Ao longo de seis meses, quatro médicos e uma enfermeira convidados por GZH, Rádio Gaúcha e Zero Hora compartilharam dramas, medos e alegrias com leitores e ouvintes. O Diário do Front encerra o seu ciclo neste espaço com um balanço final dos relatos de profissionais da saúde no combate ao coronavírus. Abaixo, veja os depoimentos de Isis Marques Severo, enfermeira intensivista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
"Sorrir junto, chorar, torcer pela melhora do outro: Diário do Front deu visibilidade à enfermagem"
Dia 30 de setembro: 19h56min
"A experiência do Diário do Front foi uma oportunidade de dar maior visibilidade ao trabalho da enfermagem, que é pautado por evidências científicas e tem muita empatia e amor pelo próximo.
É cuidar do paciente, de sua família ou de seus amigos e sentir que podemos fazer diferença na vida das pessoas. É sorrir junto, é chorar, é torcer pela melhora do outro.
Este momento de pandemia foi de muito aprendizado, de crescimento profissional e pessoal. Um momento de desacomodação e de muito trabalho multiprofissional, com troca de saberes.
Além disso, foi um momento de construção de novas amizades e de valorizar ainda mais a vida."
"Retornei das férias. O CTI está mais tranquilo, o número de pacientes diminuiu"
Dia 28 de setembro: 19h58min
"Retornei de férias hoje, após 20 dias de descanso. Foi ótimo. Aproveitei com Michel, meu marido, e João Miguel, meu filho.
No CTI, enxerguei, escrita em uma janela, a seguinte mensagem: 'Um sorriso não faz mal, sabia? Tenha um bom dia!' Fiquei mais contente ainda por retornar, pois amo meu trabalho e as pessoas com quem divido meu dia a dia.
Minha equipe ficou feliz com meu retorno. Foi gratificante ver o sorriso por trás das máscaras de todos. Ganhei até chocolate de boas-vindas, um mimo que adorei.
Logo na chegada, observei que o CTI estava mais tranquilo, o número de pacientes diminuiu, e a agitação da unidade, também.
Pensei: 'Ufa, que coisa mais boa!'
No grupo, conversamos sobre a importância de todos não baixarem a guarda nos cuidados de prevenção da doença para o número de pacientes não voltar a subir.
Chegando em casa, João Miguel me pediu papel e caneta para fazer um desenho. Abaixo do desenho, Michel escreveu: 'João Miguel'.
Ele me mostrou o desenho e disse:
— Aqui está escrito: 'Mamãe, eu te amo muito!'
E foi um abraço triplo, com sorrisos.
Um beijo. Até mais."
"Fui convidada para ser madrinha de casamento de um paciente"
Dia 4 de setembro: 17h29min
"Estou saindo de férias após quase seis meses de muito trabalho no CTI covid-19. Um trabalho tão intenso e dinâmico como ainda não tinha vivenciado.
Este 2020 tem sido diferente em termos de experiência profissional nesses meus 18 anos de terapia intensiva. Como aprendizado, posso afirmar que hoje sou uma enfermeira mais completa, com uma bagagem muito grande no cuidado ao adulto crítico.
Estou aliviada por descansar um pouco, sair umas semanas. Minha rotina de trabalho vinha sendo muito agitada, e chega uma hora em que é fundamental recarregar as energias, descansar o corpo e a cabeça.
Confesso que estarei torcendo pelos pacientes. Quando eu retornar das férias, espero ter boas notícias. Que eles apresentem melhora e possam voltar para suas famílias.
Hoje tive uma notícia que me emocionou muito. Eu e uma das psicólogas do CTI fomos convidadas para ser madrinhas de casamento de um paciente que já teve alta. Ele vai oficializar a união com a sua companheira depois da pandemia. Fiquei até arrepiada com o convite, pois mostra o quanto podemos ser importantes e fazer diferença na vida das pessoas.
Saio de férias com o sentimento de trabalho cumprido e com o coração feliz."
"Nosso paciente de 19 anos está há 54 dias no respirador mecânico"
Dia 2 de setembro: 18h56min
"Hoje nossa UTI estava agitada, com muitas intercorrências e pacientes em estado grave.
Uma das alegrias da manhã foi que nosso paciente de 19 anos, sem doenças prévias, de quem já contei a história aqui no meu diário, está mais responsivo.
Ele ainda segue em estado muito grave, mas está conseguindo nos dizer se está com falta de ar ou não, se tem dor ou não. Coisas simples. Ele gesticula com a cabeça. Ficamos felizes com essas pequenas respostas.
Faz 54 dias que ele está no aparelho de respiração mecânica, 25 dias no suporte do ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea, na sigla em inglês, sistema que substitui o trabalho do pulmão) e com muitos cuidados da equipe como um todo.
Chegando em casa, brinquei de pega-pega com João Miguel, meu filho de quatro anos. Depois, ele pediu que eu contasse uma história. Ele adora. Eu disse que contaria a historinha dos Hot Wheels que foram a uma pista de hambúrguer. Ele me disse:
— Fala sério, mamãe!
Achei muito engraçado. Começamos a rir juntos.
Bom, inventei uma história de dois amigos carrinhos Hot Wheels, o Jack e o Peter. Ele adorou!
Essa criatividade é muito boa, tanto para ele quanto para mim.
Um beijo. Até mais."
"'Luz na passarela que lá vem ele!', cantou o paciente, sambando, no dia da alta do CTI"
Dia 31 de agosto: 17h07min
"Trabalhei 12 horas no domingo para auxiliar os colegas nos cuidados com os pacientes em hemodiálise no Centro de Tratamento Intensivo (CTI). Tínhamos 17 pacientes em terapia renal substitutiva somente nas unidades intensivas do Anexo (prédio inaugurado recentemente), as novas do hospital.
Comecei minha segunda-feira com a unidade bombando. E eu seguia naquele ritmo intenso, como tem ocorrido diariamente. Ainda bem que está perto das minhas férias para eu descansar um pouco.
Hoje, eu e minha equipe lembramos da alta, para a unidade de internação, de um paciente sobre quem já contei a história aqui no meu diário, em 24 de agosto. No dia da alta, no final da semana passada, ele caminhou com profissionais da fisioterapia e da enfermagem pela unidade. Me enxergou no corredor e falou:
— Luz na passarela que lá vem ele!
Olhei para ele e fiquei tão feliz que ensaiei passos de samba. E ele, para minha alegria e surpresa também do pessoal da fisioterapia e da enfermagem, imitou os passos. Todos riram, felizes. Ficamos impressionados com o quanto ele estava caminhando bem e sambando também. Foi uma alegria.
Ele completou nossa manhã dizendo que somos como abelhinhas, pois trabalhamos juntas, em equipe, com um objetivo comum: cuidar bem e cada vez melhor.
Um beijo. Até mais."
"Foi um alívio ver o paciente respondendo. Ele esteve em estado muito grave"
Dia 26 de agosto: 18h11min
"Tenho cuidado, há vários dias, de um paciente de 44 anos, sem doenças prévias, que foi internado em 23 de julho, encaminhado por uma unidade básica de saúde (UBS), devido à covid-19.
Logo na chegada ao CTI, ele foi entubado. Foi pronado (colocado de bruços para respirar melhor) diversas vezes, precisou evoluir para ECMO, ficando 23 dias neste suporte que funciona como um pulmão artificial. Agora, está no processo de desmame do respirador, ou seja, de retirada gradual do aparelho de ventilação mecânica.
Ontem, desde a sua internação no CTI, ele se comunicou pela primeira vez conosco. Dei bom-dia, me apresentei, falei as horas e lembrei onde ele está. Perguntei se tinha dor, e ele disse que não, gesticulando com a cabeça. Perguntei se tinha falta de ar, e ele também disse que não. Foi um alívio vê-lo respondendo. Ele esteve em estado muito grave.
Chegando em casa, João Miguel (filho) me entregou flores de madeira, um arranjo que ganhei há uns dois anos do Michel (marido). João Miguel me entregou como um presente. Ele fica feliz em me ver feliz. Agradeci sorrindo, e ele disse:
— Mamãe, você é minha pequetitinha! Te amo!
E nos abraçamos.
Esse gestos tornam o meu dia ainda mais feliz.
Um beijo. Até mais."
"Paciente que chegou a ser reanimado após parada cardíaca cantou: 'Muitas vezes vou cair, mas sempre vou levantar'"
Dia 24 de agosto: 18h16min
"Hoje não posso deixar de contar, no meu diário, sobre um dos nossos pacientes: um homem de 48 anos, com história prévia de uma cardiopatia, associada a obesidade e hipertensão.
Ele chegou até mesmo a ser reanimado após uma parada cardíaca no Centro de Tratamento Intensivo (CTI). Ficou vários dias em ventilação mecânica, fez uso de ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea, na sigla em inglês, sistema que substitui o trabalho do pulmão) por 10 dias.
De manhã cedo, ele estava superfalante. Chegou até a cantarolar uma música que dizia assim: 'Tantas batalhas venci e muitas vou enfrentar, muitas vezes vou cair, mas sempre vou levantar, meu escudo é minha fé'. Fez todos da equipe chorarem de emoção. Ficamos muito contentes em vê-lo tão bem.
Ele fez uma videochamada para a família e contou que está sendo cuidado por um batalhão de baixinhas, já que quem cuida dele são, na maioria, mulheres com seu cerca de 1m50cm de altura, assim como eu.
Chegando em casa, João Miguel, meu filho, estava muito feliz, e brincamos de esconde-esconde. Imaginem os lugares onde tive que me esconder para tornar a brincadeira ainda mais divertida.
Um beijo. Até mais."
"Passagem da sonda teria que ser muito rápida. Paciente poderia ficar apenas poucos segundos sem oxigênio"
Dia 17 de agosto: 18h08min
"Hoje começamos a manhã com 99 pacientes no CTI covid-19, que tem 105 leitos — 90 pacientes com a doença confirmada e nove casos suspeitos.
Falei para minhas colegas enfermeiras que ganhei muito mais do que colegas novas nesta pandemia — ganhei amigas. Estou muito feliz com minhas parceiras e com a equipe de técnicos de enfermagem. O grupo é competente, muito comprometido e dedicado. Todos da equipe se colocam no lugar do outro, do próximo, fazendo o seu melhor.
Uma das minhas colegas me convidou para passarmos, juntas, uma sonda nasoentérica, que serve para alimentação, em uma paciente que não está conseguindo comer pela boca. Até aí, é um procedimento comum, que fazemos com frequência no hospital. Ela me pediu ajuda porque a nossa paciente está com uma máscara de ventilação não invasiva com 100% de oxigênio, e a passagem da sonda teria que ser muito rápida — a paciente poderia ficar apenas poucos segundos sem o suporte fornecido pelo equipamento.
A paciente é uma senhora de 68 anos que foi internada em 1º de agosto por tosse, falta de ar e dor no corpo. Dez dias depois, ela foi transferida para o CTI por oxigenação baixa no sangue, precisando de um suporte maior de oxigênio. Previamente, tem história de hipertensão, diabetes e obesidade.
Explicamos o procedimento para a nossa paciente, que está lúcida. Uma cena que me chamou a atenção é que ela estava segurando firme um terço. Passamos a sonda em 10 segundos, uma das vezes em que mais rapidamente passamos uma sonda nasoentérica. Deu tudo certo. A oxigenação no sangue não baixou. Ela nos agradeceu, e eu agradeci por sua ajuda e tranquilidade.
Em casa, João Miguel, meu filho, estava com muita saudade e me abraçou com carinho. Estamos felizes porque Michel passou o final de semana conosco. Fez um churrasquinho com João Miguel, que adora fazer churrasco com o pai. João Miguel, com certeza, será um bom assador, assim como o papai.
Um pedido do João Miguel antes do churrasco: que eu colocasse um batom. Perguntei o porquê. E ele falou:
— Para você ficar mais linda, mamãe.
Muito fofo esse guri! Coloquei um batom e me arrumei bem bonita. Foi como se fosse uma festa.
Um beijo. Até mais."
"Quadro pulmonar de nosso paciente de 19 anos, sem doenças prévias, se agravou"
Dia 10 de agosto: 19h09min
"Hoje tínhamos 98 pacientes no CTI covid-19, que tem 105 leitos — 90 pacientes com a doença confirmada e oito casos suspeitos.
Comecei a semana num ritmo intenso, acelerado, pois também trabalhei no sábado, durante a madrugada. Fui para o hospital ajudar nos cuidados aos pacientes em ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea, na sigla em inglês).
No sábado, durante o dia, o nosso paciente de 19 anos, sem doenças prévias (depoimento de 3 de agosto), precisou ir para o suporte de ECMO, pois seu quadro pulmonar se agravou. O ECMO substitui, de forma parcial ou total, a função dos pulmões.
A demanda de cuidados desses pacientes é muito grande. Estamos trabalhando em um campo poucas vezes visto em termos de gravidade e complexidade de cuidado dos pacientes, juntos em uma única unidade. Na minha, dos 10 pacientes, cinco estão em ECMO. Nunca tivemos tantos pacientes em ECMO juntos.
Comemoramos as vitórias e seguimos na luta cuidando com a maior dedicação do amor da vida de alguém. Cheguei em casa cansada, mas muito tranquila por ter feito o meu melhor junto da equipe.
Fui recebida com muito carinho pelo João Miguel, meu filho, que fez quatro aninhos e ainda está radiante pelo aniversário. Fizemos uma guerra de balões. Foi muito divertido. Ele disse:
— Eu amo balões, mamãe!
E eu disse:
— Eu amo você, Jejel!
Um beijo. Até mais."
"Menino de 19 anos, sem doenças prévias, está em estado muito crítico"
Dia 3 de agosto: 18h43min
"Cheguei ao plantão cedo e me surpreendi com um paciente jovem em estado muito crítico. Um menino de 19 anos, sem doenças prévias, que veio transferido de outra instituição.
Ele está há alguns dias em ventilação mecânica, com medicamentos analgésicos, sedativos e relaxante muscular em doses superelevadas para conseguir ventilar melhor — tudo isso por causa da covid-19.
Tomara que ele responda às medidas instituídas. Chega a ser assustador. Um menino forte. Essa doença é perigosa até para os mais jovens.
Chegando em casa, João Miguel estava muito feliz e me perguntou se, no seu aniversário, dia 7 de agosto, nós teremos música. Eu disse que sim. Teremos música e muitos super-heróis. Na festinha, seremos eu, ele e, por videochamada, a família. Mas será, com certeza, uma festinha muito feliz.
Beijo. Até mais."
"Quando o vi sem o tubo e ele me olhou, choramos de alegria"
Dia 27 de julho: 18h26min
"Hoje, minha manhã começou muito feliz. Nosso paciente de 49 anos, sem doenças prévias, que foi entubado em 19 de julho, foi extubado (desconectado do respirador) no domingo. Hoje, ele ganhou alta do CTI para a unidade de internação. Quando o vi sem o tubo e ele me olhou, sentou na cama, e choramos de alegria.
Lembro bem do que eu disse para ele antes de ser entubado. Perguntei se ele confiava em nossa equipe, e ele respondeu que sim e agradeceu.
Nossa! São essas vitórias que nos dão gás. Fiquei tão feliz que parecia que estava comemorando um gol.
Ele tem um filho de dois anos e muita vida pela frente. Ele só agradeceu por tudo o que fizemos. Saiu do quarto do CTI com seus próprios passos, em pé, com o auxílio da Fisioterapia e da Enfermagem, até o sentarmos em uma cadeira de rodas por segurança. Saiu aplaudido. Foi muito bom de se ver.
Chegando em casa, João Miguel me disse que eu sou muito bonita. E eu fiquei muito feliz.
Um beijo."
"Paciente recebeu balões em formato de coração para celebrar 20 anos de casamento no dia da alta do CTI"
Dia 22 de julho: 19h06min
"Amanhecemos com 90 pacientes no CTI covid-19 — 82 casos confirmados e oito suspeitos.
Hoje lembrei da história de um paciente em especial pela representatividade do momento da alta. Ele recebeu alta do CTI no dia em que completou 20 anos de união e amor com a sua esposa.
Ele tem 36 anos. Já contei a história dele antes aqui no Diário. Não tinha doenças prévias e chegou a ficar vários dias em ventilação mecânica. Utilizou até mesmo o suporte de ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea, na sigla em inglês), um sistema de alta complexidade que substitui o trabalho do pulmão (relatos de 24 e 29 de junho e 1º de julho).
O paciente teve alta para a unidade de internação e, nesse dia, a esposa pôde visitá-lo, conforme combinação prévia com a equipe multidisciplinar e com todos os cuidados de paramentação.
Ela entrou no CTI com balões em formato de coração e dedicatórias de carinho. Foi muito emocionante vê-los unidos, as fotos da família na parede e a sensação de realização de todos da equipe.
Eles saíram juntos e aplaudidos do CTI. Nosso paciente agradeceu muito a todos e desejou recuperação para o paciente do boxe ao lado. Preocupou-se com o outro, foi muito lindo. Um exemplo de pessoa, que se colocou no lugar daquele paciente que ainda continuava ali conosco.
Hoje à noite, eu e João Miguel faremos torcida em frente à televisão. Tem jogo do time do papai Michel, o clássico Corinthians x Palmeiras. Torceremos juntos para o Corinthians, onde ele trabalha como preparador físico.
Um beijo. Até mais."
"Antes da entubação, perguntei ao paciente se ele confiava em nossa equipe"
Dia 20 de julho: 20h23min
"Iniciamos nossa manhã com 91 pacientes no CTI covid-19 — 87 com a doença confirmada e quatro casos suspeitos.
Cheguei cedinho ao hospital, às 6h40min. Parecia que nem tinha saído de lá. Trabalhei, ontem, 12 horas durante o dia, e o plantão de domingo estava bastante agitado. Temos muitos pacientes graves e com muitas demandas de cuidados.
Ontem, entubamos dois pacientes na minha unidade. Lembro bem da conversa que tive com um deles antes da entubação. Ele estava falando pouco devido à falta de ar. Tentei passar bastante segurança para ele, dizendo que faríamos o nosso melhor. Perguntei se ele confiava em nossa equipe, e ele disse que sim, me olhando nos olhos. Agradeceu.
Fiz uma carinho na sua cabeça e disse que aplicaria uma medicação que lhe daria sono, e ele não sentiria nenhum desconforto. A entubação foi um sucesso. Não baixou a oxigenação no sangue e não teve nenhuma intercorrência. Saí aliviada.
Logo na sequência, entubamos outro paciente, também sem intercorrências. Elogiei a equipe pelo trabalho tão seguro e tranquilo.
Chegando em casa, João Miguel disse:
— Mamãe, agora você está liberada?
Tento dar mais atenção para ele. Brincamos com o Woody, do Toy Story, com o Mickey, a Minnie e o Thor. E tem que ter criatividade e diálogo para todos esses personagens!
Bom, esses momentos são de muita alegria e carinho. Me dão energia para o outro dia de trabalho.
Beijo. Até mais."
"Meu nariz tem uma cicatriz pelo uso da máscara. A pandemia tem deixado cicatrizes na vida das pessoas"
Dia 15 de julho: 19h15min
"Hoje, cedo da manhã, tínhamos 80 pacientes no CTI covid-19 _ 75 casos confirmados e cinco suspeitos. Nossa! São muitos pacientes.
Faz quatro meses que recebemos o nosso primeiro paciente com covid-19. Ainda lembro bem. Era um caso típico, de um paciente vindo de viagem ao Exterior. Completamente diferente do que estamos vivenciando ultimamente, com a transmissão comunitária. Não poderia imaginar que teríamos tantos pacientes internados pela mesma doença e em estado tão grave.
Antes, tínhamos cerca de 20% dos pacientes nesse nível de gravidade. Agora, infelizmente, eles são a grande maioria.
Hoje mesmo não conseguimos virar de lado na cama uma paciente de 64 anos, pois a oxigenação no sangue baixou tanto e ela ficou respirando tão mal, mesmo no ventilador mecânico, que o suporte de oxigênio teve que ser elevado ao máximo, que é 100%. Como história prévia, ela tem uma doença cardíaca.
E é nessa apreensão que estamos vivenciando o nosso dia a dia nessa pandemia, torcendo para que os nossos pacientes se recuperem.
Na minha manhã, durante toda a semana, eu geralmente passo 95% do tempo em pé, entrando e saindo dos quartos dos pacientes, realizando cuidados de enfermagem, fazendo o gerenciamento desse cuidado e implementando-o na prática com a equipe de enfermagem.
Tenho realizado também muitas capacitações à beira do leito, ensinando e aprendendo o uso das diferentes tecnologias que surgiram com a pandemia.
Não faço intervalo para o lanche por opção, pois a sala do lanche e esse intervalo representam o momento em que me sinto mais exposta.
Para completar nossa manhã intensa, um paciente de 50 anos que foi quatro vezes pronado (virado de bruços para melhora da respiração) e ficou 22 dias em ventilação mecânica e fez uso, por nove dias, do suporte de ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea, que substitui o trabalho dos pulmões) recebeu alta para a unidade de internação. Estava muito bem, sem nenhum desses dispositivos. Lembro de suas palavras:
— Eu só tenho a agradecer pelo que vocês fizeram por mim, pela minha pessoa.
E todos da unidade aplaudiram, falando em voz alta:
— Parabéns!
Chegando em casa, me olhei no espelho e vi o meu rosto marcado pela máscara e pela touca. Meu nariz teve uma lesão pelo uso da máscara que deixou uma cicatriz. Assim como essa pandemia tem deixado suas cicatrizes na vida das pessoas.
Agora, vou aproveitar com o João Miguel, meu filho, conversar com o Michel, meu marido, e descansar para amanhã, que será outro dia intenso.
Abraços. Até mais."