Moradora de Nova York há mais de duas décadas, Sônia Maria Jardim Moreno, 62 anos, costumava visitar a família no Brasil na época do Natal. Neste ano, um motivo especial, o nascimento do neto Théo, mudou a data da viagem. A chef de cozinha estava ansiosa para trazer o enxoval comprado nos Estados Unidos e não queria transferir a data do embarque.
O caos começava a engolir a metrópole americana, cidade que se tornaria a mais severamente atingida pela pandemia no mundo, quando ela embarcou, em 21 de março. Com medo de uma possível infecção por conta de três fatores de risco combinados — idade, asma e hipertensão —, confidenciou à filha, a executiva de contas Camila Moreno Pastorini, 37 anos, antes de partir:
— Se eu pegar esse vírus, não vou sobreviver.
A mãe só piorava. Eu disse que não queria vê-la entubada. Do jeito que a situação estava indo, tive a sensação de que não a veria mais. Não queria que a imagem dela entubada fosse a última que eu teria. Quando me ligavam do hospital, sabia que poderia esperar qualquer coisa,
CAMILA MORENO PASTORINI
Executiva de contas
Dias depois de chegar a Porto Alegre, Sônia, natural de São Borja, começou a sentir os primeiros sintomas gripais (não se pode precisar onde ela foi contaminada). Por conta da asma, a tosse, no princípio, não chamou a atenção, mas logo veio a febre. Quando a respiração ficou difícil, buscou atendimento em uma clínica particular. Uma médica a orientou a ir direto para o Hospital de Clínicas, uma das instituições de referência para covid-19 na Capital. Começava, em 30 de março, uma internação que duraria 36 dias — 26 dos quais na UTI —, com complicações que colocariam em risco, mais de uma vez, a sobrevivência da paciente.
Quando soube do resultado positivo do exame da mãe para coronavírus, a pressão de Camila disparou, chegando a 17 por nove. Estava na 38ª semana de gestação. No final da tarde de 31 de março, a obstetra que a acompanhava pediu que ela fosse para o hospital. De cesárea, Théo nasceu às 22h50min.
— Ele nasceu bem, graças a Deus, mas foi um parto bem incomum se comparado ao da nossa primeira filha. Fiz teste pra coronavírus quando cheguei, e ficamos na ala de suspeitos, por causa do contato que tivemos com minha mãe. Não pude pegar meu filho logo que nasceu, meu marido também não — recorda Camila. — Ninguém foi lá acompanhar o nascimento. Ninguém conhece o Théo até hoje — conta ela, cujo teste deu negativo, bem como o do marido.
Se estivesse lá, não teria sobrevivido. Fui muito bem tratada aqui. Tenho muito a agradecer. Renasci.
SÔNIA JARDIM MORENO
Chef de cozinha
Nos primeiros dias de internação, enquanto ainda estava em um leito clínico, Sônia falava com a família pelo WhatsApp. Com a piora e a transferência para o centro de tratamento intensivo (CTI), os diálogos cessaram. Foram semanas de apreensão, com picos de desespero, especialmente para Camila, em pleno puerpério, tendo de cuidar do recém-nascido e também da primogênita, Beatriz, cinco anos.
— A mãe só piorava. Eu disse que não queria vê-la entubada. Do jeito que a situação estava indo, tive a sensação de que não a veria mais. Não queria que a imagem dela entubada fosse a última que eu teria. Quando me ligavam do hospital, sabia que poderia esperar qualquer coisa — lembra Camila.
No final de abril, quando o quadro de Sônia se estabilizou e a sedação começou a ser reduzida, a filha reviu a mãe pela primeira vez desde que adoecera, por meio de uma chamada de vídeo.
— Oi, vovó — saudou Beatriz.
— Oi, mãe — disse Camila, brincando com a aparência de Sônia, que tinha o cabelo desgrenhado.
Ela teve momentos muito graves. A entubação foi muito difícil. O tempo dependente de ventilação mecânica foi longo, e a reabilitação, lenta. Quando ela ficou bem, toda a equipe se sentiu recompensada.
ÉDINO PAROLO
Médico intensivista
A chef de cozinha tentou falar, mas a voz saiu fraca. Camila temia ver a mãe emagrecida ou inchada, mas ficou aliviada ao constatar que a aparência da idosa estava boa. Prevaleceu o sentimento de felicidade pelo reencontro, ainda que virtual, tão aguardado.
— Ela está fora de perigo — anunciou um dos médicos.
Com a alta do CTI e a volta para o quarto, exigiu-se a presença permanente de um acompanhante. O terapeuta ocupacional Leandro Jesuino, 38 anos, marido de Camila e genro de Sônia, assumiu a tarefa, o que dificultou a rotina doméstica de Camila, que ficou sozinha com as crianças. Sônia passou por um período de delirium, síndrome que acomete doentes hospitalizados e afeta a cognição.
Ela não sabia onde estava, conversava com pessoas que não estavam presentes, perguntava qual era o preço da passagem para Nova York. Na reta final da internação, Camila rumou para o Clínicas, e Leandro assumiu o cuidado com os filhos em casa — o bebê foi alimentado com fórmulas prontas enquanto a mãe não pôde dar o peito.
— Ela arrancou a sonda, tirava as fraldas, não queria fazer fisioterapia. Dei uns xingões. Ela não queria comer. Forcei-a a comer. Fui mãe dela por alguns dias — relata Camila. — Ela melhorou absurdamente.
Édino Parolo, médico intensivista do Clínicas, integrou a equipe que acompanhou Sônia. Ele explica que o delirium pode assustar quem conhece o paciente em seu estado normal e, de repente, depara-se com ele descaracterizado, agindo de maneira diferente da habitual, com um discurso sem sentido. O delirium é uma alteração do estado mental secundária a outras doenças. Em geral, ocorre quando há uma enfermidade severa e é mais comum em idosos:
— É frequente em pacientes graves com muito tempo de hospitalização, principalmente na UTI. O ambiente é muito inóspito, o ciclo circadiano (alternância dos períodos de sono e vigília) fica alterado, sempre tem alguém trabalhando na volta. Pode levar de dias a semanas para voltar ao normal. Depende das outras condições melhorarem também — afirma Parolo.
Sônia se tornou motivo de grande preocupação para os profissionais que se revezavam no atendimento.
— Ela teve momentos muito graves. A entubação foi muito difícil. O tempo dependente de ventilação mecânica foi longo, e a reabilitação, lenta. Quando ela ficou bem, toda a equipe se sentiu recompensada — comenta Parolo.
A paciente guarda poucas lembranças do período dentro do Clínicas. Tem episódios que lhe causam dúvidas: não sabe se foram reais, sonhos ou alucinações. O pior momento, destaca a chef, foi quando lhe informaram a respeito da necessidade de conectá-la a um respirador artificial.
— Até hoje, tenho, na minha cabeça, a imagem de um caixão. Parecia que eu seria enterrada. Achei que era o fim. Fechei os olhos, esperei a sedação e pensei: agora é Deus comigo.
Se adoecesse nos EUA, que enfrentam uma falta crítica de leitos e respiradores, Sônia tem certeza de que seu destino seria outro.
— Se estivesse lá, não teria sobrevivido. Fui muito bem tratada aqui. Tenho muito a agradecer. Renasci aqui — garante a paciente, que recebeu alta em 5 de maio, após um tratamento totalmente gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e continua se recuperando na residência da filha.
A impactante experiência levou Sônia a tomar uma decisão que vinha sendo considerada há algum tempo — não quer mais voltar para o lar que deixou em solo americano.
— Perdi muita coisa nesses 23 anos. O que ganhei lá não paga 10% do que posso viver aqui com eles.