Uma vez um alcoólico, sempre um alcoólico. Aqueles que têm problemas na vida pessoal e profissional por conta do consumo abusivo de bebida, porém, podem buscar a recuperação. Isso é o que explicam os membros do grupo de apoio Alcoólicos Anônimos (AA), voltado à ajuda de pessoas que sofrem prejuízos relacionados ao álcool e querem parar de beber.
A reportagem de Zero Hora foi recebida pelos membros do Grupo de AA da Cidade Baixa, em Porto Alegre, que se encontra todas as terças e sextas-feiras em uma sala na Igreja Sagrada Família. Um dos participantes, que preferiu não ser identificado, conta que começou a beber aos 15 anos para se enturmar com os amigos. Com 18 anos, começou a ter problemas com a bebida e consumir substâncias mais pesadas.
— Isso não estava acontecendo com meus amigos, que talvez consumissem a mesma quantidade que eu. Para eles, parecia uma brincadeira. Para mim, era uma coisa muito séria, é como se fosse uma medicação — diz.
O chefe do Serviço de Psiquiatria de Adições e Forense do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Félix Kessler, explica que alguns dos fatores para a identificação do consumo abusivo são o sofrimento ou prejuízo para si ou familiares, o consumo além do programado para o momento, a falta no trabalho por conta de cansaço, comportamento violento quando bêbado, apagamentos de memória, sintomas de abstinência e muita vontade de beber.
Esses indicadores são alguns dos requisitos para o diagnóstico do que é chamado na medicina de Transtornos Mentais Relacionados ao Uso de Álcool (DSM-V) — uma doença tida como invisível, já que não necessariamente tem sintomas físicos.
— Em geral, no que tange ao álcool, como as pessoas nem sempre se dão conta, mais fácil é perguntar para o entorno, para os familiares: "Vocês acham que está causando algum prejuízo?" — Kessler recomenda.
No Rio Grande do Sul, cerca de 210 grupos (dos quais aproximadamente 30 são em Porto Alegre) usam o modelo dos Alcoólicos Anônimos, caracterizado por seguir os mesmos 12 passos como método para alcançar a sobriedade.
A sala onde o grupo da Cidade Baixa se encontra reúne uma diversidade de rostos e passados. Entre padrinhos e apadrinhados, pessoas de diferentes classes sociais, gêneros, idades e crenças escutam enquanto, um a um, os participantes vão à frente das cadeiras compartilhar uma vivência, um desafio ou desabafo sobre o alcoolismo com o grupo.
No ambiente, todos os participantes são alcoolistas em recuperação, inclusive a coordenação, composta por voluntários do grupo. Assim como a possibilidade de não revelar o nome completo, o tratamento "de igual para igual" permite que o espaço seja seguro para expor detalhes íntimos da recuperação.
"Eu bebia para me anestesiar"
Camila está sóbria há poucos meses. Vinda de uma família de alcoólicos, ela conta que era uma "bêbada doméstica" e que costumava comprar bebida para consumir sozinha em casa. Apesar de não aceitar sua condição no início, ingressou no grupo por indicação da sua psicóloga. Para ela, a frequência no AA foi essencial no processo de desintoxicação, que durou cerca de um mês, acompanhado da dificuldade de encarar a realidade.
— Eu bebia para me anestesiar. — lembra — Tu para de beber, tuas emoções vêm à tona, tu enxerga todos os problemas que foi botando debaixo do tapete, como as relações que estão uma porcaria, porque sempre estiveram, mas quando estava bêbada aceitava qualquer coisa.
Camila conta que a perda do controle quando bêbada fez com que, em diversas ocasiões, pessoas ao seu redor se aproveitassem dela em relações profissionais, amorosas e de amizade.
Conforme os relatos dos membros, a falta de controle sobre si nas bebedeiras muitas vezes vem acompanhada do apagamento de memória — quando se bebe a ponto de não lembrar nada no dia seguinte.
Para João, participante do AA há 40 anos, a amnésia alcoólica foi o fator decisivo para buscar ajuda.
— Por exemplo, eu estava bebendo num bar e acordava atirado num barranco sem camisa, sem tênis, sem nada — relata — E o pior de tudo é que as pessoas te falam as coisas que tu fez, e tu não acredita até que 10 pessoas te falem a mesma coisa. Esse remorso de fazer coisas que tu não é assim te maltrata, te aniquila.
"Só por hoje eu não vou beber"
Na frente da sala da reunião, uma placa de LED brilha com a frase "Evite o primeiro trago de 24h em 24h". Recurso que ajuda na motivação, a mentalidade de levar a sobriedade dia após dia foi o que ajudou Atos, outro participante do grupo, a permanecer sóbrio há 29 anos.
— Entrei com tanta convicção que a minha mente aceitou com muita clareza: só por hoje eu não vou beber. — conta. — Os desafios foram, por exemplo, as pessoas que não entendiam a minha doença e, não sabendo que eu não posso tomar o primeiro gole, me ofereciam bebida.
Se por um lado a sobriedade coloca as antigas relações em xeque, os grupos de apoio são uma forma de cultivar uma comunidade e encontrar outro propósito. Sóbrio há 13 anos, um membro da reunião que preferiu não se identificar conta que frequentar diferentes encontros e transmitir sua história lhe dá um sentimento de pertencimento, além de ajudar a manter a própria recuperação.
— Eu me sinto útil dentro do universo. Eu conto a minha experiência de dor, de sofrimento, e a gente transforma isso na nossa maior arma para ajudar alguém — diz.
Como buscar ajuda dos Alcoólicos Anônimos
No Rio Grande do Sul, há encontros presenciais de AA em 150 cidades, que podem ser consultados no site dos Alcoólicos Anônimos. No mesmo link, é possível encontrar as reuniões online de diferentes grupos. Além disso, a linha de ajuda que atende o RS pode ser acessada através do telefone (51) 3226-0618.
As reuniões são abertas ao público, sem necessidade de inscrição. Os Alcoólicos Anônimos não têm ligação com nenhuma religião e se mantêm financeiramente a partir de contribuições dos próprios participantes.
* Produção: Fernanda Axelrud