Tobias foi o primeiro nome que veio à mente do gerente financeiro Lucas Santos, 30 anos, ao abrir os olhos depois de 33 dias em coma induzido na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre. Paciente com covid-19, Lucas ainda retomava a consciência quando lembrou do amigo vira-lata de seis anos, com quem divide o apartamento no bairro Santana. Era o recomeço depois de uma parada cardiorrespiratória, uma trombose na virilha esquerda, 80% do pulmão comprometido e cinco pronações (posição de bruços para aumentar a quantidade de oxigênio que entra nos pulmões) durante o período no qual esteve entubado.
Um mês depois de deixar o hospital, já ao lado do fiel Tobias, Lucas tem a mesma certeza que costuma acompanhar os pacientes de covid-19, cujo tratamento exigiu semanas de internação sob cuidados médicos extremos: renasceu e precisa retomar a vida.
Lutador de jiu-jitsu, ele não sabe como contraiu a doença. Lembra apenas de, em 18 de março, terem iniciado sintomas leves de gripe – dor no corpo e pico febril –, tratados em casa com antigripal, e quatro dias depois precisar de ajuda médica porque já estava sem ar. Ao chegar no Conceição, recorda que o oxigênio foi sendo aumentado rapidamente pela equipe até que decidiram entubá-lo. Ele tinha certeza de que voltaria para casa em poucos dias. Ficou 45 internado.
Na semana seguinte à internação de Lucas, o gourmet Antônio Carlos Pinto Ben, 62 anos, e o funcionário público aposentado José Canabarro Maciel, 83, também moradores da Capital, viviam situação semelhante à do gerente financeiro. Eles não se conhecem, mas internaram no mesmo dia no Hospital Moinhos de Vento achando que ficariam apenas algum tempo recebendo oxigênio, até serem liberados. Os dois permaneceram 22 dias em coma induzido. Antônio Carlos saiu do hospital depois de 50 dias. José, após dois meses.
Eu mudei mesmo. Tinha uma vida muito ativa antes da covid-19. Depois dela, percebi que os valores mais importantes, realmente, são a amizade, o aconchego e o contato com as pessoas
ANTÔNIO CARLOS PINTO BEN
Gourmet
Com vidas completamente distintas antes da covid-19, os três tiveram recomeços parecidos desde o abrir dos olhos, ainda na UTI. Era como se estivessem nascendo, mas já com a memória de muitos anos vividos. Sem forças para erguerem as mãos ou ficarem em pé sozinhos, precisaram reaprender ações básicas, como falar, respirar, deglutir e se movimentar, antes de terem alta médica. Sessões de fonoaudiologia e fisioterapia iniciaram no dia do despertar e continuam ocorrendo em casa, cada um no seu próprio ritmo.
— O paciente que fica numa unidade de cuidados intensivos tem uma invasão muito significativa da parte respiratória, muscular, neurológica e do trato gastrointestinal. Tudo é uma consequência deste longo período que ficaram em entubação, em ventilação mecânica e em dieta por sonda nasoentérica — explana o médico infectologista André Luiz Machado, do Hospital Nossa Senhora da Conceição.
Cada dia, garantem os recuperados, é considerado uma vitória. Lucas, o primeiro dos três a deixar o hospital, está retomando aos poucos o trabalho numa rede de hamburgueria de Porto Alegre e segue em tratamento com fonoaudióloga, fisioterapeuta, psicólogo, osteopata e psiquiatra.
Enquanto Antônio celebra a possibilidade de voltar a tomar água sozinho, a partir dos exercícios propostos pela fonoaudióloga Priscila Evangelista em consultas online, José comemora as primeiras subidas e descidas nos 34 degraus que o separam da rua, no prédio onde mora. Nesta semana, o idoso comprou pedais portáteis para trabalhar a parte inferior do corpo. Todos os dias, na sala de casa, pedala sete minutos de manhã e outro sete à noite, sob aplausos do filho Leo Maciel, 44 anos, e de José Canabarro Neto, 26, que cursa Teatro na Universidade Federal de Santa Catarina e se mudou para o apartamento do avô para auxiliá-lo na recuperação.
Infectologista do Hospital Moinhos de Vento, Tainá Fagundes Behle, que acompanhou o tratamento de José, comenta que a covid-19, por ser uma doença inflamatória muito intensa, leva os pacientes a perderem massa muscular de forma muito rápida. O próprio José viu sumirem oito quilos. Antônio perdeu 10 e Lucas, 12 quilos.
Sofri muito, não posso nem recordar o que passei. Fiquei mais emotivo depois que saí do hospital. Muda mesmo a vida da gente
JOSÉ CANABARRO MACIEL
Funcionário público aposentado
Tainá lembra que os primeiros pacientes a chegarem aos hospitais da cidade foram pessoas com boa qualidade de vida, que estavam trabalhando e viajando, independentemente da idade. De certa forma, incomuns até então em UTI, um lugar que costumava receber indivíduos de mais idade, por vezes já acamados e, até, desnutridos.
— O número de pacientes por covid-19 em UTI precisa ser encarado como o número de pacientes que ocupará um leito hospitalar por muito tempo. Porque a saída da UTI é apenas um passo. Depois disso, ainda é necessária toda a reabilitação no hospital e fora dele. São pacientes que saem extremamente dependentes, com muitas disfunções. O tempo de reabilitação depende de cada paciente, mas costuma ser longo e difícil — esclarece Tainá.
Mudanças pós-internação
Embora jamais tenham se falado, José, Lucas e Antônio Carlos admitem uma mesma mudança brusca na vida a partir da experiência na UTI.
— Eu mudei mesmo. Tinha uma vida muito ativa antes da covid-19. Depois dela, percebi que os valores mais importantes, realmente, são a amizade, o aconchego e o contato com as pessoas. É uma doença que ataca os ricos e os pobres. Então, o que mais vale é estar junto com os teus, com as pessoas que te querem bem — resume Antônio, que é solteiro, faz fisioterapia cinco vezes por semana e pretende começar análise assim que concluir as consultas com a fonoaudióloga, o primeiro dos tratamentos que deverá receber alta em breve.
Precisamos estabelecer conexões profundas, gerando lembranças. O Lucas de agora quer gerar lembranças
LUCAS SANTOS
Gerente financeiro
Para José, viúvo, conhecido pelas brincadeiras em família e por estar sempre circulando num clube social da cidade, a experiência brusca da hospitalização transformou o seu emocional.
— Sofri muito, não posso nem recordar o que passei. Fiquei mais emotivo depois que saí do hospital. Muda mesmo a vida da gente, sabe — confidencia, afirmando que está se recuperando para voltar a dançar tango, o seu ritmo favorito.
Lucas, que é solteiro e já fazia terapia antes da covid-19, reforçou as consultas para analisar a experiência vivida no longo período de internação.
— Antes da pandemia, tive alguns curtos relacionamentos e um namoro mais longo, mas gostava de ficar sozinho ou com o meu cachorro e sempre tinha alguma atividade para fazer. No hospital ainda, me caiu a ficha de que isso é uma perda de tempo. Precisamos estabelecer conexões profundas, gerando lembranças. O Lucas de agora quer gerar lembranças — finaliza.
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