Quase três meses após entrar na UTI do Hospital Conceição voltada a pacientes com coronavírus, repórter e fotógrafo de GaúchaZH agora mergulham na rotina do serviço de emergência da Santa Casa de Porto Alegre. A tensão de quem chega com diagnóstico suspeito ou confirmado de covid-19 e os cuidados extremos de médicos e equipes de enfermagem saltam aos olhos, mas há muito mais a ser descoberto por trás de todo o aparato de segurança montado nessa área delicada das instituições de saúde.
Passava pouco das 9h da última segunda-feira (17) quando a reportagem de GaúchaZH deu início ao processo de paramentação para entrar na Emergência do Pavilhão Pereira Filho, adaptada especialmente para o atendimento de casos suspeitos ou confirmados de infecção por coronavírus na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Estavam ocupadas apenas duas das 28 cadeiras, afastadas um metro e meio umas das outras, dispostas sob uma tenda anexa ao prédio e na área de espera diante da mesa para triagem, junto à porta principal. Aguardavam o chamado uma jovem e, pelo que se podia deduzir pelo uniforme, um operário da construção civil.
— Daqui a pouco vai estar lotado — garantiu a médica Ana Paula Aerts, 41 anos, coordenadora do segmento de emergências do complexo hospitalar.
Em uma sala nos fundos, quase escura, com camas e sofás, onde médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem costumam descansar e comer, nossas roupas foram ensacadas e deixadas em um canto. Recebemos kits com máscara N95, touca, luvas, escudo facial e macacão impermeável. Escolhido por Ana Paula para orientar a colocação dos equipamentos de proteção individual (EPIs) dos jornalistas, o enfermeiro Wagner Barros, 41 anos, pediu que vestíssemos, primeiro, calças e blusas em verde e azul, que ficariam por baixo das vestes “de astronauta”, a exótica indumentária tão frequente nas imagens do noticiário sobre a pandemia. Mas, em um intervalo de segundos, Wagner desapareceu.
— Ele teve que atender uma intercorrência — informou uma funcionária. — Um paciente teve uma síncope. Um desmaio — detalhou.
Era o indício de que a manhã, de fato, começava. Em média, são realizados entre 60 e 70 atendimentos diários para conveniados de planos de saúde e colaboradores da Santa Casa na Emergência para covid-19 (na Capital, os hospitais de Clínicas e Conceição e as unidades básicas de saúde são referência para o primeiro atendimento de coronavírus via Sistema Único de Saúde, o SUS. A Santa Casa dispõe de leitos de UTI e de Enfermaria, que podem receber pacientes transferidos de outros locais). A cada 24 horas, de dois a seis doentes são encaminhados dali para a internação.
Entramos na Emergência totalmente cobertos pelos trajes e acessórios de segurança. As peças se sobrepõem, o rosto fica apertado. Leva um tempo para se acostumar com a sensação de “plastificação” e a necessidade imperativa de elevação da voz – que precisa atravessar duas barreiras, a máscara e o escudo. O macacão com capuz, inteiriço, parece travar o pescoço, e uma ponta de tecido que sobra no topo da cabeça inspirou um apelido.
— Parece o Zé Gotinha, né? — brincou Wagner, de volta depois de salvar um paciente recém-chegado de um tombo feio, lembrando do personagem famoso em campanhas nacionais de vacinação infantil.
Depois de passar três horas e meia no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em 29 de maio, GZH conheceu outra engrenagem fundamental do sistema de amparo aos doentes com covid-19. Em uma olhadela, a Emergência do Pereira Filho não difere de outras salas de espera de hospitais ou mesmo de pacatos consultórios. Por vários minutos, é possível ver dezenas de indivíduos sentados em silêncio, absortos em seus celulares, com a impessoalidade forçada típica desta era de máscaras.
De vez em quando, um enfermeiro cruza veloz o saguão, empurrando uma cadeira de rodas, para acomodar alguém mais debilitado que precisa descer do carro. Quem tosse atrai olhares nervosos – como o Sars-CoV-2 é transmitido por gotículas de saliva e secreção nasal, um ruído desses não passa mais despercebido. Muito menos ali.
Ao entrar, os pacientes se submetem a verificações de sinais vitais – temperatura, frequência cardíaca, oxigenação do sangue, pressão arterial – e respondem a um questionário.
— Que sintomas você está apresentando? — perguntou um enfermeiro.
— Acho que é mais psicológico. Fiquei sabendo que meu colega foi diagnosticado positivo — informou um jovem aparentemente constrangido.
— Que sintomas? — repetiu o profissional.
— Uma certa dor no pulmão — descreveu o paciente.
— Dor onde? Aponta onde dói.
— É que eu fumo, tá ligado? — revelou o rapaz, que ficaria horas em uma cadeira encostada na parede, depois que a investigação inicial concluiu se tratar de um caso sem indicativo de urgência.
Os pacientes são enquadrados em uma escala de cores, de acordo com a gravidade dos sinais e sintomas: vermelho representa necessidade de atendimento inicial imediato; quem fica como laranja pode aguardar 10 minutos; para o amarelo, uma hora; para o verde, são três horas, e o azul, cinco.
"Nunca tive nada parecido com isso"
Brasil Celso Peixoto, 71 anos, pulou etapas e foi levado para a salinha que recebe os casos mais delicados. Fora ele quem havia desmaiado minutos antes, exigindo o reforço do enfermeiro Wagner. Brasil estava em um leito, sem roupa, coberto por um lençol. Wagner e a técnica em enfermagem Jéssica Fecke, 28 anos, cada um de um lado, vasculhavam os braços e as mãos do dentista em busca de alvos para as agulhas.
— O senhor sempre foi ruim de veia, seu Brasil?
Aconteceu o que tinha que acontecer. Ainda não tenho o resultado final, mas os sintomas são todos pertinentes. Acho que vai positivar. Tenho que ser pragmático. Não vou ser o primeiro nem o último. Se tiver que ficar em casa, fecho a mulher em um quarto e eu, no outro. Não tenho medo nenhum. Estou otimista. Sou otimista.
BRASIL CELSO PEIXOTO
Dentista
Dez dias antes, o idoso se submetera a uma cirurgia na coluna cervical. A cicatriz despontava bem visível no lado direito do pescoço. Simpático e falante, ele resumiu o mal-estar do final de semana: secura na boca e formigamento no lábio no sábado, forte dor abdominal no domingo, fraqueza, febre, dor de cabeça e suadouro naquela madrugada. Na recepção, pensou em se levantar para avisar que piorava e pedir ajuda quando desabou.
— Nunca tive nada parecido com isso — intrigava-se Brasil, hipertenso e com “um tracinho” de diabetes. — Comi uma bergamota ontem de manhã. Meio copinho de leite e uma rosquinha de milho de tarde — informou, acrescentando que perdera o olfato, mas não o paladar, porque pôde sentir o gosto das mirradas refeições.
Monitorizado, Brasil se encontrava em estado estável, recebendo soro. Uma lista com 26 exames, incluindo testes sanguíneos e tomografia de tórax, teria de ser cumprida. A técnica em enfermagem aproveitou para contar que teve covid-19 e enfrentou uma semana “bem ruim”, com dores, tontura e perda total de olfato e paladar:
— Estava com medo. Chorei quando veio o resultado. Rezei muito para Nossa Senhora de Lourdes.
No momento da coleta de material para o RT-PCR, que detecta a presença do vírus no início dos sintomas, Jéssica introduziu compridos cotonetes pelas narinas e na garganta do dentista, que franziu a testa e acusou desconforto, mas sem exagero.
— Tem uns que choram, seguram minha mão, se agarram nas grades da cama — confidenciou a técnica.
Brasil interrompeu as consultas odontológicas em seu consultório dois meses atrás, abrindo raras exceções, para se preservar. Sai apenas para ir ao supermercado, sempre com máscara e escudo facial. Disse não suportar mais o noticiário sobre a calamidade sanitária mundial, tampouco as “fofocas políticas”. Mostrava-se resignado diante do mistério que só seria esclarecido em um prazo de 24 a 48 horas – tempo médio para processamento das amostras no laboratório.
— Aconteceu o que tinha que acontecer. Ainda não tenho o resultado final, mas os sintomas são todos pertinentes. Acho que vai positivar. Tenho que ser pragmático. Não vou ser o primeiro nem o último. Se tiver que ficar em casa, fecho a mulher em um quarto e eu, no outro. Não tenho medo nenhum. Estou otimista. Sou otimista – declarou.
A tensão pré-diagnóstico
Às 10h35min, 16 pessoas esperavam por avaliação. O caso mais preocupante era o de Railane de Sousa Araújo, 22 anos, que despertara às 5h30min, para ir à padaria onde trabalha como atendente, sem sentir nada diferente. Em menos de duas horas, a vista embaçou.
— Não estou aguentando de dor de cabeça — reclamou para uma colega.
A respiração ficou dificultosa e, à porta da Emergência, sentou em uma cadeira de rodas. A postura e os olhos caídos denunciavam o abatimento. Na consulta, etapa posterior à triagem, a sogra de Railane, a auxiliar de serviços gerais Esmeralda Soares de Sousa, 46 anos, respondeu pela nora a maior parte das perguntas. Queixando-se de fadiga, a atendente se restringia a lentos movimentos de cabeça.
— Sabe se tem alguma doença? Diabetes, pressão, colesterol? Não? – indagou a médica, digitando com força. – Já fez alguma cirurgia antes? Fuma, bebe ou já fumou? Alérgica a alguma medicação? Algum remédio que use todos os dias? (Mal-estar) começou hoje por volta de que horas? Onde é a dor de cabeça? Aponta para mim. Dor no peito, teve? Dor no corpo? Febre, teve? Nariz escorrendo, nariz entupido? Dor de garganta? Tosse? Vontade de vomitar? Chegou a vomitar? Data da última menstruação? Dor abdominal? Diarreia? Perdeu o cheiro ou o sabor? Tomou a vacina da gripe neste ano?
Sabe se tem alguma doença? Diabetes, pressão, colesterol? Não? Já fez alguma cirurgia antes? Fuma, bebe ou já fumou? Alérgica a alguma medicação? Algum remédio que use todos os dias? Onde é a dor de cabeça? Aponta para mim. Dor no peito, teve? Dor no corpo? Febre, teve? Nariz escorrendo, nariz entupido? Dor de garganta? Tosse? Vontade de vomitar? Chegou a vomitar? Dor abdominal? Diarreia? Perdeu o cheiro ou o sabor? Tomou a vacina da gripe?
MÉDICA DA EMERGÊNCIA
Seguiram-se a observação da garganta e a auscultação dos pulmões.
— Respira profundamente e solta orientou a médica. De novo. De novo.
A profissional finalizou com uma explicação:
– Olha, isso que a senhora está tendo pode ser covid ou podem ser outras coisas também. Então, o que a gente vai fazer agora? Vai fazer exame de sangue, vai fazer o exame da covid, vai fazer remédio para dor. E, dependendo do exame de sangue, talvez a gente precise de uma tomografia. Tá certo? Vamos fazer tudo isso e depois reavaliar. Se o remédio para dor não melhorar, a senhora avisa que a gente faz outro. Tá com vontade de vomitar agora? Se sentir vontade de vomitar, a senhora avisa que a gente faz remédio também.
Railane confessou ter medo, mais pelas crianças da família do que por ela própria. Ao todo, oito pessoas dividem a mesma habitação no bairro Farrapos. O filho, de quase três anos, dorme com ela.
— Espero que dê negativo. A casa é pequena, todo mundo fica junto um com o outro. Não tem onde me isolar — contou a atendente. — Tem gente que não está nem aí. Lá na padaria, vai gente sem máscara. Vejo direto as pessoas no parque sem máscara. Elas não se conscientizam do quão grave está a situação do nosso país. Todos os países estão melhorando, e aqui... — lamentou.
Perto do meio-dia, saguão repleto, a medição do oxímetro de pulso (dispositivo preso no dedo indicador que verifica a quantidade de oxigênio circulando no sangue) do comerciante Oclécio Rodrigues, 62 anos, inquietou a equipe assistencial. O aparelho mostrou variação entre 85% e 88% – o nível normal é acima de 95%. Proprietário de um bar que vende lanches e bebidas no Centro, Oclécio experimentava, desde a antevéspera, um desconforto na cabeça.
— Parece dor, mas não é. Parece que a cabeça fica meio inchada, meio estufada... Um mal-estar, assim — tentou definir.
Tosse, leve, também apareceu. No dia seguinte, domingo, não conseguiu levantar da cama. Passou o tempo todo deitado, a ponto de as costas incomodarem. Na segunda, resolveu procurar a emergência.
— Vamos ver o que está acontecendo. Com toda essa pandemia aí, tem que verificar. Não vou deixar acontecer para depois ser tarde — justificou o comerciante, na sala de medicação, onde recebia oxigênio por cateter nasal.
Oclécio referia mais incômodo com a máscara, pela sensação de sufocamento, do que pela baixa saturação de oxigênio, que mal percebia. O enfermeiro Wagner relatou ser comum examinar pessoas aparentemente bem, conversando, mas com a oxigenação sanguínea baixa denunciada pelo oxímetro.
— É provável que ele seja internado — previu Wagner.
“Acaba mudando a gente”
Depois de mais de quatro horas observando a rotina dos profissionais da Emergência do Pavilhão Pereira Filho, perguntei ao enfermeiro Leonardo Aguiar, 28 anos, se ele poderia orientar nossa desparamentação. Retirar todos os EPIs é tarefa delicada, que exige absoluta concentração.
Cada item que fora colocado sobre o corpo estava, naquele momento, potencialmente contaminado.
As mãos tinham de ser higienizadas com álcool gel (dorso, palmas, entre os dedos, polegares, unhas, pulsos) a cada EPI descartado. O mais difícil foi se livrar do macacão, fechado na frente por zíper. Os punhos, com elástico para melhor vedação, deveriam ser friccionados nas laterais do corpo, na altura dos quadris, num vaivém contínuo até que as mangas começassem a deslizar para baixo. Parecia tarefa de gincana escolar: você precisava tirar a peça de roupa, “descascar-se”, sem o habitual auxílio das mãos, apenas movimentando os membros superiores. Quando o primeiro braço saiu do macacão, pude passar a tocar o traje pelo lado de dentro, limpo, facilitando o restante da operação.
O enfermeiro Leonardo é paciente – e esta escolha de palavras, pelos significados, torna-se interessante. Indaguei desde quando atuava na Santa Casa.
— Em torno de nove meses — estimou. — Uma gestação — comparou, de pronto.
É quase o tempo de “vida” do coronavírus, descoberto em dezembro de 2019, em Wuhan, na China. Leonardo comentou que, nesse período caótico de turnos exaustivos, acredita que o sentimento de empatia aumentou. Há necessidade de se colocar no lugar do outro, argumentou:
— Isso é fundamental. Acaba mudando a gente.
Dois dias mais tarde, na quarta-feira, GZH contatou os três pacientes retratados nesta reportagem para conhecer os resultados dos testes de RT-PCR e saber como se sentiam.
— Estou internado — disse Oclécio, respondendo, objetivo, à saudação. — Deu positivo para coronavírus. Sem perspectiva de alta — completou o comerciante, informando que a esposa, o filho e a nora estão isolados, cumprindo quarentena.
Railane refugiou-se dois dias em um dos quartos da moradia no bairro Farrapos. O marido dormiu na sala, e o filho, com a avó. Conversaram por videochamada, e a comida lhe foi entregue na porta. Ela acessou o diagnóstico pelo celular, já mais tranquila, pois a médica da emergência constatara anemia ao analisar os laudos.
— Volto ao trabalho amanhã (quinta-feira). Estou feliz.
Brasil protagonizou o enredo mais surpreendente. Os exames no Pereira Filho investigavam suspeita de infecção por coronavírus mas acusaram inflamação aguda na vesícula biliar, logo extraída por videolaparoscopia por configurar situação de urgência cirúrgica.
O dentista ria, aliviado, momentos após a alta. O teste de covid-19 deu negativo, contrariando seu palpite, que era praticamente uma convicção. Questionado sobre o desfecho peculiar da história, concluiu:
— A vesícula, resolvi na hora. A outra (covid-19), não sei. Ninguém sabe.
*O Grupo RBS reembolsou a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre pelo valor dos equipamentos de proteção individual (EPIs) utilizados pela repórter e pelo fotógrafo.