Durante três horas e 30 minutos do último dia 29, a reportagem de GaúchaZH circulou pelo CTI do Hospital Conceição para mostrar como funciona um dos ambientes mais simbólicos e dramáticos da atual gravíssima crise sanitária de escala global: o setor para onde são levados os doentes em estado crítico que padecem de uma enfermidade de repercussões ainda sendo desvendadas pela medicina.
Uma unidade de terapia intensiva para tratamento exclusivo de covid-19, a enfermidade provocada pelo coronavírus, descoberto na China em dezembro passado, fundamenta-se, por princípio, em um paradoxo: é um dos locais mais perigosos e, ao mesmo tempo, mais seguros para se estar hoje. Trata-se de uma doença viral facilmente transmissível, mas o rigor dos protocolos de higiene pode blindar os profissionais cercados por doentes.
Naquela manhã, havia 10 casos suspeitos e nove confirmados de covid-19, além de três pacientes já com resultado negativo que aguardavam transferência para outras áreas do CTI. Sete leitos estavam vagos.
Como todos os médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem e fisioterapeutas, entre outras especialidades, que transitam pelas áreas 3 e 4 do CTI do Conceição, com 29 leitos para pessoas com diagnóstico suspeito ou confirmado de infecção por coronavírus, eu e o fotógrafo Jefferson Botega – que na véspera se despedira de uma barba cultivada havia 20 anos para se adequar às regras – temos de passar pela paramentação e pela desparamentação (colocação e retirada dos equipamentos de proteção individual, os EPIs) a que todos se submetem na entrada e na saída.
Acompanhados da médica intensivista Taiani Vargas, 37 anos, uma das coordenadoras do CTI, começamos a preparação trocando as roupas com as quais chegamos por calças e blusas azuis do hospital – permanecemos com as roupas íntimas, as meias e os calçados. Perto da entrada das zonas isoladas, cartazes indicam a ordem a ser seguida, item por item. Mesmo, a essa altura, tendo decorado tudo, os funcionários estão atentos aos movimentos que executam.
Taiani nos mostra o passo a passo. O ingresso em uma área de isolamento para covid-19, de hábito custoso, leva mais tempo devido à falta de prática dos dois recém-chegados. Começa-se pela higienização das mãos, que prevê 11 etapas:
- molhar as mãos;
- aplicar sabonete líquido ou antisséptico;
- friccionar as palmas;
- esfregar os dorsos;
- friccionar os espaços interdigitais (entre os dedos);
- esfregar o dorso dos dedos;
- esfregar os polegares;
- friccionar as polpas digitais e as unhas;
- esfregar os punhos;
- enxaguar;
- secar com papel-toalha. Se for utilizado álcool 70% em gel, espuma ou spray, deve-se seguir as orientações de 2 a 9 e deixar que a secagem seja ao natural.
Na sequência, veste-se um avental impermeável. São colocados, então, a máscara N95, a touca, os protetores facial e de pés e, para finalizar, um par de luvas.
Detalhes imprescindíveis demandam minutos extras. A médica chama a atenção para fios de cabelo que escapam pela lateral da minha touca. As mangas do avental devem ficar bem presas sob o punho das luvas. Os protetores de pé – sacos azuis sobre os tênis, com a frente pontuda lembrando a aparência das botas de um duende, como brinca Taiani – devem envolver por completo a barra das calças, e os cordões são presos nas pernas, na altura dos tornozelos. Os laços das amarrações não podem ser apertados, para facilitar a retirada.
Meu avental não fica bem vedado atrás, e alguém cola um pedaço de esparadrapo que insiste em desgrudar. Uma jovem resolve o problema ao apertar minhas costas com vontade:
– Mão de enfermeira é mais forte!
Até a saída, sem horário previsto, não poderemos beber, comer ou ir ao banheiro, sob pena de ter de passar por todo o ritual outra vez.
Prontos, cruzamos a porta onde se lê: "Atenção! Área de isolamento covid-19. Proteja-se". Até a saída, sem horário previsto, não poderemos – conforme informado no dia anterior – beber, comer ou ir ao banheiro, sob pena de ter de passar por todo o ritual outra vez.
Os pacientes ficam em boxes individuais. São como pequenos quartos envidraçados que permitem ampla observação pelo lado de fora.
Da porta para dentro, o isolamento é ainda mais rígido, como será mostrado a seguir. Há um espaço para uso comum dos funcionários, com computadores, para revisão de casos, prescrição de medicamentos e preenchimento de prontuários. Um rádio portátil toca música baixinho, tentativa de proporcionar alívio da tensão.
Tudo parece novo, moderno, bem conservado, impecavelmente limpo. Uma das instituições de referência para coronavírus na Capital, o Conceição presta todos os serviços pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sem custo para os usuários.
– É o zelo com os recursos públicos, que devem ser focados no bom atendimento dos nossos pacientes. É o que se busca no SUS, é o que todos devemos ter: cara de hospital privado com atendimento gratuito – destaca Cláudio Oliveira, diretor-presidente do Grupo Hospitalar Conceição.
Um exército de iguais
Taiani nos guia em um tour que percorre os boxes. Em breves paradas, chama os colegas diretamente responsáveis para que forneçam as informações possíveis sobre os pacientes (nesta publicação, as identidades serão preservadas).
Uma constatação óbvia se apresenta sem demora. Estamos cercados não apenas por desconhecidos, mas por desconhecidos mascarados e vestidos da mesma forma, com pouquíssima variação – quando existe, oscila entre tons de azul e verde.
Em uma apuração jornalística, não ter quase nada além da cor dos olhos, do estilo da armação dos óculos ou da presença de maquiagem para diferenciar dezenas de entrevistados é exasperador. Crachás, quando usados, ficam por baixo dos aventais. É um exército de iguais. Vez ou outra, um nome escrito à mão na parte superior da viseira, estratégia adotada pelo enfermeiro Piter Zapparoli Dal Ri, 38 anos, poupa mais uma repetição da pergunta sobre quem é o interlocutor.
O primeiro paciente para o qual a médica intensivista chama a atenção é um senhor de 63 anos. Depois de uma semana com febre e dor nas articulações, ele chegou ao Conceição com falta de ar. Permaneceu dois dias na enfermaria e, então, foi transferido para o CTI, sendo sedado e entubado (conectado a um ventilador mecânico) no dia seguinte.
Minutos antes, com um aparelho de ultrassom à beira do leito, a equipe havia diagnosticado uma trombose venosa profunda (obstrução do sistema vascular que impede o adequado fluxo sanguíneo) na perna esquerda. Para evitar a evolução para uma embolia pulmonar (interrupção no sistema vascular pulmonar que também impede o fluxo de sangue e pode provocar insuficiência respiratória), a administração de um anticoagulante seria iniciada.
– Até chegar aqui, ele era hígido (saudável). Tem potencial de recuperação, de sair curado, só que está no auge da doença viral. Ainda vai precisar de vários dias no CTI com suporte respiratório – esclarece o médico intensivista Tiago Tonietto, 39 anos.
Perto do leito, um monitor mostra sinais vitais como frequências cardíaca e respiratória e pressão arterial, enquanto a tela do ventilador mecânico tem os ajustes de pressão e a quantidade de oxigênio que está sendo liberada. Naquele momento, o paciente, incapaz de respirar sozinho, depende por completo da máquina.
Por conta do potencial de contaminação dos doentes, os profissionais, quando entram no boxe, tentam realizar o maior número possível de tarefas. Essa entrada demanda troca de luvas, higienização das mãos e colocação de um segundo avental. Concluídos os procedimentos, é indispensável se preparar também para sair do quarto.
O técnico em enfermagem Cristian Correa, 39 anos, depois de lidar com o homem que acabara de passar pela ultrassonografia, joga as luvas no lixo, lava as mãos com álcool gel, descarta o avental, limpa as mãos novamente, sai do boxe, higieniza as mãos outra vez – porque tocou na maçaneta – e calça outro par de luvas.
– É um rito bem obsessivo – observa Taiani.
– E que se torna automático – completa Cristian, que, a exemplo dos colegas, costuma ficar em uma cadeira do lado de fora do boxe, em constante vigília, quando não está envolvido com as demandas do lado de dentro.
Manobra prona: recurso que parece rudimentar, mas é eficiente
Perto dali, um homem de 54 anos, sem comorbidades prévias, como hipertensão, diabetes ou cardiopatia, está prestes a ser colocado em posição supina. Após mais de 19 horas deitado de bruços (posição prona), sete profissionais se preparam para desvirá-lo na cama. A chamada manobra prona, recurso que parece rudimentar em meio ao aparato tecnológico, consiste em acomodar o paciente de barriga para baixo para melhorar as trocas gasosas (oxigênio e dióxido de carbono) e, consequentemente, a oxigenação dos tecidos e a respiração. Há evidência na literatura científica de que a estratégia reduz a mortalidade. A cada duas horas, movimentam-se os braços (para cima e para baixo) e a cabeça (de um lado para outro), naquela que é conhecida como posição do nadador, com os objetivos de evitar dor e a formação de feridas e de preservar a mobilidade.
Para a mudança de decúbito, o paciente é "envelopado" com dois lençóis, um por cima e um por baixo do corpo. As bordas são enroladas nas laterais, formando uma massa de tecido que os profissionais agarram no momento de fazer força e erguer o doente. Três pessoas se posicionam de cada lado do leito, e uma, na cabeceira – esta comanda a contagem de um a três, assegurando a sincronia, e a virada, realizada em três tempos.
O homem tem uma aparência assustadora quando seu rosto se torna visível: deformado pelo inchaço, assemelha-se a um balão.
Obesos representam um desafio maior às equipes. Naquela manhã, no mesmo CTI, uma mulher de 180 quilos mobilizou 11 funcionários para ser pronada.
Por vezes, o extremo esforço físico provoca um suadouro que encharca a roupa, o que leva o profissional a se desparamentar – conjunto de ações mais exigente do que a paramentação –, sair do CTI para se trocar e voltar, submetendo-se, de novo, à paramentação.
Um doente pode ser pronado diversas vezes. Exames realizados nos intervalos atestam a efetividade da manobra e a necessidade de outra.
"Você está fazendo de tudo e elas não estão respondendo"
Ainda que indivíduos acima dos 60 anos e/ou com comorbidades sejam mais vulneráveis à infecção por coronavírus, adultos jovens comovem de maneira especial a equipe.
Uma mulher de 41 anos, em princípio saudável, acredita ter se contaminado ao tocar um cadáver. Entrou no CTI acordada e conversando, mas precisou ser conectada ao respirador. Não totalmente sedada, mostrava-se ansiosa e tentava articular palavras, mesmo com o impedimento do tubo. Desde a véspera, vem piorando. Já são 10 dias de internação e 18 desde o surgimento do primeiro sintoma, dor de cabeça.
– A evolução da doença não tem padrão. É angustiante. Cada paciente é muito particular – descreve Carla Silva Lincho, 36 anos, médica intensivista.
O enfermeiro Piter olha, pelo vidro, para o homem de 40 anos que entrou no CTI também desperto e falante. Apresentava leve dificuldade para respirar, tosse branda e perda do paladar. Não tinha febre. Exames apontaram níveis de oxigênio no sangue abaixo do normal. Os médicos decidiram entubá-lo. Até 29 de maio, ele havia ficado em posição prona pelo menos cinco vezes. Em estado gravíssimo, dormia enquanto o enfermeiro, que tem apenas dois anos a menos de idade, demonstrava sua consternação.
– São pessoas jovens. Você está fazendo de tudo e elas não estão respondendo – lamenta Piter.
Primeiro caso de covid-19 a ser tratado no CTI do Conceição, um homem de 35 anos que alternava quadros de piora e melhora é considerado marcante por mais de um profissional. O corpo atlético, esculpido em academia, "murchou" sobre o leito com a perda de massa muscular.
Ao final da visita da reportagem de GaúchaZH, a intensivista Taiani menciona outro paciente que não consegue esquecer. Estava de plantão quando teve de entubar um homem de 78 anos. Como ele sofria de um grau considerável de surdez, a médica, para explanar o que faria a seguir, teve de elevar a voz – o que acontece, normalmente, com todos os profissionais do setor, por conta da dupla barreira configurada pela máscara e pelo escudo, condição citada como um fator de grande estresse.
– Tá, tudo bem. Se é pra melhorar... – concordou o idoso.
Nove dias depois, o paciente faleceu.
– Fui a última pessoa com quem ele conversou – rememora Taiani, que assumiu a coordenação do setor em setembro passado e ajudou a implementar todas as mudanças necessárias para acolher os pacientes com covid-19. – Ele tinha uma insuficiência cardíaca grave, mas perder um paciente sempre é uma coisa que a gente não engole – completa.
Desparamentação: rito ainda mais delicado
Antes de sair do CTI, no início da tarde, enfrentamos o rito da desparamentação. É um processo ainda mais delicado, pois estamos prestes a deixar uma área contaminada.
A cada acessório retirado, as mãos precisam ser higienizadas, seguindo-se os 11 passos enumerados antes nesta reportagem. Tento contar quantas vezes pressiono o dispensador de álcool gel para a lavagem, mas logo me perco, concentrada em seguir, sem qualquer erro, as instruções.
Celulares e equipamentos de fotografia também passam por assepsia. Taiani borrifa álcool nas solas de nossos tênis.
Quando o turno de Taiani está se encerrando, assume o intensivista Luiz Gustavo Marin, 34 anos, que compartilha com ela a coordenação do setor. Passado o período atribulado de dúvidas e adaptação a tantas novidades, conta o médico, agora é hora de encarar a "vida real" – ainda que não haja certezas.
– Esta é a nossa realidade, não vai mudar. É com isso que vamos trabalhar ao longo dos próximos meses, provavelmente. Temos ciência de que ainda não há um número tão expressivo de pacientes aqui no Rio Grande do Sul se compararmos com outros Estados. Não sabemos para que lado vamos, então isso também nos deixa um pouco receosos, mas acho que agora vivemos um momento um pouco menos estressante do que quando nos preparávamos para o que viria. Naquele momento, não tínhamos ideia da velocidade da necessidade de leitos. Agora, encontramos uma certa velocidade de cruzeiro. Temos dificuldades pontuais, mas (a situação) se faz mais sustentável a médio prazo.
Persiste uma limitação desafiadora. A exemplo de outras instituições, o Conceição proíbe a entrada de familiares na área de isolamento para covid-19. Existe o risco de o visitante trazer o vírus da rua para dentro do hospital ou, na via contrária, contaminar-se no hospital e disseminar a infecção na saída.
Além de o doente ficar totalmente privado da presença física dessas pessoas, perde-se uma forma de comunicação fundamental: o contato olho no olho dos médicos com as famílias. As conversas têm sido por telefone.
– A relação entre um médico e um familiar não pode ser assim. Tenho que mostrar a emoção que sinto, tentando fazê-lo entender a situação do paciente, a expectativa sobre se ele pode se recuperar ou não. Isso é o mais desgastante: explicar que o paciente que está aqui dentro vai falecer. É muito difícil falar isso sem que ele veja. Quando o familiar vê, percebe que a equipe se esforça, propõe, tenta e que, realmente, o problema é o organismo do paciente, incapaz de responder. Mas quando ele não consegue ver isso e só te ouve, é muito difícil – desabafa Marin.
Desde que a pandemia aportou no Brasil, o coordenador do CTI comunicou más notícias por meio de telefonemas mais de uma vez. Questiono como ele encaminha o encerramento do diálogo, como sabe quando é hora de desligar.
– Muitas vezes, eu não encerro. É o familiar que acaba encerrando porque ele pede para não ouvir mais.
Até o dia em que a equipe de GaúchaZH visitou o CTI do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em 29 de maio, 12 óbitos haviam ocorrido na instituição.