As dificuldades no setor leiteiro do Rio Grande do Sul são sentidas há quase uma década, mas foi com o baque em importantes empresas gaúchas do segmento que a crise ficou mais evidente, principalmente para os consumidores. Desde 2015, fatores como consumo menor e entraves na cadeia são queixas, mas com a pandemia o revés bateu mais forte. Desde estão, custo de produção que não se reduz na medida esperada, falta de competitividade com o produto de estados e países vizinhos e menor poder de compra se somam como ingredientes que emperram o setor.
Extensionista responsável pela área de leite da Emater, Jaime Ries aponta fatores conjunturais e estruturais entre as razões para as turbulências – que não são de agora. Segundo Ries, a partir de 2015, o consumo de leite estagnou ou cresceu muito pouco no país, influenciado pela situação econômica que combina inflação alta e empobrecimento das famílias. Além de fatores logísticos:
— O “estômago” do país é São Paulo. O Rio Grande do Sul está distante do mercado consumidor, e só por isso já há uma questão logística grande que nos desfavorece.
Conforme a Emater, o RS é o terceiro maior produtor de leite do país, responsável por cerca de 13% da produção nacional (fica atrás de Minas Gerais e Paraná). O Estado produz um total de 4,39 bilhões de litros de leite anualmente, segundo mapeamento mais recente da atividade, publicado em 2021. Mais de 92% do total produzido é destinado às indústrias de laticínios.
Para o presidente do Sindicato da Indústria de Laticínios do Rio Grande do Sul (Sindilat), Guilherme Portella, “não é que exista uma crise em si”, e sim uma série de pontos que precisam ser melhor trabalhados, seja em indicadores que ampliem a produção ou em incentivos, a exemplo de como ocorre em outros Estados e países, para tornar o leite gaúcho mais competitivo.
— O setor possui margens muito estreitas e evidentemente que qualquer descompasso seja nesse sentido, seja em relação aos custos ao produtor rural, seja quando existe aumento de algum insumo. O que acontece no setor de lácteos no Brasil é que, diferentemente de outras cadeias de produção de proteína animal, o setor ainda não é verticalizado e precisa avançar em termos de produtividade e competitividade em relação a outros países — diz Portella.
A capacidade industrial instalada no Rio Grande do Sul é de 23,1 milhões de litros/dia. Já o rebanho leiteiro gaúcho vem se reduzindo nos últimos anos é de pouco mais de 1 milhão de vacas (25,5% menor que em 2015), composto em sua maior parte por animais de raças europeias especializadas, como holandesa (64,7%) e jersey (16,4%). A produção de leite está presente em 137,4 mil propriedades rurais, em 493 dos 497 municípios gaúchos, e concentrada na metade norte do Estado.
Nesse contexto de produção essencialmente tocada por propriedades familiares, as cooperativas são eixos importantes da produção de leite no Rio Grande do Sul. E são justamente as que mais têm sentido o impacto da instabilidade no setor. Conforme o Sindilat, estima-se que de todo o leite industrializado no Estado 60% sejam de indústrias e 40% de cooperativas.
Seca agravou
Entre as empresas do segmento que enfrentam malabarismo de caixa, a cooperativa Languiru, com sede em Teutônia, diz que as estiagens consecutivas foram fator primordial para o desajuste nas operações. Em 2022, a cooperativa registrou faturamento de R$ 2,76 bilhões e prejuízo de R$ 123 milhões.
Segundo o presidente Dirceu Bayer, a conta de três secas seguidas impacta especialmente as atividades que agregam valor à matéria-prima, como é o caso da indústria de laticínios. A falta de chuva prejudica a alimentação do gado leiteiro devido à redução das pastagens e à qualidade precária da silagem a partir do milho. Aqui, o especialista da Emater, Jaime Ries, lembra que quanto pior a silagem, maior o gasto do produtor com a suplementação da alimentação dos bichos.
Um levantamento feito pela Secretaria da Agricultura divulgado nesta semana apontou que a estiagem nesse verão fez a produção de leite cair até 6,5 litros ao dia na média por animal no RS. A combinação de alta temperatura e pouca umidade do ar trouxe desconforto aos animais, reduzindo a quantidade de leite no tambo.
O volume atual de leite produzido pela Languiru é de 360 mil litros/dia, mas já foi de 450 mil litros/dia. Hoje, são 1,8 mil associados ativos na cooperativa (de um quadro de 5,7 mil). A empresa possui supermercado e marca própria de produtos, com itens que chegam até Santa Catarina, mas 85% do volume é vendido no mercado gaúcho.
— O mais importante é preservar o produtor porque se ele sai da atividade, quem paga a conta é o consumidor. É necessário encontrar um equilíbrio — diz Bayer, mencionando que os custos altos e recorrentes têm esvaziado a bovinocultura de leite.
— O Rio Grande do Sul está sendo superado pela competitividade de outros Estados. Já fomos celeiro e estamos perdendo um espaço enorme. É um alerta que faço há muito tempo. É uma conjuntura nacional e estadual que precisa ser melhorada — acrescenta o presidente da cooperativa.
Na Languiru e de modo geral no segmento, as dificuldades não se restringem à cadeia do leite e envolvem toda a produção animal, incluindo aves e suínos. Pelo menos para o segmento lácteo, o presidente diz que há “expectativas muito boas” a partir de parceria firmada com a Lactalis, em março. O acordo faz parte da reestruturação financeira da Languiru e prevê que o volume de leite captado pela cooperativa passe a entrar na conta da empresa francesa, que hoje é líder no Brasil.
— Agora temos um aliado que fará o possível para nos proteger. Quanto mais quantidade de leite entregarmos, mais estaremos garantindo a produção — projeta Bayer.
Presidente da Piá, outra conhecida do ramo que lida com a dificuldade financeira, Jeferson Smaniotto diz que a situação da cooperativa reflete um panorama do Estado. A cooperativa de Nova Petrópolis encerrou 2022 com prejuízo de R$ 62,6 milhões. Além de unidades de processamento de leite e de frutas, a Piá possui duas fábricas de ração, centros de distribuição e supermercados.
Além dos fatores já mencionados, Smaniotto reforça o esvaziamento da atividade como agravante do quadro. De 2015 a 2021, o número de produtores de leite se reduziu em 30,7%, segundo a Emater.
— A estiagem, o preço das commodities e o baixo poder aquisitivo do consumidor não dão condição de absorber a produção. São dois anos carregando o ônus da dificuldade de se pagar ao produtor e, na outra ponta, de não conseguir repassar ao consumidor — diz o presidente da Piá.
Atualmente, são 1,4 mil produtores de leite que fazem entregas diárias à cooperativa (são mais de 20 mil associados no quadro geral). Por mês, a produção gira entre 10 milhões e 12 milhões de litros, dependendo a sazonalidade.
O vizinho que ronda
A influência do mercado externo é mais um fator que tem mexido com a dinâmica do leite nacional. Os principais produtos fabricados no Brasil são o leite UHT, o queijo muçarela e o leite em pó. Mas o país lida com a entrada de produtos semelhantes de vizinhos do Mercosul, como Argentina e Uruguai. O leite em pó (usado como ingrediente para a indústria de panificação e de chocolates) e o queijo parmesão (vendido na gôndola dos supermercados) são os principais itens importados.
Por uma questão de logística, esses produtos vindos de fora são concorrência principalmente para os três Estados do Sul do Brasil, explica o secretário executivo do Sindilat, Darlan Palharini.
Segundo Guilherme Portella, presidente do Sindilat, esses países recebem importantes incentivos de produção local, reduzindo o custo de produção e tirando a competitividade do produto brasileiro. Na Argentina, por exemplo, programa de incentivo à produção de leite destinou este ano 9,16 bilhões de pesos em recursos aos produtores. Além do subsídio, o país liberou mais de 167,7 mil pesos em verba para as cooperativas investirem em equipamentos.
— O Brasil precisa avançar em termos de competitividade, inclusive para impedir que outros países sejam mais atrativos. Há uma questão de regramento de Mercosul que impede as taxações. Teria que se avaliar medidas para deixar o leite brasileiro e o gaúcho mais competitivos para que eles não tenham preço para vender dentro do Brasil — diz Portella.
Márcia Mueller, coordenadora da comissão de Leite e Derivados da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), chama atenção para o crescimento das importações. Somente entre janeiro e fevereiro deste ano, citando dados da Comex, ela diz que se importou 160% a mais de produtos lácteos do que no mesmo período do ano passado. No Brasil, foram 252% a mais, mostrando que não é apenas uma questão de Rio Grande do Sul.
— Temos um sentimento de não valorização do produto local e isso está refletido na entrada de leite do exterior. O mercado brasileiro (de leite) está calcado no mercado nacional e outras proteínas animais passaram a ter maior estabilidade quando se abriu ao mercado externo. Quero crer que se pudermos trabalhar a exportação, também poderemos ter um equilíbrio maior. O porém da indústria do leite é de que o nosso custo nacional é muito alto — analisa Márcia, que também é produtora.
De acordo com dados apresentados pela Secretaria da Fazenda do RS este ano, 12% do leite UHT consumido pelos gaúchos vem de outros Estados, principalmente de Santa Catarina ou Paraná. No queijo, o percentual é de 15%. Na avaliação do Sindilat, a explicação é tributária.
O setor atribui a dificuldade fiscal, entre outros motivos, ao Fator de Ajuste de Fruição (FAF) na cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Criado em 2021, o FAF é um percentual aplicado aos créditos presumidos concedidos pelo Estado nas compras de insumos. Para se beneficiar totalmente dos créditos, as indústrias precisam comprar todas as matérias-primas de fornecedores gaúchos, o que nem sempre é possível — sobretudo quando envolve embalagens.
Para o coordenador da área de leite da Emater, Jaime Ries, apesar dos entraves, o mercado leiteiro gaúcho tem estabilidade e precisa incentivar a produção para prospectar novo espaço:
— Apesar das dificuldades, o Rio Grande do Sul segue pujante na produção e ela está no DNA da agricultura familiar. Deveríamos continuar a fazer o dever de casa para conquistar novos mercados. E com preços competitivos.