente ao intrincar os dramas pessoais de Julie aos contratempos coletivos. À segurança e à sensibilidade da direção de Gravel, soma-se o notável desempenho de Calamy, que dosa confiança, fragilidade, perspicácia e um pouco de desatino.
O Destino de Haffmann (2021)
De Fred Cavayé. Na Paris de 1941, durante a ocupação alemã, François Mercier (Gilles Lellouche) é um homem comum que sonha em ter um filho com a esposa, Blanche (Sara Giraudeau). Ele trabalha para um talentoso joalheiro, o Sr. Haffmann (Daniel Auteuil) — que é judeu. O recrudescimento da perseguição nazista força a partida da família de Haffmann e um rearranjo das relações de poder na joalheria, com consequências cada vez mais complicadas. Sessões no Cine Grand Café: 23/6, às 18h20min, 2/7, às 21h30min, e 5/7, às 14h30min. Sessões no Espaço Bourbon Country: 24/6, às 18h40min, e 27/6, às 21h.
Por que ver: se a origem teatral engessa um pouco o filme do ponto de vista formal, por outro lado, permite que o trio de atores se destaque em uma trama sobre o duelo ganância versus integridade no contexto de uma ferida francesa não cicatrizada — a do colaboracionismo na Segunda Guerra Mundial.
Golias (2022)
De Frédéric Tellier. Intercala e entrelaça os rumos de três personagens. France (Emmanuelle Bercot) é uma professora de educação física durante o dia, mantém outro emprego à noite e é uma ativista contra o uso de agrotóxicos, que fizeram adoecer seu marido e pai de sua filha. Patrick Fameau (Gilles Lellouche) é um solitário advogado parisiense que se tornou especialista em direito ambiental. Mathias (Pierre Niney) é um brilhante lobista que trabalha em prol dos interesses dos produtores de diesel e da indústria agroquímica. Sessões no Cine Grand Café: 25/6, às 21h20min, 1/7, às 14h30min, e 3/7, às 17h55min. Sessões no Espaço Bourbon Country: 24/6, às 21h.
Por que ver: Golias retrata um debate cada vez mais quente, o dos agrotóxicos, defendidos por uns em nome da produtividade e da rentabilidade, condenados por outros por causa dos riscos à saúde e ao ambiente. Com paciência, vai construindo uma atmosfera sufocante, marcada pelas imagens contrastantes da elite e da classe trabalhadora e por alguns acontecimentos inesperados, ainda que o quadro geral seja claro. Vale destacar as atuações do trio principal, sobretudo a de Niney (vencedor do César de melhor ator por Yves Saint-Laurent). É impressionante como seu personagem consegue dobrar verdades sem sequer piscar.
O Mundo de Ontem (2022)
De Diastème. Elisabeth de Raincy (papel de Léa Drucker), presidente da República, optou por não disputar a reeleição. Três dias antes do primeiro turno, ela fica sabendo por seu secretário-geral, Franck L'Herbier (Denis Podalydès), que um escândalo do Exterior atrapalhará sua sucessão por um nome de seu partido e dará a vitória ao candidato de extrema-direita, xenófobo de carteirinha. Sessões no Cine Grand Café: 25/6, às 15h, 1/7, às 19h30min, e 5/7, às 20h40min. Sessões no Espaço Bourbon Country: 24/6, às 14h.
Por que ver: o filme toma emprestado o título da autobiografia publicada por Stefan Zweig à época da Segunda Guerra, mas seu tema é atualíssimo — e não só na França. Os bastidores podem não ser tão movimentados quanto os da série House of Cards, mas, em diálogos afiados, o filme pergunta: quais são os limites na política? O que pode e não pode em nome de um suposto bem maior? É possível vencer sem sujar as mãos?
Peter von Kant (2022)
De François Ozon. Um dos mais ativos e diversificados diretores franceses, autor de 8 Mulheres (2002) e Jovem e Bela (2013), Ozon retoma aqui o universo do dramaturgo e cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), que se projetou ao filmar Gotas d'Água em Pedras Escaldantes (2000). Peter von Kant é baseado em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, mas trocando o gênero do protagonista. A sinopse diz o seguinte: Peter von Kant (Denis Ménochet) é um diretor de cinema de sucesso e mora com seu assistente Karl, a quem gosta de maltratar e humilhar. Sidonie (Isabelle Adjani), uma grande atriz que foi sua musa por muitos anos, apresenta-o a Amir (Khalil Ben Gharbia), um belo e modesto jovem. Peter se apaixona por Amir e se oferece para dividir seu apartamento com ele e ajudá-lo a entrar na indústria cinematográfica. Sessões no Cine Grand Café: 23/6, às 16h30min, 28/6, às 14h30min, e 30/6, às 19h. Sessões no Espaço Bourbon Country: 24/6, às 16h20min.
Por que ver: no site ScreenDaily, o crítico Jonathan Romney escreveu que o filme "se prova tanto autenticamente Fassbinderiano quanto completamente Ozonesco em suas sensibilidades irônicas". E tem Isabelle Adjani, musa do cinema francês.
O Próximo Passo (2022)
De Cédric Klapisch. Elise (Marion Barbeau), uma jovem e elogiada bailarina clássica, machuca-se em uma apresentação após flagrar a traição do namorado. Apesar dos especialistas dizerem que ela não conseguirá mais dançar, ela vai batalhar para se recuperar, buscando novos rumos no mundo da dança contemporânea. Sessões no Cine Grand Café: 26/6, às 18h35min, 1/7, às 21h25min, 2/7, às 16h40min, e 6/7, às 15h. Sessões no Espaço Bourbon Country: 25/6, às 18h45min.
Por que ver: Klapisch é o realizador de O Albergue Espanhol (2002) e Bonecas Russas (2005). Sucesso de público na França — já soma mais de 1 milhão de espectadores —, O Próximo Passo tem sido apontado por críticos como um de seus melhores trabalhos, se não o melhor. Embora perca o foco de vez em quando e não desenvolva bem todos os personagens e conflitos, o diretor, quando se concentra no corpo dos atores e dos dançarinos, oferece momentos ora radiantes, ora comoventes, ora engraçados, ora sublimes (vide a surpreendente cena da dança no vento). E é um filme que vem bem a calhar, com seu espírito otimista e a busca de Elise por "uma segunda vida".
Um Herói (2021)
De Asghar Farhadi. O diretor é iraniano e a história se passa no Irã, mas Um Herói entrou na seleção porque a produtora e distribuidora, a Memento Films, é da França. Na trama, Rahim (Amir Jadidi) está na prisão devido a uma dívida que não conseguiu pagar. Durante uma licença de dois dias, ele tenta convencer o seu credor a retirar a sua queixa mediante o pagamento de parte da quantia. Mas as coisas não correm de acordo com o plano… Sessões no Cine Grand Café: 28/6, às 18h40min, e 1/7, às 16h55min. Sessões no Espaço Bourbon Country: 27/6, às 18h25min.
Por que ver: com dois Oscar de melhor filme internacional no currículo — A Separação (2011), também vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, e O Apartamento (2016) —, Farhadi é hábil em lançar mão dos códigos do suspense, do policial e do drama de tribunal para refletir sobre a sociedade contemporânea em seu país e retratar conflitos familiares. Em Um Herói, o cineasta apresenta uma história kafkiana, mas com um protagonista ambíguo. Aliás, seus personagens não são mocinhos nem vilões, mas pessoas que, diante das circunstâncias, do azar, da pressão ou das oportunidades, podem conquistar ou falhar. Nós, como espectadores, somos instigados a nos posicionar em situações complexas nas quais todos os envolvidos têm um pouco de razão — logo, injustiças são frequentes, ainda mais em um mundo ultramidático e apressado como o atual.
O irônico é que o próprio Asghar Farhadi viu-se no meio de um furacão por causa de Um Herói. Uma ex-aluna sua, Azadeh Masihzadeh, acusou o diretor de plagiar um documentário que ela produzira, chamado, em inglês, de All Winners, All Losers.