Depois de duas semanas com um tubo de plástico introduzido pela boca até a traqueia, por onde um ventilador mecânico jogava ar para dentro de seus pulmões, Maria, 63 anos, libertou-se do desconforto na manhã da sexta-feira 29 de maio. O pior período da infecção por coronavírus, quando esteve completamente sedada, passara, e seu organismo havia demonstrado à equipe assistencial que estava apto a voltar a respirar por conta própria.
Com a retirada da estrutura de polipropileno termoplástico, material bem resistente, Maria tossiu. Para evitar que forçasse as cordas vocais, possivelmente irritadas pelo corpo estranho que acabara de expelir, ouviu as primeiras orientações e descansou por cinco minutos, concentrando-se apenas na respiração, antes de tentar voltar a falar.
Em um dos quartos de isolamento para covid-19 do Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre, recostada sobre a cabeceira elevada do leito, ela observa, às 11h49min, a entrada da médica intensivista Juliana Giacomelli Cao, 37 anos, que se posta a sua direita. Os rostos de ambas estão na mesma altura, a pouco mais de um palmo de distância.
Com touca, máscara, escudo facial, um avental impermeável e um descartável sobrepostos, luvas e protetores de tecido nos pés – todos esses equipamentos de proteção individual (EPIs) cobrindo o traje hospitalar habitual, com calça e blusa –, a especialista pousa a mão esquerda no ombro da paciente e, com a direita, envolve os dedos inchados da idosa.
Debaixo do lençol, Maria está praticamente nua: usa apenas fraldas e uma peça de pano sobre os seios.
Juliana volta a explicar, para situar a paciente saindo do estado de sedação, que é a responsável pelos cuidados, junto de toda a equipe do CTI.
– Que alívio ficar sem o tubo, né? Me diz se não está melhor – afirma a intensivista.
Inicia-se ali um quase monólogo. Maria responde por sinais ou em frases curtas, roucas e praticamente inaudíveis.
– Tá, sim – sussurra a paciente.
– É, né? A voz vai ficar assim por um tempo porque a senhora ficou 14 dias com aquele tubo na boca. Machuca um pouquinho ali nas cordas vocais, mas vai melhorar, tá? Está bem para respirar? A senhora lembra onde está? Onde é que a senhora está?
– Hospital... Conceição – responde a paciente, separando as palavras com uma pausa.
– Muito bem! No Hospital Conceição! Hoje já é dia 20 e... nove, né? Estou certa? – questiona-se Juliana, procurando a confirmação entre os demais presentes. – Vinte e nove de maio. Acredita, dona Maria? Acabando o mês, já! Mas a senhora está bem, viu? Passou o pior. Lembra que veio pelo resfriado, pela infecção do coronavírus?
A idosa mexe a cabeça em negativa.
– Não? Mas foi isso que aconteceu, tá? Mas já está muito melhor. Agora te concentra, respira fuuuundo. Tá?
Não se pode compreender um balbucio.
– Hã? – pergunta Juliana.
– É um susto – define a paciente.
– É um susto, né? A gente sabe, é complicado. Ficar longe da família, não ver todo mundo... Deve estar com saudade, né?
Não chora, dona Maria. Agora já foi, tá? Agora o caminho está mais curto para ir para casa. Tá bom? A senhora vai ficar mais uns dias aqui, em observação, depois vai para o quarto para poder ir para casa.
JULIANA GIACOMELLI CAO
Médica tenta tranquilizar a paciente que havia recém-passado pelo procedimento de extubação
Maria chora, os soluços em bom volume. Tenta secar as lágrimas e acaba por desprender a máscara de uma das orelhas. A boca exibe pouquíssimos dentes, em péssimo estado. Juliana a conforta falando que Renata Moraes Torres, 35, residente em medicina intensiva que está do outro lado do leito, tem conversado com uma das filhas de Maria, por telefone, diariamente, dando notícias. Todos estão bem, torcendo pela recuperação.
– Não chora, dona Maria. Agora já foi, tá? Agora o caminho está mais curto para ir para casa. Tá bom? A senhora vai ficar mais uns dias aqui, em observação, depois vai para o quarto para poder ir para casa.
A paciente mora em uma vila de um dos bairros mais pobres da Capital, na Zona Norte.
– Está chorando de feliz, né? Emocionada? Sim? A senhora é uma paciente muito comportada. A gente ficou muito feliz. Ficou todos esses dias com o tubo na boca, com aquela sedação, né? Vai passar. Respira bem fundo.
Com um estetoscópio, Juliana identifica um leve estridor, chiado ouvido quando o ar é inspirado (resultado do inchaço da laringe provocado pelo tubo). Maria tosse – momento de alto risco para os profissionais, uma vez que o coronavírus se dissemina a partir de gotículas de saliva e de secreção do nariz e da boca. Os profissionais conversam sobre medicações e os próximos procedimentos. Juliana e Renata perguntam se há recados a serem repassados ao numeroso núcleo familiar de Maria. Garantem que beijos serão mandados na próxima ligação. A paciente volta a chorar quando pronuncia, mais de uma vez, o nome de uma das filhas, a que parece ser razão de maior preocupação.
– Está tudo bem, tá? – prossegue Juliana. – O tubo é chato mesmo. Às vezes, machuca um pouquinho a garganta e faz esses barulhinhos aí, mas a gente vai resolver. A senhora já está com remédio para isso também. Eu sei que a máscara dá uma sensação de sufocamento, mas a senhora ainda precisa dela mais um pouco, tá bom? Alguma dúvida, dona Maria?
– Não.
– Não? Então tenta descansar agora. A senhora precisa manter esse padrão bem tranquilo para poder continuar sem o tubo, tá? E tenta não chacoalhar tanto a cabeça.
Num fio de voz, sai o pedido:
– Um abraço... pros meus filhos...
– Um abraço para os filhos? – certifica-se Juliana. – Nós vamos mandar um abraço. Pode deixar. Logo, logo a senhora vai se reencontrar com eles, tá? É só mais um pouquinho. O pior já foi, dona Maria. Combinado?
A rotina no CTI do Conceição
Durante três horas e 30 minutos do último dia 29, a reportagem de GaúchaZH circulou pelo CTI do Hospital Conceição para mostrar como funciona um dos ambientes mais simbólicos e dramáticos da atual gravíssima crise sanitária de escala global: o setor para onde são levados os doentes em estado crítico que padecem de uma enfermidade de repercussões ainda sendo desvendadas pela medicina.
Uma unidade de terapia intensiva para tratamento exclusivo de covid-19, a enfermidade provocada pelo coronavírus, descoberto na China em dezembro passado, fundamenta-se, por princípio, em um paradoxo: é um dos locais mais perigosos e, ao mesmo tempo, mais seguros para se estar hoje. Trata-se de uma doença viral facilmente transmissível, mas o rigor dos protocolos de higiene pode blindar os profissionais cercados por doentes.
Naquela manhã, havia 10 casos suspeitos e nove confirmados de covid-19, além de três pacientes já com resultado negativo que aguardavam transferência para outras áreas do CTI. Sete leitos estavam vagos.