Há exatos 10 anos, no dia 8 de maio de 2013, logo após as 8h, o Rio Grande do Sul ficava estarrecido com uma informação:
— Estamos realizando a Operação Leite Compen$ado porque encontramos algo grave no produto, encontramos ureia com formol, substância cancerígena condenada há muito tempo pela Organização Mundial da Saúde.
As palavras do promotor Mauro Rockenbach, da Promotoria Especializada Criminal de Porto Alegre, foram ditas ao vivo na Rádio Gaúcha, causando espanto nas demais autoridades e consumidores não só do Estado, mas do país inteiro. Para mascarar a adição de água durante o caminho entre o produtor e a indústria, transportadores adicionavam ureia — que contém formol — com o objetivo de obter maior lucro.
O total de leite movimentado pelo grupo, no período de um ano de apuração, chegou a 100 milhões de litros distribuídos em várias cidades gaúchas, catarinenses e paulistas. Cerca de 100 toneladas de ureia — apreendidas na ação realizada no Norte, Noroeste e Serra — foram adquiridas pelos envolvidos para utilização na prática criminosa. Desta forma, estava deflagrada a primeira das 12 fases da Operação Leite Compen$ado, considerada um marco na mudança de qualidade da produção leiteira.
De 2013 a 2017, os investigadores estiveram em 85 municípios e realizaram 82 prisões, totalizando 275 denúncias do Ministério Público (MP), com 25 condenações, mas ainda há processos em andamento. Além disso, indústrias e responsáveis por postos de resfriamento — locais onde o leite era encaminhado pelo transportador do produtor rural antes de chegar nas fábricas — assinaram Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), se comprometendo em manter em dia programas de qualidade de leite e derivados.
O TAC tem como objetivo cessar a prática irregular e firmar compromissos com os envolvidos de melhorias e de indenização, evitando ação judicial. No caso da Leite Compen$ado, os valores pagos pelos investigados, por meio dos TACs, somam R$ 12 milhões, que foram revertidos em bens para órgãos fiscalizadores.
Operação Leite Compen$ado 1
Rockenbach e o promotor Alcindo Bastos da Silva Filho, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) — Segurança Alimentar, receberam em fevereiro de 2013 literalmente duas páginas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) sobre possível fraude no leite.
Situação inusitada, ficamos incrédulos e espantados. Iniciamos do zero após receber duas páginas sobre uma possível fraude
PROMOTOR MAURO ROCKENBACH
Fevereiro de 2013
De posse disso, iniciaram uma investigação com monitoramento, escutas telefônicas e mais documentos. A Justiça autorizou mandados de prisão e buscas. Assim, no dia 8 de maio daquele ano foi desencadeada a Operação Leite Compen$ado 1. Houve um total de oito prisões, todos suspeitos ligados a transportadoras.
Silva Filho lembra que, até então, não havia suspeita da participação de produtores e indústrias. Segundo ele, os investigados eram transportadores e responsáveis por postos de resfriamento do leite. As ações ocorreram em Ibirubá, Horizontina e Selbach, no Noroeste, Tapera, no Norte, e Guaporé, na Serra, onde uma indústria foi interditada.
Para Silva Filho, havia falhas graves que distanciavam o produtor da indústria, fazendo surgir as figuras intermediárias e sem regras básicas, no caso, os transportadores. Dos presos na primeira fase da operação, a maioria pertencia a essa categoria que não tinha vínculos com o setor industrial. O promotor diz ainda que a remuneração deles dependia do volume do produto e, naquela época, a fiscalização era insuficiente.
Produtores e indústrias envolvidos
Rockenbach e Silva Filho relatam que, com a apuração dos fatos, depoimentos e novas provas, outros suspeitos foram incorporados a esta lista de adulteração do leite visando apenas o lucro, mesmo em detrimento da saúde dos consumidores.
Era um convite à fraude. Sem medidas básicas e fiscalização ao alcance das irregularidades
PROMOTOR ALCINDO BASTOS SILVA FILHO
Maio de 2023
Com as novas fases da operação, foram investigados, inclusive com prisões, produtores de leite e proprietários de indústrias, além de químicos e outras pessoas ligadas ao setor. Durante cinco anos, o MP e o Mapa estiveram em 85 municípios do Estado, apreenderam 98 veículos e realizaram 82 prisões. Os promotores denunciaram 275 pessoas nas 12 edições.
E não foi por menos: além da ureia com formol, que é cancerígeno, em várias fases da investigação foram comprovadas várias irregularidades, entre elas, água retirada de poço artesiano sem qualquer tipo de tratamento, leite azedo ou podre e até com larvas, bem como com sal, água oxigenada, soda cáustica, fungicida e ainda coliformes fecais no produto usado para fabricar queijo. Havia até venda por R$ 10 mil de receita de como adulterar leite entre os envolvidos.
Processos e condenações
De um total de 275 denunciados pela fraude do leite, 25 foram condenados, de produtor até donos de indústrias, mas a maioria eram transportadores. Alguns deles estão recorrendo em segundo grau no Poder Judiciário. Também ocorreram 27 absolvições de réus e, atualmente, há 18 processos judiciais em andamento.
O 2º vice-presidente do Tribunal de Justiça (TJ) e presidente do Conselho de Comunicação Social, desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, diz que o Judiciário está sempre atento às políticas e ações que visem a garantir o bem-estar social em geral e, em particular, a saúde pública. Por isso, as medidas adotadas permitiram que as ações investigatórias sobre as irregularidades no leite fossem bem-sucedidas.
Segundo Silveira, todas as decisões dos magistrados, durante as 12 fases da operação, foram autônomas. Ele ressalta que, quanto mais independente e qualificado o magistrado, maior será a garantia da cidadania. Por exemplo, a juíza da 2ª Vara Judicial de Teutônia, Patricia Stelmar Netto, em 2014, chegou a afirmar na sua decisão que "se tratava de um envenenamento em massa, um crime hediondo".
Atualmente, a magistrada, que segue na mesma comarca, diz que ainda há processo tramitando com 69 fatos denunciados sobre uma das fases da Leite Compen$ado, sendo a principal acusação a adição de ureia no leite. A ideia é que uma sentença seja proferida ainda no final deste ano.
Segundo ela, após os fatos terem sido divulgados na época, coube também ao Poder Judiciário verificar, o que de fato se comprovou, um aumento no rigor da fiscalização, o que resultou ainda em ações positivas para a comunidade.
Via assinatura dos TACs, o MP informa que foram obtidos cerca de R$ 12 milhões por parte dos investigados. Esses valores foram revertidos em bens para ações fiscalizatórias, como por exemplo, viaturas e equipamentos em geral para a Brigada Militar, Polícia Civil, Secretaria Estadual de Saúde, Instituto-Geral de Perícias (IGP), Secretaria Estadual da Agricultura, entre outros.
O juiz da comarca de Ibirubá, Ralph Moraes Langanke, condenou no final de 2013 seis acusados envolvidos na primeira fase da operação, a que foi realizada há exatos 10 anos. Os réus receberam penas máximas que chegaram a 18 anos e seis meses de cadeia, mais multas. Entre as provas utilizadas, tanto nas denúncias dos promotores, quantos nas sentenças judiciais, estão dezenas de escutas telefônicas.
Em uma delas, os suspeitos debocham ao afirmarem que laticínios aceitavam até "leite pegando fogo":
Em outra escuta, autorizada pela Justiça, envolvidos na fraude ressaltaram que o leite estava podre:
O legado
Os promotores Rockenbach e Silva Filho, responsáveis, junto com o Mapa, pelas 12 fases da Operação Leite Compen$ado, revelaram que — devido aos riscos à saúde — deixaram de tomar leite na década passada. Mas, por outro lado, informaram que não houve mais denúncias significativas desde então.
Foram apenas dois casos desde 2017, mas envolvendo apenas pouca adição de água ao leite, o que não renderia uma investigação ou uma nova fase da operação. Segundo o MP, dois fatos isolados, sem alterar a composição do produto e que sequer são detectados nas análises devido à pouca quantidade de água. A promotoria confirmou que transportadores, já notificados, estavam cometendo estas irregularidades para cobrir os gastos com combustíveis.
Cheguei a tomar só café preto e comer pão sem derivados do leite, mas agora a situação é outra
PROMOTOR MAURO ROCKENBACH
Cadeia se qualificou
Segundo os promotores que comandaram todas as ações, a fiscalização aumentou, inclusive com concursos públicos realizados e uma legislação nova foi criada para regularizar o setor. O trabalho da Leite Compen$ado foi considerado de suma importância por eles e serviu de base para operações similares em outros Estados, como em Santa Catarina, e para quatro Operações Queijo Compensado no Rio Grande do Sul.
Rockenbach e Silva Filho sabem que houve prejuízos para o setor leiteiro, mas também entendem que a cadeia produtiva se qualificou com a retirada dos responsáveis pelas fraudes do mercado, além de terem sido responsabilizados criminalmente. Os promotores fazem questão de tranquilizar consumidores ao informarem que houve uma mudança de conscientização e um aumento no rigor da fiscalização, bem como, na qualidade do produto.
Por isso, ambos dizem que agora voltaram a tomar leite e ressaltam que o cenário atual é diferente, mas que seguem alertas e apurando todas as denúncias. Rockenbach dá um recado:
— Quem pensa em fraudar novamente, pode ter certeza que iremos bater na sua porta.
As outras 11 fases da Operação Leite Compen$ado
Operação Leite Compen$ado 2 — Maio de 2013 — Cinco mandados de prisão preventiva foram cumpridos em Rondinha — com três presos — e Boa Vista do Buricá, no Norte, e em Horizontina, no Noroeste, com a prisão de Larri Lauri Jappe, então vereador do PDT e empresário do setor de transporte de leite cru. Foi encontrada até uma fórmula para adulteração do leite em Boa Vista do Buricá.
Operação Leite Compen$ado 3 —Novembro de 2013 — Preso um transportador e detectada a presença de água oxigenada no leite. Ação em Três de Maio, no Noroeste.
Operação Leite Compen$ado 4 — Março de 2014 — Ação em oito cidades com a prisão de um empresário em Condor, no Norte. Com ele, foi apreendida mais de meia tonelada de soda cáustica. Ações em Bossoroca e Vitória das Missões, nas Missões, Santo Augusto, no Norte, Ijuí e Panambi, no Noroeste, Tupanciretã e Capão do Cipó, na Região Central.
Operação Leite Compen$ado 5 — Maio de 2014 — Foram cumpridos três mandados de prisão em 10 cidades do Vale do Taquari e Vale do Sinos, em especial Imigrante e Paverama, sede das indústrias de laticínios Hollmann e Pavlat. Foram presos os proprietários das duas empresas. Eles foram investigados por darem ordens para adição de soda cáustica, bicarbonato de sódio e água oxigenada no leite. Também houve ações em Teutônia, Arroio do Meio, Encantado, Venâncio Aires, Marques de Souza, Travesseiro, Novo Hamburgo e Cruzeiro do Sul.
Operação Leite Compen$ado 6 — Junho de 2014 — Ações contra fraude do leite com ramificação no Paraná, com quatro presos. A operação ocorreu nas cidades paranaenses de Londrina e Pato Branco e nos municípios gaúchos de Ijuí, Taquaruçu do Sul, Ibirubá, Campina das Missões, Alegria, Boa Vista do Buricá, Crissiumal, São Valério do Sul, São Martinho, Cruz Alta e Coronel Barros.
Operação Leite Compen$ado 7 — Dezembro de 2014 — Posto de resfriamento é interditado em Jacutinga, no norte gaúcho, e outro fica em regime de fiscalização. Havia adição de sal no leite adulterado com água. Foram cumpridos 17 mandados de prisão e outros 17 de busca e apreensão em seis municípios gaúchos: Erechim, Jacutinga, Maximiliano de Almeida, Gaurama, Viadutos e Machadinho, todos no Norte.
Operação Leite Compen$ado 8 — Maio de 2015 — Oito prisões e produtos químicos apreendidos no norte do Estado. Áudios revelam tentativa de repassar leite com larvas. Suspeitos eram donos de transportadora e motoristas. Havia adição de ureia, álcool e soda cáustica.
Operação Leite Compensado 9 — Setembro de 2015 — Leite azedo era vendido como saudável. Houve quatro prisões nos municípios de Esmeralda, na Serra, e Água Santa, no Norte.
Operação Leite Compensado 10 — Outubro de 2015 — Donos de fábrica presos por adulteração do leite. A ação ocorreu de forma simultânea com a Operação Queijo Compensado 2. Os municípios onde ocorreu o cumprimento de ordens judiciais foram Venâncio Aires, Lajeado, Mato Leitão, Arroio do Meio, Montenegro e Carlos Barbosa.
Operação Leite Compensado 11 — Julho de 2016 — Resultados positivos para a presença de coliformes fecais, água oxigenada e amido em amostras analisadas. A ação ocorreu junto com a Operação Queijo Compensado 4. Cinco prisões e ações em São Pedro da Serra e Caxias do Sul, na Serra, em Estrela, no Vale do Taquari, além de Novo Hamburgo, no Vale do Sinos.
Operação Leite Compensado 12 — Março de 2017 — Nova Araçá, na Serra, Casca e Marau, no Norte, Estrela e Travesseiro, no Vale do Taquari. Houve cinco prisões e quatro mandados de busca em três laticínios. Áudios dos suspeitos, em tom de deboche, revelaram que carregamentos de leite só poderiam ter como destino a alimentação de animais.
Operação Queijo Compensado 1 — Junho de 2015 — Foi encontrado queijo com farinha e feito com leite rejeitado das indústrias. Houve três prisões com ações em Três de Maio, no Noroeste, e Ivoti, no Vale do Sinos.
Operação Queijo Compensado 2 — Outubro de 2015 — Ação foi junto com a Operação Leite Compensado 10 e ocorreu nas seguintes cidades: Lajeado e Arroio do Meio, no Vale do Taquari, Venâncio Aires e Mato Leitão, no Vale do Rio Pardo, Montenegro, no Vale do Caí, e Carlos Barbosa, na Serra. Duas pessoas foram presas.
Operação Queijo Compensado 3 — Junho de 2016 — Empresários recolocavam no mercado queijos estragados, mofados e com data de validade vencida, contendo, inclusive, coliformes fecais. Ações em Porto Alegre e outras seis cidades da Região Metropolitana, Norte, Noroeste e Serra. Houve sete prisões.
Operação Queijo Compensado 4 — Julho de 2016 — Resultados positivos para a presença de coliformes fecais, água oxigenada e amido. A ação foi junto com a Operação Leite Compensado 11. Cinco prisões e ações em São Pedro da Serra e Caxias do Sul, na Serra, em Estrela, no Vale do Taquari, além de Novo Hamburgo, no Vale do Sinos.
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