Passada uma década desde que a Operação Leite Compen$ado chacoalhou o setor produtivo de leite e estremeceu a confiança dos consumidores, a avaliação é de que as normativas que se impuseram a partir do episódio melhoraram a qualidade da produção. O desfecho, portanto, resultou em saldo positivo tanto para a indústria, com a possibilidade de novos mercados, quanto para o consumidor, com a melhora do leite disponível na prateleira.
Darlan Palharini, secretário executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios do RS (Sindilat), destaca que importantes marcos regulatórios foram estabelecidos a partir da operação. A repercussão nacional do caso fez com que o Ministério da Agricultura (Mapa) e as secretarias estaduais ajustassem a legislação vigente até aquele momento e inserissem normas mais específicas.
Palharini cita alguns avanços, entre eles a entrada em vigor das instruções normativas 76 e 77, que estabeleceram regras para as etapas de produção do leite nas propriedades atendendo a requisitos de temperatura mínima e conservação, por exemplo. Outro avanço é que as regras de qualidade do leite foram unificadas para todo o Brasil, situação que até 2017 abria espaço para classificações regionais distintas no país.
Especificamente no Rio Grande do Sul, a criação da chamada Lei do Leite foi outro marco. A legislação aprimorou regras desde a certificação dos motoristas que transportam o leite coletado nas propriedades até a inspeção dos caminhões e a identificação dos tanques de coleta do produto.
— Com isso, o leite do Rio Grande do Sul é considerado o mais fiscalizado do Brasil. Temos, hoje, três laboratórios de análise de leite. Nenhum outro Estado tem essa quantidade de laboratórios. Toda a matéria-prima que entra para a indústria é analisada caminhão por caminhão, e em cada produtor é feita uma análise mensal da matéria-prima — afirma o dirigente do Sindilat.
— Hoje em dia, são raras as detecções de fraude de leite no Estado. A parceria entre o MP (Ministério Público) e o Ministério da Agricultura continua ativa e a experiência dessas operações aprimorou a nossa atividade de fiscalização. Tivemos uma alteração normativa, as legislações foram aprimoradas, dando ferramentas para a inspeção e a fiscalização tomarem ações mais assertivas — acrescenta a diretora do departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Mapa, Ana Lúcia Viana.
Para o pesquisador e professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Paulo Waquil, o principal efeito da Leite Compen$ado foi a garantia da qualidade “do caminho do meio” em diante, ou seja, do transporte até o consumidor final. Isso porque, explica Waquil, as adequações nas propriedades rurais já vinham ocorrendo desde décadas anteriores. As mudanças foram motivadas tanto por evolução tecnológica quanto por questões comerciais a partir da formação do Mercosul:
— A partir dos anos 1990, com a abertura comercial e a entrada de leite importado, a indústria começou a pressionar os produtores locais em torno da qualidade. Muitos produtores passaram a investir em ordenha mecanizada, em tanques de resfriamento do leite, e a qualidade do produto passou a melhorar em nível de propriedade. O problema é que esta melhoria da qualidade na produção acabou sendo razão para problemas que surgiram depois da porteira, no transporte e nos postos de resfriamento. Os produtores vinham entregando produto com maior escala e melhor qualidade, mas a adulteração passou a ocorrer no meio do caminho — lembra Waquil.
As adequações permitiram ao Rio Grande do Sul alcançar novos mercados e fornecer produtos para locais mais distantes em função de melhorias em tecnologia e transporte. O mesmo vale para o comércio internacional. Embora a exportação de leite fluido pelo Brasil seja pequena, as adequações favoreceram os derivados do leite, como leite em pó, manteiga, cremes e queijos, que são produtos com maior valor agregado e que atingem mercados mais distantes.
— A necessidade de garantia da qualidade é uma demanda cada vez maior da sociedade. O próprio setor quer aumento do consumo para garantir a atividade, mas o consumo só responde se a qualidade do produto atende às suas expectativas — pontua o professor da UFRGS.
Mudanças necessárias para a garantia da qualidade
Mesmo que impliquem custos mais elevados à cadeia, principalmente com transporte, as mudanças a partir da Operação Leite Compen$ado são necessárias para que se tenha a garantia da qualidade do alimento e se reduzam as perdas em produto.
Em termos de fiscalização efetiva, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (ANFFA Sindical) avalia que a experiência adquirida com as operações aprimorou as atividades de fiscalização desenvolvidas pelos fiscais. Antonio Andrade, diretor de comunicação da entidade, cita que as denúncias de fraudes e a detecção de irregularidades em leite cru diminuíram no Estado desde as operações, e que atualmente a situação é considerada controlada.
O próprio setor quer aumento do consumo para garantir a atividade, mas o consumo só responde se a qualidade do produto atende às suas expectativas
PAULO WAQUIL
Professor da UFRGS
Os promotores responsáveis pelas 12 fases da Operação Leite Compen$ado concordam que as investigações, com as respectivas denúncias e condenações, beneficiaram o setor aqui e em outros Estados.
O promotor Mauro Rockenbach, da Promotoria Especializada Criminal de Porto Alegre, diz que um conjunto de variáveis mudou uma cultura criminosa que existia do produtor, passando pelo transportador, até a indústria. Segundo ele, a repressão puniu e erradicou os fraudadores, permitindo uma fiscalização mais eficaz e uma legislação não só adequada, mas rigorosa. Para Rockenbach, a figura do fiscal passou a ser sinônimo de reconhecimento e atividade frequente em toda a atividade leiteira.
Já o promotor Alcindo Bastos da Silva Filho, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) — Segurança Alimentar, ressalta que, ainda durante os primeiros anos das operações, houve concursos públicos para fiscais desse setor em âmbito federal e estadual. Ele diz que foi visível a conscientização de todos os envolvidos na produção em busca da qualidade e não apenas da quantidade.
Ambos os promotores destacam que a cadeia produtiva leiteira gaúcha está mais confiável, lembrando que, desde 2017, somente duas novas denúncias surgiram, mas apenas sobre pequena adição de água no leite, não gerando inquéritos, somente notificações e sem riscos à saúde. O alerta continua e toda nova denúncia será investigada, garantem Rockenbach e Silva Filho.
As 12 fases da Operação Leite Compen$ado
Operação Leite Compensado 1 — Maio de 2013 — Para mascarar a adição de água durante o caminho entre o produtor e a indústria, transportadores adicionavam ureia — que contém formol — com o objetivo de obter maior lucro. Cerca de cem toneladas de ureia — apreendidas na ação realizada no Norte, Noroeste e Serra — foram adquiridas pelos envolvidos para utilização na prática criminosa. Autoridades cumpriram 10 mandados de prisão e oito de busca e apreensão.
Operação Leite Compen$ado 2 — Maio de 2013 — Cinco mandados de prisão preventiva foram cumpridos em Rondinha — com três presos — e Boa Vista do Buricá, no Norte, e em Horizontina, no Noroeste, com a prisão de Larri Lauri Jappe, então vereador do PDT e empresário do setor de transporte de leite cru. Foi encontrada até uma fórmula para adulteração do leite em Boa Vista do Buricá.
Operação Leite Compen$ado 3 —Novembro de 2013 — Preso um transportador e detectada a presença de água oxigenada no leite. Ação em Três de Maio, no Noroeste.
Operação Leite Compen$ado 4 — Março de 2014 — Ação em oito cidades com a prisão de um empresário em Condor, no Norte. Com ele, foi apreendida mais de meia tonelada de soda cáustica. Ações em Bossoroca e Vitória das Missões, nas Missões, Santo Augusto, no Norte, Ijuí e Panambi, no Noroeste, Tupanciretã e Capão do Cipó, na Região Central.
Operação Leite Compen$ado 5 — Maio de 2014 — Foram cumpridos três mandados de prisão em 10 cidades do Vale do Taquari e Vale do Sinos, em especial Imigrante e Paverama, sede das indústrias de laticínios Hollmann e Pavlat. Foram presos os proprietários das duas empresas. Eles foram investigados por dar ordens para adição de soda cáustica, bicarbonato de sódio e água oxigenada no leite. Também houve ações em Teutônia, Arroio do Meio, Encantado, Venâncio Aires, Marques de Souza, Travesseiro, Novo Hamburgo e Cruzeiro do Sul.
Operação Leite Compen$ado 6 — Junho de 2014 — Fraude do leite com ramificação no Paraná e quatro presos. A operação ocorreu nas cidades paranaenses de Londrina e Pato Branco e nos municípios gaúchos de Ijuí, Taquaruçu do Sul, Ibirubá, Campina das Missões, Alegria, Boa Vista do Buricá, Crissiumal, São Valério do Sul, São Martinho, Cruz Alta e Coronel Barros.
Operação Leite Compen$ado 7 — Dezembro de 2014 — Posto de resfriamento é interditado em Jacutinga, no norte gaúcho, e outro fica em regime de fiscalização. Havia adição de sal no leite adulterado com água. Foram cumpridos 17 mandados de prisão e outros 17 de busca e apreensão em seis municípios gaúchos: Erechim, Jacutinga, Maximiliano de Almeida, Gaurama, Viadutos e Machadinho, todos no Norte.
Operação Leite Compen$ado 8 — Maio de 2015 — Oito prisões e produtos químicos apreendidos no norte do Estado. Áudios revelam tentativa de repassar leite com larvas. Suspeitos eram donos de transportadora e motoristas. Havia adição de ureia, álcool e soda cáustica.
Operação Leite Compen$ado 9 — Setembro de 2015 — Leite azedo era vendido como saudável. Houve quatro prisões nos municípios de Esmeralda, na Serra, e Água Santa, no Norte.
Operação Leite Compen$ado 10 — Outubro de 2015 — Donos de fábrica presos por adulteração do leite. A ação ocorreu de forma simultânea com a Operação Queijo Compensado 2. Os municípios onde ocorreu o cumprimento de ordens judiciais foram Venâncio Aires, Lajeado, Mato Leitão, Arroio do Meio, Montenegro e Carlos Barbosa.
Operação Leite Compen$ado 11 — Julho de 2016 — Resultados positivos para a presença de coliformes fecais, água oxigenada e amido. A ação foi junto com a Operação Queijo Compensado 4. Cinco prisões e ações em São Pedro da Serra e Caxias do Sul, na Serra, em Estrela, no Vale do Taquari, além de Novo Hamburgo, no Vale do Sinos.
Operação Leite Compen$ado 12 — Março de 2017 — Nova Araçá, na Serra, Casca e Marau, no Norte, Estrela e Travesseiro, no Vale do Taquari. Houve cinco prisões e quatro mandados de busca cumpridos em três laticínios. Áudios dos suspeitos, em tom de deboche, revelaram que carregamentos de leite só poderiam ter como destino a alimentação de animais.
Operações "Queijo Compensado"
Operação Queijo Compensado 1 — Junho de 2015 — Foi encontrado queijo com farinha e feito com leite rejeitado das indústrias. Houve três prisões com ações em Três de Maio, no Noroeste, e Ivoti, no Vale do Sinos.
Operação Queijo Compensado 2 — Outubro de 2015 — Ação foi junto com a Operação Leite Compensado 10 e ocorreu nas seguintes cidades: Lajeado e Arroio do Meio, no Vale do Taquari, Venâncio Aires e Mato Leitão, no Vale do Rio Pardo, Montenegro, no Vale do Caí, e Carlos Barbosa, na Serra. Duas pessoas foram presas.
Operação Queijo Compensado 3 — Junho de 2016 — Empresários recolocavam no mercado queijos estragados, mofados e com data de validade vencida, contendo, inclusive, coliformes fecais. Ações em Porto Alegre e outras seis cidades da Região Metropolitana, Norte, Noroeste e Serra. Houve sete prisões.
Operação Queijo Compensado 4 — Julho de 2016 — Resultados positivos para a presença de coliformes fecais, água oxigenada e amido. A ação foi junto com a Operação Leite Compensado 11. Cinco prisões e ações em São Pedro da Serra e Caxias do Sul, na Serra, em Estrela, no Vale do Taquari, além de Novo Hamburgo, no Vale do Sinos.
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