Ao longo de seis meses, quatro médicos e uma enfermeira convidados por GZH, Rádio Gaúcha e Zero Hora compartilharam dramas, medos e alegrias com leitores e ouvintes. O Diário do Front encerra o seu ciclo neste espaço com um balanço final dos relatos de profissionais da saúde no combate ao coronavírus. Abaixo, veja os depoimentos de Roselaine Pinheiro de Oliveira, médica intensivista do Hospital Moinhos de Vento.
"O Diário do Front me permitiu fazer reflexões profundas e me tornar uma profissional melhor, um ser humano melhor"
Dia 29 de setembro: 21h08min
"Há seis meses, recebi o primeiro contato da Larissa Roso convidando e explicando o que seria o Diário do Front. Lembro bem que a primeira coisa que falei é que seria importante, como médica intensivista, falar da nossa especialidade e dar visibilidade a ela, porque praticamente as pessoas não conheciam o papel do médico intensivista antes da pandemia.
No início da pandemia, lembro que falei que 'o dia começa mas não termina'. Continuamos com trabalho muito intenso, com pacientes muito graves, mas temos a sensação do dever sendo cumprido, embora estejamos todos muito cansados.
Esse olhar sobre o front me fez repensar ainda mais o dia a dia e todas as situações que enfrentamos cuidando dos pacientes muito graves, suas intercorrências, seu quadro clínico, cuidando dos familiares e dando uma atenção toda especial em um momento de muita fragilidade porque esse distanciamento social também atingiu as famílias. Temos sempre um olhar e um trabalho bem importante para que esse abismo emocional seja minimizado.
Ainda temos muito pela frente. A pandemia não terminou. Seguimos no trabalho, mas faz seis meses que aprendemos bastante com essa doença e o impacto dela na vida das pessoas. Seguimos com a esperança de que, a cada dia, possamos ter um número menor de pacientes.
O Diário do Front permitiu que pudéssemos fazer reflexões mais profundas de situações que, muitas vezes, no final do dia, antes de dormir, eu até relembrava, mas o fato de parar para fazer o relato também fez eu me tornar, certamente, uma profissional melhor e um ser humano melhor.
Muito obrigada ao Grupo RBS e especialmente à Larissa pela confiança, pelo carinho e por terem nos oportunizado ser os olhos da imprensa dentro do CTI do Hospital Moinhos de Vento."
"Paciente emocionado por estar bem faz tudo valer a pena"
Dia 28 de setembro: 22h29min
"É muito gratificante acompanhar um paciente que foi entubado e colocado em ventilação mecânica por covid-19 quando ele começa a melhorar.
Tive a oportunidade de acompanhar um paciente jovem, com menos de 50 anos, que foi entubado, esteve em estado bem grave. Depois de extubado (desconectado do respirador), acordado, conversou conosco bastante emocionado. Disse que está melhor.
Perguntei se ele estava se sentindo bem. Ele ainda se sente um pouco cansado, nitidamente fica muito emocionado, e se queixou da ausência da família, dizendo que tinha sido esquecido ali no boxe do CTI.
Expliquei que não, que a família não o esqueceu de forma alguma. É que, pelas normas de segurança, as visitas não são recomendadas para evitar aglomeração de pessoas na recepção do hospital, na recepção do CTI e para a segurança de todos, apesar de todo o nosso protocolo.
Pedi que ficasse tranquilo porque, por uma questão institucional, apesar de termos visitas virtuais, iniciaremos uma agenda de visitas presenciais. Aí ele começou a chorar compulsivamente, ficou muito emocionado e disse que eu tinha dado a melhor notícia para ele naquele momento. Eu disse que uma das melhores notícias foi a de que ele foi extubado hoje. Saiu do respirador, 'saiu esse tubo da tua garganta', está falando, está melhor. Ele chorava compulsivamente.
Todo mundo me chama de Rose, e ele disse que eu era uma rosa muito bonita e que jamais esqueceria aquele momento.
Eu falei:
— O momento é teu! E tu vais começar a ver a tua família agora.
Foi muito emocionante. Ele agradeceu a toda a equipe, dizendo que o nosso trabalho era muito importante, que tínhamos devolvido a vida para ele. Descobri que dou aula para o filho dele na universidade. Ele chorava por qualquer coisa.
Como é bom, no meio de tanta tristeza, tanta dor, tanta angústia, tanta limitação que essa pandemia nos impôs, conversar com um paciente emocionado por estar bem, por estar se recuperando e por saber que vai reencontrar a família e voltar à vida que tinha antes. Faz tudo valer a pena.
"Eu sei que não posso, mas queria te dar um abraço', disse a filha de 12 anos de um paciente em estado grave"
Dia 21 de setembro: 20h45min
"As doenças exigem de nós uma capacidade muito grande de compreensão, de readaptação a algumas condições na vida e de resiliência para enfrentar situações bem dolorosas e difíceis.
A covid-19 é mais uma doença, uma doença considerada nova, em todo esse contexto. Mas outras doenças continuam existindo, e isso exige que nós tenhamos também empatia por situações graves cujo desfecho não é muito bom.
Frente a uma situação assim, conversar com uma criança de 12 anos que está vendo o pai em estado muito grave, com a expectativa de um desfecho muito ruim, é muito difícil. Para nós, adultos, já é complicado, imagina para uma criança. E ter que explicar para ela sem perder a ternura, sem perder a empatia e para que ela se sinta acolhida, tentando explicar exatamente o que está acontecendo, é muito difícil.
E foi uma situação difícil. Uma filha chorando, fazendo perguntas sobre a doença, querendo saber. E se a pessoa pergunta, e estava junto da mãe dela... Foi dito. Olhando nos olhos, chorando. No final da conversa, nós três sentadas, e ela me disse:
— Eu sei que não posso, mas queria te dar um abraço.
Nesse momento, nós somos capazes de entender que o adulto racionaliza, mas a criança sente e expressa com uma pureza, com uma delicadeza e um carinho que são próprios das pessoas que ainda não têm os preconceitos. Elas são capazes de entender mais do que podemos imaginar.
Basta ter sinceridade, se sentir acolhido — é disso que o ser humano precisa quando fica doente. Ele precisa de acolhimento, ele precisa de entendimento. E, mais do que tudo, ele precisa se entender amparado frente a uma situação muito dolorosa. Não com notícias objetivas nem com detalhes de exames, mas que nós possamos entender que o ser humano, independentemente da idade, é capaz de sofrer, mas também é capaz de trocar afeto, desde que ele tenha se sentido acolhido.
Essa menina, o olhar dela, apesar do choro e da tristeza, e essas palavras vão ficar eternamente guardadas comigo, mostrando a capacidade que tem o ser humano de ser delicado, apesar de uma situação tão difícil."
"'Gostaria muito que você conseguisse tirar esse vírus do meu corpo', pediu o paciente"
Dia 16 de setembro: 21h53min
"Quando o paciente chegou ao nosso CTI com diagnóstico confirmado da covid-19, fui conversar com ele. Era um colega, médico. Conhecia ele e queria saber como estava se sentindo.
Ele me contou a história dele, o que chamamos de anamnese. E, antes de sair, de me despedir, eu disse:
— O senhor quer me falar mais alguma coisa? Precisa de alguma coisa com que eu possa ajudá-lo neste momento?
Ele respondeu:
— Gostaria muito que você conseguisse tirar esse vírus do meu corpo, mas sei que isso não é possível. Então, espero que vocês consigam seguir me cuidando, como têm feito.
Aquilo me marcou bastante. Foi de uma espontaneidade...
E tem aquilo que sempre falamos: muitas vezes, somos acusados de não querer descobrir (a cura) ou de dizer que as doenças não têm cura porque ganhamos com a doença, mas não é verdade. Nós, médicos, também ficamos doentes.
Depois de uma internação prolongada, bastante prolongada, bem grave, o momento da alta desse paciente do CTI foi muito, muito especial. Apesar de ele estar fisicamente bastante comprometido, está com a cabeça muito boa, conversando — com dificuldade, bastante cansado ainda. Na realidade, enfraquecido, mais do que cansado.
Quando olho para ele, hoje, lembro que não conseguimos tirar o vírus do corpo dele, mas conseguimos mantê-lo suportando todo, todo o processo da doença para que ele pudesse finalmente sair do CTI de uma forma muito gratificante para toda a equipe, que dedica tanto amor, tanto cuidado ao manejo desses pacientes."
"Paciente ainda está bastante debilitado, mas quando abre os olhos vê a foto dos netos"
Dia 14 de setembro: 22h45min
"Ficar doente ou estar doente é sempre uma situação acompanhada de insegurança, incerteza, desproteção. Agora, com a covid-19, o receio que as pessoas têm de como é que vai ser a evolução e o medo de morrer nos tocam muito e têm acompanhado a grande maioria dos pacientes, especialmente no CTI.
Já contei aqui da mãe que quis ligar para a filha antes de ser entubada (conectada ao respirador). Recentemente, tivemos um paciente que queria ver a foto dos netos antes de ser entubado. Agora, ele está se recuperando. No último final de semana, mostrei a foto para ele de novo. Está ainda bastante debilitado, mas, de vez em quando, abre os olhos e vê a foto dos netos.
Também no final de semana, chegou um paciente de outra cidade com um pouco de falta de ar. Estava bastante ansioso. Tinha viajado umas quatro horas, quatro horas e meia de ambulância. Logo que chegou ao CTI, eu e uma colega fomos conversar com ele. Perguntei:
— Como o senhor está?
Ele olhou para nós e disse:
— Com medo.
Na realidade, eu queria saber se ele estava com falta de ar, se estava cansado. Aí eu disse:
— Mas o senhor vai melhorar. Fique tranquilo.
São incríveis o medo, a angústia. Ele estava longe da família, que viria depois, de carro. É realmente muito impactante a solidão que essa doença traz para os pacientes. Mas ele estava tão mais agradecido por estar em um ambiente que considerava seguro que disse que sabia que a esposa estava vindo, que depois falaria com ela de alguma forma."
"'Vamos comer um hambúrguer?', perguntou o paciente na UTI"
Dia 7 de setembro: 20h38min
"Na noite de sexta-feira (4) para sábado (5), no plantão, vi em torno de 10 pacientes. Dois estavam acordados. Um deles com uma doença recente, de alguns dias. Estava havia 24 horas no CTI, ventilando com cateter de alto fluxo, espécie de cânula nasal dupla — fica uma cânula em cada narina, e o paciente recebe alto fluxo de oxigênio.
Ele estava acordado, e fui falar com ele. Perguntei como estava se sentindo. Ele olhou para mim e perguntou:
— E aí, vamos comer um hambúrguer?
Eu disse:
— Ué, daqui a pouco a gente pode pedir... Mas o senhor sabe que já é quase meia-noite?
Bem-humorado, ele disse que estava se sentindo melhor. É o tipo de pedido que traz a pessoa para a vida normal.
Depois vi uma paciente que estava praticamente de alta, já tinha se recuperado. Ela ficou internada bastante tempo, em estado muito grave. Ficou uns 20 dias em ventilação mecânica, esteve várias vezes em posição prona (deitada de barriga para baixo, para respirar melhor). Estava estável, sem traqueostomia, com aquele padrão de adinamia, fraqueza.
Perguntei para ela:
— Tudo bem? Como tu estás te sentindo?
E ela, falando baixo, pausadamente:
— Estou me sentindo bem.
Me pediu para comer uma fruta. É interessante porque a gente diz que, quando o paciente começa a ter apetite, é porque está bem. É só uma demonstração de que, no CTI, não temos só pacientes sedados, entubados e em ventilação mecânica. Temos paciente acordado, temos paciente que está com suporte ventilatório mas acordado, respirando sozinho, e também os pacientes próximos da alta, que também ficam com necessidades. Necessidade normal do ser humano, como comer, se alimentar, sentir um alimento diferente na boca.
De certa forma, isso traz uma certa leveza para o ambiente da UTI. É uma demonstração clara, para as pessoas, de que nem só de paciente sedado e entubado a gente vive."