Desafio global, a pandemia de coronavírus tem colocado algumas especialidades médicas em evidência. Dentro das unidades de terapia intensiva (UTIs), para onde são encaminhados os pacientes com covid-19 mais graves, o intensivista é um personagem imprescindível. Treinado para oferecer cuidados aos criticamente doentes — ou àqueles que podem atingir esse estágio —, esse profissional realiza um dos procedimentos mais comentados dos últimos tempos, a entubação — conectar a pessoa com insuficiência respiratória a um ventilador mecânico, para que possa sobreviver enquanto seus pulmões não estiverem reabilitados para funcionar de forma independente.
Em tese, todo médico pode ser treinado para fazer entubações e extubações (a retirada do respirador artificial). Outros especialistas, como os emergencistas e anestesiologistas, também são bem preparados para isso. Depois dos seis anos da graduação, o interessado em medicina intensiva passa por duas residências — a primeira e mais comum costuma ser em medicina interna, e a segunda, em terapia intensiva, cada uma delas com duração de dois anos.
A saturação de oxigênio no sangue, ou seja, a quantidade de oxigênio presente na circulação em dado momento, é um parâmetro de avaliação essencial da função respiratória. É medida com o oxímetro de pulso, espécie de pregador colocado em um dos dedos da mão. O normal é que a saturação esteja acima de 95%. Em níveis inferiores, funciona como um alerta para o comprometimento dos pulmões. Uma avaliação determinará se e quando o paciente será entubado.
Para que seja submetido à chamada entubação traqueal de sequência rápida, o doente recebe, na veia, três fármacos: um sedativo, um analgésico e um bloqueador neuromuscular. Essa combinação, que surte efeito em menos de dois minutos, permite que o paciente durma e não sinta dor, além de impedir os movimentos respiratórios e de contração muscular, facilitando o procedimento. A entubação pode ser do tipo orotraqueal (pela cavidade oral) ou nasotraqueal (pela cavidade nasal), com o tubo sendo inserido pela boca e descendo até a traqueia. Preferencialmente, opta-se pela modalidade orotraqueal, mais segura e efetuada de forma mais rápida.
Quando fazemos a entubação de sequência rápida, o objetivo é evitar que o paciente tussa. O bloqueador muscular minimiza a chance de ele tossir. Se tossir, pode gerar gotículas expelidas em alta velocidade e contaminar quem não estiver adequadamente equipado.
FABIANO NAGEL
Médico intensivista
Ao lado do leito, o médico eleva a cabeceira da cama, para que permaneça na altura do seu quadril. A cabeça do paciente é inclinada para trás, ficando o nariz apontado para cima, naquela que é conhecida como "posição do farejo". Por meio de uma máscara, o paciente recebe oxigenação com concentração de 100%. Monitoram-se os batimentos cardíacos e a saturação de oxigênio na corrente sanguínea. Um laringoscópio (instrumento com uma lâmpada na ponta) possibilita a visualização da região da traqueia e da epiglote para que, então, coloque-se o tubo plástico pela boca. Um balão, na extremidade externa do tubo, é insuflado, e assim começa a se administrar a respiração mecânica, viabilizada por um ventilador. Essa movimentação, demandada em situações de urgência, conclui-se em segundos.
— No caso da covid-19, o quadro de insuficiência respiratória aguda apresenta alterações mais ou menos graves na função pulmonar. Os pacientes ficam sob sedação e analgesia contínuas para receber essa ventilação invasiva. Isso demanda uma série de conhecimentos de fisiologia pulmonar e mecânica respiratória — explica Fabiano Nagel, médico intensivista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e do Hospital Conceição e coordenador do Grupo de Trabalho para Enfrentamento da Covid-19 do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers).
A covid-19 não acomete só o pulmão. Pode haver comprometimento cardiovascular, neurológico, renal. Apesar de termos todo esse treinamento para lidar com pacientes graves, essa doença é nova. Tivemos que modificar os protocolos de atendimento porque não é uma doença igual às outras.O dia a dia tem sido desafiador.
LUCIANA TAGLIARI
Médica intensivista
Para a extubação, o paciente precisa estar estável, em parecer dado pela equipe que o assiste. Nesta etapa, a sedação é interrompida, para que o doente fique desperto e colaborativo. Desconectado do ventilador mecânico, ele vai sendo levado a voltar a respirar sozinho. Primeiro, respira pelo tubo que foi colocado até a traqueia por cerca de 30 minutos, recebendo oxigênio suplementar. Se, dentro desse período, os parâmetros se mantiverem normais, o balonete é então desinsuflado, retirando-se o tubo. Já extubado, o paciente pode receber oxigênio por máscara ou óculos nasal (um cateter encaixado nas narinas e preso atrás da orelha) durante seu período de recuperação.
A utilização dos equipamentos de proteção individual (EPIs) é indispensável, uma vez que os profissionais têm contato direto com as vias aéreas do infectado — e são as secreções do nariz e da boca que podem provocar o contágio por coronavírus (gotículas e aerossóis, que são microgotículas invisíveis que pairam no ar). Os principais acessórios são máscara do tipo N95 ou PFF2, escudo facial, touca, luvas, avental impermeável e sapatos fechados.
— Quando fazemos a entubação de sequência rápida, o objetivo é evitar que o paciente tussa. O bloqueador muscular minimiza a chance de ele tossir. Se tossir, pode gerar gotículas expelidas em alta velocidade e contaminar quem não estiver adequadamente equipado — detalha Nagel. — Nesse contexto, ficamos sob muito estresse. Vários profissionais faleceram ao redor do mundo depois de se contaminar durante a entubação ou a extubação — acrescenta.
Na extubação, tossir é inevitável, já que o doente não está mais sedado nem sob ação do bloqueador neuromuscular. A passagem do tubo pela garganta é irritativa, causando também expectoração e maior produção de saliva. Trata-se, provavelmente, do momento mais arriscado para os profissionais que estão ao redor. Médica intensivista dos hospitais Moinhos de Vento e Ernesto Dornelles, na Capital, Luciana Tagliari complementa:
— Obrigatoriamente, o paciente vai tossir. Ele precisa respirar e terá o reflexo de tosse.
Luciana ressalta que doentes com covid-19 têm especificidades que ainda estão sendo desvendadas por pesquisadores — ela própria aproveita os intervalos entre um turno de trabalho e outro para se atualizar com a leitura dos mais recentes artigos científicos. A experiência de colegas chineses e italianos, conta Luciana, tem ajudado as equipes, apontando os caminhos mais acertados.
— Essa doença não acomete só o pulmão. Pode haver comprometimento cardiovascular, neurológico, renal — enumera a intensivista. — Apesar de termos todo esse treinamento para lidar com pacientes graves, essa doença é nova. Tivemos que modificar os protocolos de atendimento porque não é uma doença igual às outras. Até dentro da população com coronavírus existem dois tipos de comprometimento pulmonar. O dia a dia tem sido desafiador.
De acordo com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), o Rio Grande do Sul contabiliza 693 intensivistas, o que representa uma média de 5,9 especialistas por 10 mil habitantes. No país, há um total de 8.171 intensivistas, número que força a proporção para baixo — são 3,5 intensivisitas por 10 mil habitantes. Cristiano Franke, médico intensivista membro da diretoria ampliada da Amib e da Sociedade de Terapia Intensiva do Rio Grande do Sul (Sotirgs), destaca que há falta de médicos e também de outros profissionais fundamentais para o bom funcionamento das UTIs, como fisioterapeutas com especialização em fisioterapia intensiva e respiratória, enfermeiros e técnicos de enfermagem.
— Aqui temos um cenário mais favorável do que o de outros Estados, mas ainda é muito pouco. Há concentração desses especialistas na Capital e na Região Metropolitana. Tem ocorrido uma procura maior pela medicina intensiva nos últimos anos, mas ainda não é o suficiente para cobrir todas as nossas necessidades — comenta Franke.