"Não quero a verdade, doutora. Quero que minta, que diga que estou bem"
Dia 27 de julho: 21h19min
"Estou acompanhando, na UTI, uma senhora que foi internada no dia 18 de julho no hospital por um quadro pulmonar. Inicialmente, imaginava-se que ela pudesse ter só uma piora de uma doença que já tinha, mas se diagnosticou covid-19. Ela ficou na Enfermaria, em um quarto, monitorizada e usando oxigênio.
Quatro dias depois, ela acabou sendo transferida para o CTI. A médica assistente, que a atendia no quarto, me contou que essa paciente não acreditava na covid-19, não acreditava que tinha uma doença grave e pedia para ir embora. Isso tudo porque não estava sentindo nada. Não sentia falta de ar, apesar de o oxigênio estar bem baixo na sua circulação sanguínea — e isso é uma coisa que muitos pacientes com covid-19 nos falam. Eles não têm sintomas, e a gente vê que eles têm a oximetria, que é a quantidade de oxigênio que se mede na corrente sanguínea, bem baixa.
Fui conversar com a paciente. Sempre que a gente trata uma pessoa, ela tem que ser colaborativa, aceitar o tratamento. Não podemos obrigar alguém a fazer um tratamento que não quer. Expliquei que o quadro dela estava mais grave, que era um quadro que nos preocupava, que ela teria que ficar na UTI.
Ela me perguntou qual era o diagnóstico, o que ela tinha, afinal. Contei que ela tinha uma infecção pulmonar bem importante e que teria que ficar ali por um tempo. Eu não sabia dizer quanto tempo. Ela ficou pensativa. Vi que ela ficou assustada.
No outro dia, quando fui examiná-la, ela me perguntou:
— Como eu estou? O que a senhora acha?
Falei que ela estava bem, não sentia nada, mas que tinha que ficar monitorizada, usando oxigênio.
— E o meu pulmão? Como está hoje? — ela quis saber.
Respondi que continuava grave, que o estado dela continuava grave. Aí ela me olhou e disse:
— Não, doutora. Eu não quero a verdade. Quando pergunto, a senhora tem que me dizer que estou bem! Eu não quero que a senhora diga que não estou bem porque, assim, vou ficar muito triste, não vou conseguir seguir o tratamento. Quero que a senhora minta, que a senhora me diga que estou bem.
Então, eu e ela fizemos uma combinação. Toda vez que vou visitá-la, examiná-la, ela me pergunta como está e eu digo que, a cada dia, está melhor. Sei que isso faz bem para ela, e a gente se entende. A gente sabe a verdade.
No momento em que ela, realmente, quiser saber a verdade, claro que vou falar. Mas, neste momento, estamos sendo cúmplices em uma mentirinha do bem. Os médicos não tratam só o corpo. Tratamos o corpo, a mente, o espírito."
"Alta de paciente renova as nossas forças e nos faz esquecer um pouco do cansaço"
Dia 20 de julho: 21h44min
"Hoje eu percebei que a equipe vem mostrando alguns sinais de cansaço. Quando temos uma rotina muito acelerada, muito corrida, às vezes não percebemos o quanto estamos ficando cansados.
E não é só pelo trabalho físico que a nossa rotina exige. Também é pela questão emocional em relação ao envolvimento com os pacientes, com a família. Também pela expectativa que temos de que tudo isso vai melhorar, de que na próxima semana o número de internados vai se reduzir, o número de infectados vai se reduzir.
Nunca conseguimos nos desligar totalmente do trabalho. Vamos para casa sempre pensando em alguma coisa, em alguma situação, em algo que podemos melhorar. Tudo isso faz com que acabemos cansados e reflete, então, no nosso comportamento do dia a dia. Isso me inclui, claro.
Hoje, no final do turno, tivemos uma despedida muito legal: a de uma paciente que estava conosco há muito tempo, que lutou muito, que teve seus altos e baixos e que, em certos momento, a equipe temia que ela não fosse conseguir, mas ela conseguiu. Teve alta. Reunimos a equipe, fizemos uma homenagem, tentando dar mais força para ela, pela próxima etapa que vem agora, de recuperação. E ela também manifestou o seu carinho por tudo o que fizemos por ela, pelo cuidado.
Isso faz com que renovemos um pouco as nossas forças, esqueçamos um pouco desse cansaço, busquemos um pouco mais de força para continuar. São quatro meses, e ainda não chegamos ao pico. Temos muito trabalho pela frente, sabemos disso. Então... Força, né?"
"Uma das perguntas que mais ouvimos das famílias: o paciente sedado consegue escutar?"
Dia 13 de julho: 20h09min
"Uma das perguntas que mais ouvimos das famílias que têm um ente querido internado no CTI, no momento em que damos as notícias, é se esse paciente escuta e percebe a presença da família na hora da visita.
O paciente que está sedado não vai escutar. E, se escutar alguma coisa, provavelmente vai esquecer, porque as medicações para sedar causam amnésia.
Mas o paciente que usa apenas medicações para ficar mais tranquilo, calmo, e que pode estar sonolento por causa da própria doença, esse, sim, pode escutar e lembrar de tudo que acontece ao redor dele, inclusive das visitas dos familiares.
Hoje peguei o tablet da UTI, em que a gente tem um canal de comunicação com as famílias, e levei até pacientes para que eles ouvissem mensagens que as famílias gravam e mandam para eles. O primeiro paciente ainda estava com um resquício de sedação de um procedimento que tinha feito. Quando passei a mensagem, coloquei o tablet bem próximo ao ouvido dele, e ele apenas fez uma feição de que aquele som o estava perturbando. Foi uma frustração para mim. Fiquei triste porque ele não conseguiu aproveitar aquela mensagem.
Aí fui para a segunda paciente. Ela também estava usando uma medicação para ficar mais tranquila. Entrei, ela estava sonolenta, e pensei: 'Ai, mais uma que não vai perceber, mas vamos lá'. Coloquei o tablet também próximo ao ouvido dela e passei o vídeo com a mensagem da família. Ela, na metade da mensagem, deu um sorriso.
Amanhã, quando aquele paciente que não conseguiu aproveitar a mensagem estiver mais desperto, vou passar de novo a mensagem pra ele."
Casal internado na UTI: ela está acordada, ele ainda não"
Dia 6 de julho: 22h31min
"Com o aumento de pessoas infectadas por coronavírus, observamos também que aumentou o número de casos graves, de pessoas que necessitam de atendimento hospitalar e muitas de internação em UTI e cuidados mais intensivos.
As UTIs de Porto Alegres estão lotadas, outras lotando. A nossa UTI também teve um aumento de pacientes com covid-19. São pacientes bem demandantes. Estamos trabalhando bastante.
Há também a preocupação com a nossa proteção. Temos que prestar muita atenção quando colocamos e tiramos os equipamentos de proteção individual (EPIs) para que não haja quebra de barreira e contaminação.
Há mais de 15 dias, temos um casal internado. Eu já havia comentado a respeito deles. A evolução tem sido boa. Ela já está acordada, consegue se comunicar. Ainda muito fraca, precisa de muita fisioterapia. Não se alimenta sozinha, precisa ser alimentada por sonda.
Ele se encontra em um quadro mais delicado, exige mais atenção. Está ainda dependente do ventilador mecânico, ainda depende da diálise. Mas, hoje, conseguimos pausar a sedação para que ele acorde e tentemos tirar todos esses suportes, aos poucos. Então, a equipe está na expectativa."
"O dia que esperamos que se repita muitas vezes"
Dia 1º de julho: 20h33min
"Hoje foi um dia bom na UTI.
Duas pacientes que já estavam havia bastante tempo internadas, e que tinham passado por um quadro bem delicado, receberam alta.
Elas receberam uma homenagem na saída da UTI, fizeram discurso, emocionaram a equipe.
Agora vão partir para uma segunda etapa — a etapa da reabilitação. Elas serão transferidas para a enfermaria e poderão ver suas famílias.
Esperamos que este dia se repita muitas vezes."
"Casal foi internado no hospital no mesmo dia. Marido e esposa estão na UTI"
Dia 29 de junho: 22h49min
"Hoje a UTI tem mais pacientes internados por covid-19. Muitos deles têm menos de 60 anos.
Temos um casal: ela com 57 anos, e ele, com 62 anos. Eles internaram no mesmo dia no hospital e não evoluíram bem. Precisaram ir para a UTI e desenvolveram um quadro bem grave. Foram sedados, entubados, ficaram em ventilação mecânica.
Ela teve um quadro mais grave do que o dele, mas se recuperou mais rápido. Está bem melhor agora, sem sedação, acordada. Ainda em ventilação, mas já pretendemos tirá-la da ventilação.
A equipe está muito feliz por ela ter conseguido se recuperar, mas estamos muito aflitos porque teremos que contar para ela que o marido ainda está internado, em um quadro grave, nessa mesma UTI em que ela está, com risco de vida."
"'Por que comigo?', perguntava paciente com medo de ser entubado"
Dia 22 de junho: 20h39min
"Hoje, no CTI, nós tivemos que entubar um paciente. A entubação é sempre um momento muito difícil porque, como todos sabem, representa a piora: mais tempo de internação na UTI, mais tempo de internação no hospital, mais tempo para ele conseguir se recuperar depois, mais tempo longe da família. É um momento bem complicado.
Isso me fez lembrar de dois pacientes que estiveram internados com a gente e reagiram de maneira bem diferente em relação a esse temor da entubação.
Um deles era um senhor de 60 e poucos anos. Quando conversávamos na hora de examiná-lo, ele dizia que sabia que poderia ser entubado, mas que acreditava que seria por pouco tempo, de acordo com o quadro dele. Ao mesmo tempo em que afirmava isso, queria que concordássemos, que afirmássemos isso também. Era uma forma de ele enfrentar esse medo de ser entubado.
O outro paciente, bem mais jovem, que não tinha nenhuma outra doença — não era hipertenso, não era diabético —, foi contaminado pelo coronavírus, desenvolveu a covid-19 e teve de ir para a UTI para ficar em observação. Quando o examinávamos, ele chorava muito, demonstrando todo o seu medo, toda a sua tensão. E sempre perguntava:
— Por quê? Por que isso foi acontecer comigo?
Ele dizia que era uma pessoa saudável, que não tinha nenhuma das doenças que eram fatores de risco para o desenvolvimento de covid-19 grave.
Tentávamos conversar com os dois, explicar, mas não conseguíamos dar a resposta que eles queriam porque não sabemos todas as respostas. Ao contrário do que algumas pessoas falam, não somos super-heróis. Somos humanos. E, por isso, estamos nesta luta que é ajudar as pessoas que sofrem tanto com esta doença."
"Paciente muito querida, funcionária do hospital, piorou"
Dia 17 de junho: 21h44min
"Hoje o dia foi mais agitado, uma tarde mais corrida. Tivemos três internações de pacientes com suspeita de covid-19. Eles precisavam ser atendidos e monitorizados na UTI.
A gente vem notando que as outras internações, em leitos clínicos do restante do hospital, também vêm aumentando, e o medo de que a UTI não atenda toda a demanda sempre existe, principalmente com a chegada do frio e porque esses pacientes demoram para se recuperar.
O curso de internação dos pacientes com covid-19 dentro da UTI pode levar até 21 dias. Há pacientes novos que são internados, mas ainda temos pacientes que foram internados 14 dias atrás e que estão em fase de recuperação.
Tivemos uma intercorrência com uma paciente muito querida. É funcionária do hospital, está internada há mais de 14 dias. Chegou em estado muito grave, passou por vários procedimentos, inclusive traqueostomia (incisão cirúrgica na traqueia para facilitar a respiração).
Agora ela vinha se recuperando, já havíamos pensado em planejar a alta, a família estava com expectativa. Mas ela teve uma complicação, não relacionada à covid-19 — da qual ela já está curada —, que fez com que retrocedesse em tudo que tinha conquistado até o momento. A gente espera poder ajudá-la a superar mais esse obstáculo.
Amanhã, espero que o dia seja melhor para toda a equipe, para a UTI e, principalmente, para essa paciente."
"Paciente falou que, quando e se acordasse da sedação, nos veríamos de novo"
Dia 15 de junho: 21h02min
"O Hospital Ernesto Dornelles tem uma UTI voltada para o atendimento de pacientes com covid-19. São pacientes que internam via Emergência ou vêm de um quarto na unidade de internação. Nossa população, geralmente, tem mais de 65 anos e mais de uma doença.
Em maio, nossa UTI, com 20 leitos, estava completamente lotada com pacientes em estado grave.
Lembro de uma das primeiras pacientes que veio para a nossa UTI. Era uma senhora de 69 anos, professora, que tinha internado havia uns três dias pela Emergência. Ela tinha feito o teste, com resultado positivo, e foi para a unidade de internação porque não tinha gravidade para ir para a UTI naquele momento.
Depois de uns dois dias, o quadro se agravou, e ela acabou sendo transferida para a UTI, onde ficou sob monitorização, em um primeiro momento. Ela tinha suas limitações, mas estava acordada, comia, conversava. Sempre nos dizia que o que mais a fazia sofrer era a distância da família, nem era a perspectiva de como a doença evoluiria. Sempre que podia, ela ligava e conversava com os filhos.
Essa paciente não evoluiu de forma favorável, piorando muito em pouco tempo. Precisava ser entubada. Quando explicamos isso, ela ficou bem abalada, triste, mas nos olhou e disse que era para fazer o que tinha de ser feito e que confiava na gente. Falou também que, quando acordasse da sedação, se acordasse, nos veríamos de novo.
Ela lutou muito pela vida. Ficou vários dias internada em estado grave, em ventilação, e conseguiu: venceu a doença. Conseguiu ter alta da UTI e, depois, do hospital para a casa dela, como queria tanto.
Mas, infelizmente, ela é uma exceção, porque muitos sofrem e poucos conseguem vencer."