De todas as complicações possíveis em decorrência da covid-19, Rafael Dutra, 41 anos, desenvolveu praticamente todas. O futuro do curso da pandemia ainda é uma incógnita, mas, até aqui, o gerente de casa noturna figura entre os casos mais graves — se não o pior de todos — que passaram pelo Centro de Tratamento Intensivo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
Dependente de um ventilador mecânico para poder respirar, Dutra teve de ser reanimado após duas paradas cardíacas e passou mais de um mês internado. Como contraponto ao quadro dramático, já é possível a comemoração de uma grande vitória: ele voltou para casa, na Capital, onde continua em recuperação.
Dutra começou a ter febre e dor no corpo em meados de março, depois de uma viagem de férias ao Rio de Janeiro. O primeiro atendimento foi em Canoas, de onde voltou com a orientação de buscar auxílio novamente caso sentisse falta de ar. Ao despertar no dia seguinte, já puxava o ar com dificuldade. Indicaram-lhe o HCPA como um dos centros de referência para coronavírus.
Ocupou brevemente um leito clínico de uma ala reservada, sendo transferido depois para o CTI — onde permaneceria por 26 dias, 22 dos quais entubado (o processo de entubação consiste em inserir um tubo, pela boca, para que o respirador artificial leve ar para os pulmões).
— O Hospital de Clínicas conseguiu me salvar — declarou Dutra, um dia após a alta, no final de abril, em entrevista por telefone de sua residência, no bairro Vila Nova.
O paciente teve uma pneumonia gravíssima, queda brusca da pressão arterial, insuficiência renal (os rins pararam totalmente de funcionar) e complicações cardíacas, além de receber transfusões de sangue para aplacar uma anemia da doença crítica (que não é exclusividade de pacientes com covid-19). Dutra quase morreu — mais de uma vez. Chegou a ser extubado (o ventilador mecânico foi desconectado), mas, como seu coração parou, teve de ser entubado novamente.
— Ele ficou em terapia de suporte máximo até conseguirmos controlar a doença — recorda o intensivista Rafael Moraes.
Se as pessoas tivessem um pouco mais de bom senso e amor à vida, um pouco mais de conhecimento, elas fariam o que todo mundo está pedindo (ficar em casa). Isso não é brincadeira, é uma doença séria. Eu sou a prova, por enquanto viva, da pior maneira que ela ataca.
RAFAEL DUTRA
Gerente de casa noturna
Do lado de fora, a esposa do paciente, a micropigmentadora Bruna Sarate, 27 anos, acompanhava com angústia os boletins médicos: uma leve melhora em um dia, a manutenção do mesmo quadro crítico em outros, uma reação que enchia todos de expectativa em determinado momento.
— Estamos fazendo todo o possível para salvá-lo — ouviu Bruna, que recebeu acompanhamento psicológico por telefone.
Com a estabilização da situação, Dutra foi sendo levado a despertar da sedação. Nesses momentos, quando começa a recobrar a consciência, lentamente, o paciente é orientado pelos médicos, que propõem perguntas para situá-lo a respeito do que aconteceu e do lugar onde está.
— Sabe que dia é hoje? — questionou um membro da equipe assistencial.
Ao descobrir a data, levou um susto:
— Bah, já? Passou meu aniversário e eu nem vi.
Se ele não estivesse em um local com uma estrutura e uma equipe muito boas, ele não estaria vivo. Como é jovem e relativamente saudável, com capacidade física para enfrentar uma infecção grave que não tem tratamento, sabíamos que, se o tratássemos bem, ele sairia dessa. Sempre acreditamos nisso, sempre tivemos essa esperança.
RAFAEL MORAES
Médico intensivista
Padrasto de Kauê, 10 anos, e pai Rafaella, quatro, o gerente — que tem hipertensão, enfermidade para a qual toma remédio há cerca de oito anos, e obesidade — está se recuperando em casa. Perdeu 14 quilos desde que adoeceu. Está se recuperando aos poucos. Ainda se sente fraco e tem dificuldade para caminhar. Deve fazer fisioterapia muscular e respiratória e retornar ao hospital para reavaliações.
— Minha família sofreu mais do que eu. Eu "apaguei", mas ficaram marcas. As sequelas emocionais são sérias — relata.
Abalado pela experiência de quase morte, o gerente não fez questão de se inteirar de todos os detalhes do que aconteceu durante o período em que esteve no HCPA. Acompanha parte do noticiário sobre a pandemia, na torcida pela descoberta de uma vacina, e faz um apelo à população:
— Se as pessoas tivessem um pouco mais de bom senso e amor à vida, um pouco mais de conhecimento, elas fariam o que todo mundo está pedindo (ficar em casa). Isso não é brincadeira, é uma doença séria. Eu sou a prova, por enquanto viva, da pior maneira que ela ataca. Nunca imaginei que ficaria em um hospital na minha vida e, na primeira vez, fiquei mais de 30 dias.
Assim que retornou para casa, Dutra dormia mal. Acordava pensativo: "Será que vou melhorar? Será que isso daí vai passar?". Agora, o sono está mais tranquilo.
— Estou aceitando melhor o que aconteceu. Às vezes, tenho uma recaída. Daí começo a pensar em coisas boas — conta.
Moraes enumera os fatores que contribuíram para que o paciente conseguisse contornar o quadro tão severo. Um deles, sublinha o especialista, foi o de que o sistema de saúde estava apto a recebê-lo.
— Se ele não estivesse em um local com uma estrutura e uma equipe muito boas, ele não estaria vivo. Como é jovem e relativamente saudável, com capacidade física para enfrentar uma infecção grave que não tem tratamento, sabíamos que, se o tratássemos bem, ele sairia dessa. Sempre acreditamos nisso, sempre tivemos essa esperança — acrescenta o médico intensivista.
De acordo com o paciente, outro elemento parece ter sido fundamental: a fé e o pensamento positivo de quem acompanhava sua evolução.
— Sou católico, mas acredito em tudo o que me disseram. Deus existe para uns de uma forma e, para outros, de outra. Acredito que as orações das pessoas ajudaram a me salvar.