Um ano depois do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, em uma unidade do hipermercado Carrefour, em Porto Alegre, o processo criminal segue em andamento, sem data prevista para conclusão. Desde meados de agosto, a juíza Lourdes Helena Pacheco da Silva, da 2ª Vara do Júri da Capital, conduz uma série de audiências para ouvir as testemunhas do caso, que ganhou repercussão nacional e internacional.
Em 19 de novembro de 2020, na véspera do Dia da Consciência Negra, João Alberto, um homem negro, foi espancado no estacionamento do supermercado no bairro Passo D'Areia, zona norte da cidade. Filmada e divulgada nas redes sociais, a morte provocou revolta e desencadeou acusações de racismo.
Ao anunciar a conclusão do inquérito policial, no dia 11 de dezembro de 2020, a delegada Roberta Bertoldo, afirmou que o relatório não associava o episódio ao crime de racismo. Os indiciamentos ocorreram por homicídio triplamente qualificado por motivo torpe, por entender que houve alguma forma de discriminação. Em entrevista à Rádio Gaúcha, na ocasião, a delegada disse que o racismo estrutural presente na sociedade brasileira naturaliza a violência contra pessoas negras.
Desde então, seis réus respondem na Justiça pelo crime em que foram indiciados, além de asfixia e recurso que impossibilitou a defesa da vítima, com dolo eventual (quando se assume o risco de matar).
Apontados como responsáveis diretos pelo espancamento de João Alberto, os seguranças Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva foram presos em flagrante e seguem detidos. Os outros quatro réus são Adriana Alves Dutra, que era fiscal da loja, Paulo Francisco da Silva, segurança, Kleiton Silva Santos e Rafael Rezende, funcionários do Carrefour à época. Adriana teve a prisão convertida em domiciliar por problemas de saúde, e os demais respondem a ação em liberdade.
Em agosto, a pedido da defesa de Giovane, o crime foi reconstituído. Durante duas noites, com acompanhamento do Instituto-Geral de Perícias (IGP) e da Polícia Civil, os últimos passos de João Alberto foram reproduzidos.
Depois disso, tiveram início as audiências judiciais. A primeira delas ocorreu em 18 de agosto, no Foro Central de Porto Alegre, com três pessoas convocadas pela acusação: a viúva de Freitas, Milena Borges Alves, um ex-funcionário do Carrefour, Milton Rafaeli Machado, e Priscila Brasil Geoss, que presenciou parte do ocorrido em 19 de novembro.
A partir de então, outras nove audiências foram marcadas até dezembro deste ano para ouvir mais 30 testemunhas, a maioria indicada pelas defesas dos réus. A última sessão do ano deverá ser desmarcada devido ao júri do incêndio na boate Kiss, que começa no próximo dia 1º e tem prioridade no Judiciário.
Por meio da assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça do Estado, a juíza informou que “se necessário, serão designadas audiências para o mês de janeiro de 2022” e ressaltou que “o processo, atualmente, aguarda a remessa de perícias que estão sendo realizadas no IGP”.
Conforme a assessoria do IGP, dos 18 laudos solicitados, 17 estão concluídos. O laudo da reconstituição do crime está em fase final de revisão.
Indenizações
Em maio deste ano, o Carrefour concluiu o nono e último acordo de indenização com os familiares de João Alberto, incluindo a viúva, os quatro filhos, a enteada, a neta, a irmã e o pai — os valores não foram divulgados.
Em abril, a empresa assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC) com Ministério Público do Estado, Defensoria Pública, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, parentes da vítima e organizações que representam o movimento negro.
No TAC, o Carrefour se comprometeu a aplicar R$ 115 milhões, ao longo de três anos, em uma série de ações — entre elas programas de inclusão de pessoas negras no mercado de trabalho. A empresa também reformulou o modelo de segurança nas lojas e assumiu compromissos antirracistas.
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O que dizem os defensores dos réus
Advogado Renan Jung Henrique, responsável pela defesa de Paulo Francisco da Silva:
Em nota, a defesa reitera a inocência de seu cliente e reforça que ele “em momento algum agrediu ou mesmo tocou a vítima, exceto quando foi verificar seus sinais, a fim de prestar os primeiros socorros”. Conforme o advogado, “Paulo foi chamado via rádio, seguindo ordens de seus superiores hierárquicos, e chegou ao local dos fatos já ao final do desenrolar da situação”. A defesa ressalta que Silva é negro e que é “absurda a acusação por, supostamente, dar causa a um homicídio motivado pelo racismo”.
Leia a nota na íntegra:
“No atual momento, a defesa aguarda a realização das audiências já designadas para os meses de novembro e dezembro deste ano. A defesa reitera que Paulo Francisco não teve qualquer participação no lamentável acontecimento que ceifou a vida da vítima João Alberto Freitas. Paulo foi chamado via rádio, seguindo ordens de seus superiores hierárquicos, e chegou ao local dos fatos já ao final do desenrolar de toda a situação. Em momento algum agrediu ou mesmo tocou a vítima, exceto quando foi verificar seus sinais, a fim de prestar os primeiros socorros. Por fim, a defesa salienta que Paulo é pessoa NEGRA, sua esposa é NEGRA, seus filhos são NEGROS, seus familiares são NEGROS, seus melhores amigos são NEGROS, sendo, portanto, absurda a acusação por, supostamente, dar causa a um homicídio motivado pelo racismo, cujas autoridades que o acusam são, em totalidade, de cor branca, e que agora, ao que parece, para buscar reconhecimento da mídia e autopromoção, desejam enclausurar mais um negro nas masmorras do nosso falido sistema penitenciário.”
Advogado Jairo Luis Cutinski, responsável pela defesa de Magno Braz Borges:
Por meio de nota, o advogado afirma: “A instrução processual está avançando, e a defesa acredita que logo será procedido o interrogatório dos réus. A escuta de testemunhas tem demonstrado que o caso não deve ser visto ou analisado pelas informações iniciais, eis que informações novas surgem e começam a modificar aquele cenário.”
Advogados David Leal, Jader Santos e Raiza Hoffmeister, responsáveis pela defesa de Rafael Rezende e Giovane Gaspar da Silva:
Os defensores sustentam, em nota, que “cada vez mais o caso se afasta das acusações iniciais e panfletárias” e que há indícios de que João Alberto tinha “problemas com bebida alcoólica e com drogadição”. Conforme os advogados, “um dos méritos das defesas, com apoio dos peritos, foi alertar para os pontos não explorados pela polícia judiciária, e essa abordagem auxiliou na descoberta do tolueno no sangue de João Alberto”. A defesa está convicta de que “a verdade sobre a causa mortis será devidamente esclarecida e avaliada”.
Nota na íntegra:
“Na investigação da Polícia Civil do RS, que teve início com a ocorrência do dia 19 de novembro de 2020, envolvendo a morte de João Alberto Freitas, resultando no indiciamento de seis trabalhadores (seguranças e fiscais), foram adotadas linhas de entendimento que acabaram passando longe de hipóteses cruciais ao esclarecimento da causa mortis. Com o propósito de investigar possíveis causas mortis não abordadas pela investigação, de acordo com o provimento 188/2018, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo art. 54, V, da Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994 – Estatuto da Advocacia e da OAB, procedemos à investigação defensiva, levando em consideração o primado da prova técnica.
Sabíamos que não tanto a exposição midiática e o honroso dia da consciência negra e da luta antirracista que promoveram a enorme influência no inquérito e os protestos ocorridos em todo o Brasil, mas principalmente as eleições municipais (sobretudo diante do fato de as forças políticas estarem organizadas à espera de fatos úteis ao processo eleitoral), a exemplo de os candidatos tanto de esquerda quanto de direita prestarem homenagem a João Alberto (típica razão cínica). Ponto positivo foi o fato de o problema do racismo no Brasil ser colocado como pauta central dos debates políticos dos candidatos naquela e das próximas eleições. Ponto prejudicial à defesa: esse detalhe resultou em medidas autoritárias impostas aos réus, como prisões cautelares sem fundamento concreto, revelando o real motivo de os magistrados e magistradas guardarem grande receio de proferir uma decisão liberatória.
Após transcorrer um ano do fato, a instrução do caso Carrefour vai se aproximando do fim. Faltam poucas, mas algumas testemunhas ainda serão ouvidas e aguardamos o retorno do laudo toxicológico complementar e do laudo da reprodução simulada dos fatos. Tudo transcorre com agilidade acima do comum, mas, mesmo com esforço do Poder Público, algumas provas exigem tempo e o IGP é um órgão demandado por diversos outros (polícia, judiciário, Ministério Público, defesa, etc.). Essas provas, no entanto, são de extrema importância para saber o que realmente levou João Alberto a óbito.
Cada vez mais o caso se afasta das acusações iniciais e panfletárias. Já é possível entender pelos documentos do processo que João Alberto era um sujeito com problemas com bebida alcoólica e com drogadição. Um dos méritos das defesas, com apoio dos peritos, foi alertar para os pontos não explorados pela polícia judiciária, e essa abordagem auxiliou na descoberta do TOLUENO no sangue de João Alberto. Já tivemos audiência com a principal testemunha do caso que depôs e confirmou que a vítima era alguém com problemas na vizinhança. Essa mesma testemunha relatou que lançou uma pedra contra João Alberto na manhã do fato para poder se defender, o que gerou o corte no queixo de João Alberto. Esse relato foi o que permitiu avançar na investigação defensiva e descobrir a origem de outras substâncias e até mesmo o hospital em que João Alberto foi atendido naquele dia.
Foram cinco substâncias encontradas, as quais potencializam as chances de ataque cardíaco e asfixia. Então, João Alberto era uma bomba relógio prestes a explodir: adrenalina, obesidade, excesso de esforço físico, tolueno, etc. somando-se tudo estamos diante da combinação suficiente para o óbito. Basta comparar com alguém saudável que faz uma atividade física até não suportar mais. A sensação que qualquer um tem é a de que vai morrer pela falta de ar. Imagine-se alguém sob o efeito de todas essas substâncias. Todos esses aspectos serão ainda submetidos aos jurados, na hipótese de meus clientes serem pronunciados. Pela repercussão do caso, tudo indica que irão. O povo será o juiz do caso Carrefour/João Alberto, e a verdade sobre a causa mortis será devidamente esclarecida e avaliada.”
Advogado Pedro Catão, que defende Adriana Alves Dutra:
A defesa avalia que as audiências com as testemunhas de defesa vêm ajudando a “esclarecer os fatos” em relação a Adriana. Conforme o advogado, “a ela é imputada a teoria do domínio do fato, e é isso que estamos tentando desconfigurar com a oitiva das testemunhas”. O advogado ressalta que houve “depoimentos favoráveis à tese da defesa, isto é, ao afastamento da teoria do domínio do fato”. A meta é buscar a impronúncia de Adriana (quando o juiz conclui que não há indícios suficientes de autoria ou participação e o réu não vai a júri).
Advogado Márcio Hartmann, que defende Kleiton Silva Santos:
Em nota, a defesa diz estar convencida de que Santos “não cometeu o crime de homicídio” e que o Ministério Público “agiu com excesso de acusação”. Conforme o advogado, o ambiente de trabalho no Carrefour “era extremamente autoritário e tóxico”. Seu cliente foi chamado pela superior hierárquica e apenas cumpriu ordens, com medo de perder o emprego: “Kleiton se viu obrigado, mesmo sem saber ao certo o que estava acontecendo, a conter os populares e dar o devido apoio aos colegas de trabalho. Por óbvio, não teve a intenção de causar dano algum à vítima.”
Leia a nota na íntegra:
“A defesa de Kleiton Silva Santos está convencida de que ele não cometeu o crime de homicídio conforme a denúncia do MP/RS. Infelizmente o Ministério Público agiu com excesso de acusação.
A defesa já consegue concluir, a partir dos depoimentos das testemunhas trazidas aos autos, que o ambiente de trabalho do Carrefour era extremamente autoritário e tóxico, pois Kleiton desceu para dar apoio a seus colegas por medo de ser demitido. Temos depoimentos de ex-funcionários do hipermercado que informaram que qualquer deslize, ir ao banheiro sem autorização prévia, por exemplo, gerava advertências e suspensões, sem falar em funcionários sem treinamento algum para situações como a que vitimou João Alberto. Infelizmente, a delegada de Polícia e o Ministério Público deixaram de trazer aos autos os diretores e gerentes responsáveis pela loja, os quais davam ordens para que os funcionários segurassem as pessoas até a chegada da Polícia Militar em situações de desinteligência como a ocorrida com João Alberto. Kleiton foi chamado por sua superior hierárquica para descer ao local dos fatos via rádio. Quando chegou, deparou-se com outros dois colegas, funcionários da Vector, que, em tese, tinham treinamento para atuar na situação. Com tudo isso, somado àquele ambiente autoritário do Carrefour, Kleiton se viu obrigado, mesmo sem saber ao certo o que estava acontecendo, a conter os populares e dar o devido apoio aos colegas de trabalho. Por óbvio Kleiton não teve a intenção de causar dano algum à vítima, mas, com medo de perder seu emprego em plena pandemia, agiu com medo da demissão. Agora o Ministério Público quer sua prisão.
Importante ressaltar que Kleiton não possui antecedentes policiais nem judiciais e nenhum fato que desabone sua conduta de cidadão digno e honrado. Importante também informar que o ambiente de trabalho do Carrefour era péssimo, pois não houve treinamento algum a seus funcionários, mas sim a exigência de responsabilidades, o que não faz sentido. Kleiton nunca recebeu treinamento para agir em situações como as que vitimaram João Alberto. É um rapaz de 22 anos de idade, sem experiência de trabalho, pois nunca havia trabalhado como fiscal de loja.
Quanto ao crime de racismo, esse deve ser rechaçado dos autos, pois até o presente momento não há nenhum indício de que os funcionários tenham agido com cunho preconceituoso. Kleiton é filho de mãe negra do interior do Estado de Alagoas e sabe o que é sentir o racismo na pele e jamais discriminou alguém por conta de raça, cor, credo ou orientação sexual.
A defesa de Kleiton espera que a empresa Carrefour seja responsabilizada por seus atos, pois não treinaram seus funcionários, proporcionaram um ambiente de trabalho autoritário e abusivo, que culminou com a trágica morte de João Alberto, sendo a empresa Carrefour a menos responsabilizada por esse fato, inclusive assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com Ministério Público do Trabalho.
Não é à toa que os principais fatos de grande repercussão de abusos de funcionários e com funcionários ocorrem dentro das dependências desse mercado a nível nacional.”
O que diz a assistência de acusação
Advogado Gustavo Nagelstein, um dos assistentes de acusação, que representa a viúva de João Alberto, Milena Borges Alves:
Conforme o advogado, Milena "está muito abalada e espera que seja feita justiça". A defesa informa que está atuando junto do Ministério Público para dar “a maior celeridade possível ao processo”, para que tenha uma definição no primeiro semestre de 2022. O sentimento da viúva “é de muita tristeza, pois ninguém espera que um ente querido vá ao supermercado e seja morto por funcionários do estabelecimento".