O paciente em estado grave que necessita do auxílio de um ventilador mecânico para respirar permanece sedado e só começa a despertar quando seu quadro clínico se estabiliza. Com a redução gradual da medicação, ele vai acordando, ainda com o tubo que o conecta à máquina introduzido na boca, descendo até a traqueia. Vencida, ainda que parcialmente, a briga contra a doença, é como renascer. O processo pode ser lento, e a imagem da pessoa debilitada por dias ou semanas de internação em uma unidade de terapia intensiva (UTI) sensibiliza os familiares, habituados à versão sadia e autônoma daquele indivíduo, anterior à enfermidade. Há de se ter coragem para encarar alguém nessas condições.
Foi esse abalo visual um dos causadores do choro da visitante que passou pelo Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital Moinhos de Vento (HMV) em 29 de abril. Preocupada e saudosa, ela esteve em breve contato com o pai, que voltava a abrir os olhos, se mexer, perceber o que acontecia ao redor. Ele tentou se comunicar, iniciativa interpretada como bom sinal pela equipe médica. A filha se tranquilizou ao observar os progressos, mas não conteve o choro diante do corpo emagrecido sobre o leito. Na saída, desabafou:
– Eu tinha que olhar os olhos azuis do meu pai de novo.
A médica acalmou a angústia da visitante:
– Não só olhaste como vais continuar olhando porque ele está indo muito bem.
Não testemunhei a cena, mas consigo visualizá-la mentalmente com nitidez, dado o impacto que o diálogo me provocou. A tocante descrição foi relatada a mim e a dezenas de milhares de leitores de GZH e Zero Hora e ouvintes da Rádio Gaúcha pela intensivista Roselaine Pinheiro de Oliveira, chefe do Serviço de Medicina Intensiva Adulto do HMV. Roselaine é uma das participantes do Diário do Front, projeto que escalou profissionais da saúde, envolvidos diretamente no cuidado de doentes com diagnóstico suspeito ou confirmado de infecção por coronavírus, para narrar o capítulo local da história da pandemia nos hospitais da capital gaúcha.
A ideia de colher depoimentos de quem estaria na linha de frente contra a covid-19 surgiu em meados de março, quando a população do Rio Grande do Sul se preparava para o recolhimento, à espera do desconhecido. O editor Carlos Etchichury pediu que eu encontrasse um médico disposto a contar detalhes do seu cotidiano. Sugeri que convidássemos mais de um, mobilizando olhares atentos em lugares diferentes. A partir de conversas com assessores de imprensa e gestores das instituições, selecionei o trio que protagonizaria a quase totalidade dos 170 depoimentos publicados em GZH e no jornal impresso, emprestando as próprias vozes para as 70 edições do quadro Diário do Front no programa Gaúcha+, da Rádio Gaúcha, apresentado por Leandro Staudt e Kelly Matos.
– A tarde foi agitada: internações, transferências de pacientes que acabaram não positivando para o coronavírus. Um paciente precisou ser entubado, e isso gera bastante estresse. Os pacientes graves ainda estavam muito instáveis, precisando de todo o cuidado no manejo. O CTI está praticamente lotado, ainda temos duas vagas nos 17 leitos. Um dia muito difícil, um dia muito estressante, um dia muito cansativo. A sensação é de que o dia começa, mas não termina, e isso realmente é muito desgastante – descreveu Roselaine às 20h40min de 1º de abril, em um áudio de WhatsApp, na sua primeira contribuição.
O descanso possível
Roselaine aceitara a proposta de imediato. Ansiava pela oportunidade de explicar ao público as atribuições do intensivista, pouco conhecidas fora da área médica. No mesmo áudio, ela revelou o gosto pela literatura, janela de fôlego entre tantos artigos científicos publicados com as descobertas sobre o Sars-CoV-2. Dedicava-se, então, a O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, meu livro preferido, o que já motivou uma conversa à parte. Sem demora, a doutora Roselaine se tornaria a minha amiga Rose – que ainda não conheço pessoalmente, por conta do teletrabalho e do distanciamento –, consultora informal para destrinchar temas técnicos do universo das UTIs que eu abordaria em inúmeras reportagens pela frente.
Isis Marques Severo, enfermeira intensivista do CTI do Hospital de Clínicas, e André Luiz Machado da Silva, médico infectologista do Hospital Conceição, também se entusiasmaram com a missão. Propus aos três o mesmo desafio: contem o que mais chamou a atenção a cada dia, o que só vocês estão vendo, tudo aquilo que a audiência não sabe que está acontecendo. Eles estavam em locais críticos, de acesso super-restrito, com alto risco de contágio, onde nem a presença dos familiares dos pacientes, salvo raras exceções, é autorizada. Sugeri que falassem também um pouco do que se passava longe do trabalho, do que preenchia as horas de descanso, da esfera doméstica.
João Miguel, quatro anos, filho de Isis, apareceu com frequência – tornou-se até personagem de uma história em quadrinhos, no traço do ilustrador Gilmar Fraga.
– Meu turno foi muito difícil. Dois pacientes com covid-19 faleceram durante a manhã: um idoso e uma jovem. Ficamos tristes da mesma forma porque são vidas que se foram de suas famílias. São amores da vida de alguém. Toda a equipe fica sensibilizada, cabisbaixa – disse a enfermeira em 13 de maio.
Quando ela chegou em casa, no fim daquela tarde, João Miguel queria brincar.
– Ele havia se escondido no quarto dele. Logo o achei. Ele ficou chateado, não queria ser descoberto tão rápido. Eu quis acelerar a brincadeira e não deu certo – lamentou Isis.
O esconde-esconde prosseguiu, até o menino surgir do meio das cobertas, dando risada.
– Me encheu de beijos. Parece que sabe que hoje estou precisando. Amanhã é outro dia. Que seja melhor – finalizou ela, que conquistou admiradores pela doçura e tranquilidade.
As mensagens piscavam no meu celular à noite ou de manhã cedo – hábito de André, sempre atento aos percentuais de ocupação de leitos, ao encerrar o plantão da madrugada. Eu transcrevia o conteúdo das gravações para o site e o jornal, selecionava os melhores trechos para que fossem editados pelos operadores de áudio da Gaúcha, montava um roteiro para a minha entrada no ar à tarde. Repletas de dramas, tristezas, alegrias, conquistas e superação, as histórias conquistaram outros espaços. Até aqui, recebi oito convites para aulas e palestras virtuais em universidades. Nos bate-papos com professores, pesquisadores e alunos de Comunicação e Ciências da Saúde, compartilhei a experiência da reportagem em tempos de pandemia – contando o que vi quando encarei o front, nos setores exclusivos para covid-19 do CTI do Conceição e da emergência da Santa Casa – e os enredos emocionantes do Diário.
A identidade dos pacientes sempre foi mantida em sigilo. Muitos acabaram aparecendo em reportagens quando já se recuperavam em casa: a mãe que pediu para ligar para a filha momentos antes de ser entubada, a gaúcha radicada havia mais de 20 anos em Nova York que adoeceu ao desembarcar em Porto Alegre para conhecer o neto, o engenheiro que recobrou a lucidez na UTI ao som de Beatles.
O fim de um ciclo
Novas colaboradoras se uniram ao grupo inicial no decorrer deste 2020 histórico, dando ainda mais variedade à cobertura: a médica intensivista Denise Matter, do Hospital Ernesto Dornelles, e a clínica geral Nadiana Inocente, da Santa Casa.
Em 1º de outubro, completaram-se seis meses do Diário do Front. Encerra-se um ciclo importante neste espaço de interlocução entre o jornalismo e a medicina, mas não a pandemia. Os cuidados que a transmissão do coronavírus impõe continuam imprescindíveis na tentativa de frear e reduzir os registros ainda elevados de infecções e mortes, enquanto torcemos pelas vacinas em teste.
— A doença parece ter dado uma trégua. A segunda onda que vem acontecendo agora no Hemisfério Norte deverá ocorrer aqui, mas a intensidade dela dependerá da educação das pessoas. Se mantiverem o distanciamento social, o uso de máscaras, a higienização das mãos e o isolamento após a identificação precoce dos sintomas de covid-19, o número de casos poderá ser menor — avaliou André.
— Espero que o pior tenha passado.