A equipe médica estava a postos no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital Moinhos de Vento (HMV) junto ao leito de Carla Conceição dos Santos, 46 anos, prestes a dar início ao procedimento de entubação. Com insuficiência respiratória decorrente do agravamento do quadro de infecção pelo coronavírus, a paciente seria conectada a um ventilador mecânico por meio de um tubo introduzido pela boca até a traqueia, por onde o respirador joga ar para dentro dos pulmões. Permaneceria sedada durante um período indeterminado, e só despertaria, gradualmente, se houvesse melhora do quadro. Minutos antes, havia segurado a mão de um dos médicos, suplicando para permanecer viva.
— Eu preciso fazer uma ligação. Preciso falar com a minha filha — pediu Carla, diante dos profissionais totalmente cobertos pelos equipamentos de proteção individual (EPIs).
Pelo celular, a empresária se conectou por ligação de vídeo com Karolina Pires, 26 anos.
— Filha, é a mãe. Estou no CTI agora, vou ter que ser entubada — anunciou, freando as lágrimas. — Karol, eu te criei forte, você é uma mulher forte, eu sou forte. Vou ter que desligar, não posso ficar muito tempo. Vai ficar tudo certo. Não vou morrer.
Ao desligar, Carla não conteve o choro. Pediram-lhe calma, e esta é uma de suas últimas lembranças daquele 2 de julho.
Médica intensivista, Roselaine Pinheiro de Oliveira, chefe do CTI Adulto do HMV, comentou não se tratar de uma cena habitual no ambiente de terapia intensiva. Em geral, os pacientes estão em condição bem precária no momento da entubação, com rápida deterioração da função respiratória, o que acelera a movimentação da equipe. O caso de Carla, apesar da gravidade, permitiu que se aguardassem alguns instantes.
Filha, é a mãe. Estou no CTI agora, vou ter que ser entubada. Karol, eu te criei forte, você é uma mulher forte, eu sou forte. Vou ter que desligar, não posso ficar muito tempo. Vai ficar tudo certo. Não vou morrer.
CARLA CONCEIÇÃO DOS SANTOS
Empresária
Roselaine registrou o episódio no Diário do Front, projeto de GZH em que, desde abril, profissionais de saúde relatam suas experiências na linha de frente do enfrentamento à pandemia. "É um momento de bastante emoção, de fragilidade da paciente, e um momento que nos toca muito, muito porque ela, apesar de não dominar o assunto, sabe que aquele é um momento delicado, sabe que aquela decisão denota gravidade e foi conversar com a filha. Pode-se imaginar também o sentimento, a insegurança, a angústia de quem está do outro lado da linha ouvindo uma notícia que denota a gravidade de uma doença que está impactando, literalmente, todo mundo", escreveu a médica.
De casa, na Ilha da Pintada, na Capital, Karolina, que também desenvolveria a covid-19, vinha conversando com a mãe desde a admissão no HMV – ao chegar, a paciente ocupou um leito na enfermaria. A filha não se surpreendeu quando o telefone tocou por volta do horário do almoço, mas estranhou as mãos que enxergou ao redor do leito onde Carla estava deitada.
— Foi a pior ligação dos últimos tempos. A percepção que eu tinha era que as pessoas que eram entubadas morriam — recorda a advogada e empresária.
Seguiram-se 14 dias de entubação – uma tentativa de extubar a paciente não teve êxito, e ela voltou a ficar dependente da máquina. De longe, Karolina temeu se impressionar com a imagem de Carla desacordada durante as visitas virtuais, conduzidas por um funcionário do CTI por videochamada. Quando se tranquilizou, a jovem passou a falar com Carla, mesmo inconsciente: contava as novidades, como estavam as pessoas mais próximas e os cachorros de estimação.
— Mãe, fica forte! Te concentra em melhorar. Não te preocupa com nada daqui — reforçava Karolina.
Não temos controle de nada. Tem que ter fé que vai dar certo, confiar nos profissionais. Eu acreditava piamente que tudo ia dar certo, mas a sensação de impotência é horrível. Tem que aprender a esperar, e nada preenche o tempo quando você está nessa angústia.
KAROLINA PIRES
Empresária, filha de Carla
A jornada ainda estava longe do desfecho quando ocorreu a transferência para um quarto comum, depois de 18 dias no CTI. Karolina passou a ser a companhia constante da mãe, emagrecida e fraca, praticamente imóvel – conseguia mexer apenas a cabeça, de um lado para o outro. Uma profunda escara (ferida que pode surgir em doentes acamados ou internados por longo tempo) na região sacral (base da coluna) demorou a cicatrizar – o diabetes pode ter retardado o processo –, exigindo três intervenções cirúrgicas e atrasando o progresso nas sessões de fisioterapia pela restrição de movimentos, já que Carla precisava ficar deitada de lado, com um dreno na região afetada.
A certo ponto da demorada recuperação, a empresária reclamou de desconforto no tórax e mal-estar. Um eletrocardiograma identificou uma síndrome coronariana aguda – ou seja, ela havia infartado. Por cateterismo, implantou-se um stent (pequena prótese para desobstruir e restaurar o fluxo sanguíneo) em uma das artérias coronárias.
— Esse tem sido o dia a dia dos pacientes que sobrevivem a formas graves da covid-19. Muitas vezes, o paciente sai da UTI e ainda fica muito tempo hospitalizado. Vão se somando complicações, novas infecções. Tudo é decorrente do grande processo inflamatório no período mais crítico da doença — explica o pneumologista do HMV Pierangelo Tadeu Baglio. — É um impacto muito grande na vida do paciente e da família como um todo. A Carla teve um suporte familiar muito bom — complementa.
Das dezenas de dias e noites dentro do hospital, dormindo em uma poltrona, amparando a mãe para caminhar até o banheiro e aprendendo a repetir os cuidados dispensados pela equipe assitencial, Karolina tirou lições:
— Não temos controle de nada. Tem que ter fé que vai dar certo, confiar nos profissionais. Eu acreditava piamente que tudo ia dar certo, mas a sensação de impotência é horrível. Tem que aprender a esperar, e nada preenche o tempo quando você está nessa angústia.
Após 73 dias, Carla recebeu alta em 11 de setembro, uma sexta-feira. Na avaliação de Baglio, a paciente estava muito bem e recebeu a recomendação de manter a fisioterapia e de tomar cuidado com algumas questões nutricionais. Enquanto Carla permaneceu no HMV, sua mãe também teve de ser hospitalizada devido à covid-19, e seu irmão faleceu.
Sobre o que define como uma experiência de "quase morte", Carla afirma ter começado a amar pessoas sem qualquer parentesco: em especial, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Formou outra família. O diálogo com um dos médicos que a acompanhou explicita um dos maiores ensinamentos do período.
— Sabe qual é a melhor coisa do mundo, doutor? — questionou Carla.
— O quê? — quis saber ele.
— Respirar.