Ao longo de seis meses, quatro médicos e uma enfermeira convidados por GZH, Rádio Gaúcha e Zero Hora compartilharam dramas, medos e alegrias com leitores e ouvintes. O Diário do Front encerra o seu ciclo neste espaço com um balanço final dos relatos de profissionais da saúde no combate ao coronavírus. Abaixo, veja os últimos depoimentos de André Luiz Machado da Silva, médico infectologista do Hospital Conceição.
"Seis meses de Diário do Front: a doença parece ter dado uma trégua"
Dia 30 de setembro: 23h04min
"Amanhã, completam-se seis meses do Diário do Front, e parece que começou ontem.
Durante esses seis meses, relatos de uma doença hostil, uma doença sorrateira, uma doença que surpreende a equipe de assistência por um comportamento nada convencional. Uma doença que apresenta uma alta taxa de infectividade e que além de apresentar manifestações clínicas graves também deixa sequelas.
Hoje, estou de plantão aqui no hospital, e a taxa de ocupação dos leitos de enfermaria e de UTI destinados aos casos suspeitos e confirmados de covid-19 caiu para um terço. Isso é muito positivo, muito gratificante, demonstra que a doença parece ter dado uma trégua.
Não diria que terminou. Diria que a intensidade da segunda onda que vem acontecendo agora no hemisfério norte acontecerá aqui, no hemisfério sul e no nosso Estado, mas a intensidade dessa segunda onda depende da educação das pessoas.
Se as pessoas mantiverem a consciência do distanciamento social, do uso de máscaras, da higienização das mãos, do respeito ao espaço do próximo e, principalmente, se tiverem a consciência de identificar precocemente os sintomas de covid-19 e estabelecerem medidas de isolamento, o número de casos pode ser menor e, consequentemente, o impacto na saúde e na ocupação dos leitos de hospital pode ser menor também.
Espero que o pior tenha passado.
Que possamos, em outras situações, falar de outras condições associadas à saúde da população."
"A covid-19 não está controlada no nosso Estado, infelizmente"
Dia 3 de setembro: 9h42min
"A partir do momento em que se percebeu novo aumento na taxa de ocupação dos leitos de UTI destinados aos pacientes com covid-19 no Estado, as pessoas vêm perguntando quais seriam os motivos associados a essa explosão. Gostaria de destacar um que, na minha opinião, contribui de maneira significativa para esse aumento.
Diz respeito à taxa de ocupação dos leitos de enfermaria. Há cerca de cinco, seis semanas, percebeu-se uma diminuição na taxa de ocupação desses leitos destinados aos pacientes com covid-19 no Hospital Conceição. Só que, nas últimas três semanas, essa queda não se manteve — ela atingiu um platô e assim está.
Logo, os pacientes continuam sendo internados, e a proporção de leitos de enfermaria é maior do que a proporção de leitos de UTI. E até 20% ou 25% desses pacientes que são internados em enfermaria vão precisar de leitos de UTI.
Nos últimos três dias, levei três pacientes, com idade entre 40 e 46 anos, para a UTI. Todos eles previamente hígidos (saudáveis), ou seja, sem nenhuma comorbidade. Todos eles com covid-19. Apresentaram piora do quadro respiratório e precisaram de intervenção em UTI.
O bom dessa história é que, para os três, havia leitos disponíveis. Mas claro que essa disponibilidade vem diminuindo, considerando-se, principalmente, que o tempo de internação em um leito de UTI é o dobro do tempo de internação em um leito de enfermaria. Por isso que o número de leitos disponíveis vem diminuindo ao longo dos últimos dias.
Neste momento em que a comunidade começa a retomar suas atividades, a retomar a sua vida econômica, social e, ali na frente, provavelmente, pedagógica, é importante que as pessoas mantenham a consciência e levem consigo uma palavra, que se chama solidariedade.
A doença não está controlada no nosso Estado, infelizmente. Nossa taxa de incidência ainda é alta, demonstrando que os casos seguem acontecendo. Precisamos ser solidários e manter uma atitude de respeito e de consciência quanto às medidas de isolamento, higienização das mãos e cuidado com o próximo."
"Paciente de 82 anos se manteve lúcida, colaborativa e muito afetuosa. Ontem, teve alta"
Dia 27 de agosto: 6h53min
"Hoje o meu relato é sobre uma senhora de 82 anos, hipertensa, diabética e obesa, que foi internada na enfermaria para covid-19 do Hospital Conceição com diagnóstico confirmado de infecção por coronavírus há 10 dias.
Uma senhora com comorbidades e idade que a colocam no grupo de risco de evolução para formas graves da doença e para desfecho desfavorável. Só que, no caso desta paciente, ela teve uma boa evolução e, ontem, teve alta da enfermaria.
Cabe ressaltar que, durante todo o período em que esteve internada, ela se manteve lúcida, colaborativa com a equipe e sempre muito afetuosa.
Gostaria de apontar que, na minha opinião, um dos motivos que contribuiu para essa evolução favorável é o fato de que, passados quase seis meses desde que começamos a atender os casos suspeitos e confirmados de covid-19 aqui no hospital, houve uma melhora nas instalações dos leitos de isolamento e na forma como são feitos o atendimento, a atenção e o cuidado aos pacientes que ficam privados do contato direto com seus familiares. Os pacientes ficam em leitos de isolamento.
O Conceição vem investindo cada vez mais em manter esse tratamento humanizado, disponibilizando leitos com janelas para o exterior, possibilitando o acesso, por videochamada, dos pacientes com seus familiares, bem como o contato telefônico.
São medidas que diminuem a impessoalidade do isolamento e que devem ser agregadas na rotina de qualquer hospital, independentemente do contexto da pandemia, porque o isolamento é uma condição que torna ainda mais impessoal a internação de um paciente, e isso contribui sobremaneira para evoluções desfavoráveis no que diz respeito, principalmente, à mudança do comportamento. E essa mudança do comportamento, muitas vezes, pode favorecer o surgimento de outras condições patológicas.
Fica o meu registro de uma paciente que teve uma evolução favorável mesmo neste contexto de comorbidades e idade avançada. Destaco que uma das medidas que contribuiu sobremaneira para isso é o fato de que estamos cada vez mais maduros quanto ao atendimento desses pacientes no contexto de isolamento.
Um abraço. Bom dia."
"Período na UTI é um dos momentos mais difíceis. Recuperação é uma longa jornada"
Dia 13 de agosto: 6h49min
"Estou encerrando mais um plantão nas unidades covid-19 do Hospital Conceição. Esta noite, atendi uma senhora de 63 anos que ficou internada por cerca de duas semanas na UTI com quadro bastante grave e que agora se encontra na Enfermaria, recuperando-se de uma verdadeira tempestade que acomete não só o pulmão mas outros órgãos do corpo humano.
Uma senhora com dificuldade de falar em função do período de ventilação mecânica e com um tubo na laringe. Uma senhora ainda com dificuldade de comer pela boca, de deglutir, considerando que, nesse período, ela recebeu dieta por sonda.
Uma senhora com dificuldade de caminhar, levando em consideração o período prolongado de sedação — consequentemente, isso acaba trazendo um comprometimento muscular, o que faz com que a pessoa tenha dificuldade, nos primeiros momentos, de caminhar sozinha. Mas uma pessoa feliz, uma pessoa aliviada em perceber que conseguiu superar um dos momentos mais difíceis dessa doença.
Digo um dos momentos porque esses pacientes que se recuperam da covid-19, e principalmente esses pacientes que apresentam uma doença grave e se recuperam, ainda têm uma longa jornada. Os sintomas associados à doença perduram na maioria deles e por um período de, pelo menos, 60 dias. É o momento em que o trabalho do fisioterapeuta, do nutricionista, do fonoaudiólogo é de suma importância na recuperação das funções comprometidas.
É uma doença que traz um impacto muito significativo na saúde das pessoas, não só no seu momento de plena atividade, mas também no momento de recuperação pós-sintomas.
Bom dia."
"Pela primeira vez, percebo diminuição na ocupação dos leitos destinados aos casos confirmados"
Dia 30 de julho: 12h58min
"Após semanas de um trabalho intenso, de um trabalho estressante, considerando que a incidência de casos de infecção por coronavírus teve um aumento expressivo no Hospital Conceição, pela primeira vez percebo uma desaceleração nesta taxa de incidência.
Pela primeira vez, percebo uma diminuição na taxa de ocupação dos leitos destinados aos casos confirmados de infecção por coronavírus depois de semanas de um trabalho árduo e bastante cansativo.
Claro que essa percepção que trago é da instituição onde trabalho, mas cabe ressaltar que o Hospital Conceição é referência no atendimento de casos suspeitos e confirmados de covid-19, bem como é um dos hospitais que oferta um número expressivo de leitos para o atendimento desses casos. Sendo assim, esse termômetro pode ser extrapolado para a tendência em relação ao Rio Grande do Sul.
É gratificante perceber essa redução na taxa de novos casos. Traz alívio perceber que estamos em direção a um platô e, após esse platô, se espera que ocorra uma redução nos casos de infecção no Estado.
Isso não deve diminuir o nosso nível de atenção, as recomendações quanto aos cuidados que a população deve manter. A população deve ainda ficar atenta às medidas de etiqueta respiratória, de higienização das mãos, do isolamento controlado e deve evitar as aglomerações porque ainda é muito cedo para estabelecer que estamos apresentando um descenso nos casos de infecção por coronavírus no nosso Estado. Mas espero que essa percepção se torne realidade não só no Hospital Conceição mas também no Rio Grande do Sul."
"Uma mulher de 39 anos, um homem de 82 anos: pessoas amadas que têm família e o direito de viver"
Dia 23 de julho: 9h42min
"Há pouco, terminei meu plantão noturno na Enfermaria dedicada aos pacientes internados com covid-19. Um plantão movimentado.
No início, uma mulher de 39 anos, hipertensa, obesa, evoluiu com piora do padrão ventilatório, sem resposta às medidas de oxigênio não invasivas. Precisou ser transferida para a UTI para que pudesse receber um suporte ventilatório adequado. Uma mulher jovem, casada, com filho, projetos de vida, amada.
No outro extremo do plantão, ao final, um senhor de 82 anos, hipertenso, lúcido, forte, com projetos de vida, amado. Também evoluiu com piora no padrão ventilatório, sem resposta às medidas não invasivas de oxigênio e com indicação de internação na UTI.
Duas pessoas com extremos de idade. Duas pessoas com uma doença em comum. Duas pessoas com uma evolução semelhante quanto a essa doença. Duas pessoas com histórias de vida. Duas pessoas amadas. Duas pessoas com projetos de vida.
Dar a todos eles e a todos os pacientes que procuram assistência no Hospital Conceição é o dever de todos que aqui trabalham. E para que a gente possa continuar dando a melhor assistência, aqui e em outros hospitais dedicados ao tratamento da covid-19, precisamos de leitos disponíveis em UTI porque até 20% dos indivíduos que internam nas enfermarias podem precisar de suporte intensivo.
Independentemente dos extremos de idade, são pessoas amadas, são pessoas que têm famílias e são pessoas que têm o direito de viver. Cabe a nós, profissionais da saúde, dar a todas elas o que temos de melhor em cuidados relacionados a essa doença.
Peço que a população se conscientize da importância do isolamento, da importância das medidas de higienização das mãos e do uso de máscaras. São medidas que dependem das pessoas e que vão ajudar a assistência médica e de enfermagem e o sistema de saúde a diminuir as internações.
Foi um plantão movimentado, foi um plantão intenso, mas foi um plantão em que foi possível resolver todos os casos que precisaram de cuidado intensivo. Mas a disponibilidade desses leitos é finita.
Na manhã de hoje, o Hospital Conceição dispõe apenas de mais um leito de UTI para o atendimento de pessoas que eventualmente venham a precisar de cuidados intensivos. Pessoas amadas, pessoas com histórias de vida.
Um abraço. Bom dia."