Nos 33 dias do coma induzido após contrair covid-19, o gerente financeiro Lucas Santos, 30 anos, afirma ter vivido experiências que poderiam virar um livro. Ele identifica esses momentos como sonhos ou alucinações. Inicialmente, se via sequestrado e tentando escapar. Foi o período mais tenso no hospital, pois, de tanto se debater, precisou ser contido com amarras.
Na sequência, se viu sobre um grande quebra-cabeça, feito em três dimensões. Lucas precisava montá-lo sob o pretexto de que quando concluísse, teria resposta para tudo. Porém, quando movia cada peça, precisava sair do quebra-cabeça e ver a obra. Nas saídas, via sempre um ambiente completamente diferente, quase superfantástico, com plantas voando e animais diferentes.
— Como sou racional, ficava tentando montá-lo. Quando concluí, ele se desmontou todo e voltou ainda mais difícil. Na volta à análise, percebi que o sentido está em constante mudança e, quando a gente acha o sentido para algo, já pode ter se perdido e temos que estabelecer um novo sentido — acredita Lucas.
O gourmet Antônio Carlos Pinto Ben, 62, teve uma vivência de muitas viagens a lugares em que jamais esteve, como o interior da Argentina, Nova York ou a casa de uma amiga que mora na Alemanha. Na volta do coma, descreveu toda a casa para a amiga, que confirmou e ainda disse ter sonhado com ele na mesma situação. Outro momento emblemático para Antônio Carlos foi a sensação de ter muita sede, saciada todos os dias por um amigo que viajava até um local repleto de neve e trazia água fresca para ele beber. Na volta do coma, o gourmet soube que este mesmo amigo rezava todas as noites por ele e bebia um copo de água pensando em Antônio.
— Creio ter vivido um processo espiritual muito grande durante o coma — imagina o gourmet.
O funcionário público aposentado José Canabarro Maciel, 83, um católico fervoroso e devoto de Santa Terezinha, lembra de apenas um momento do coma: uma mulher vestida de branco sentou sobre o seu colo fumando um charuto. Ela jogou inúmeras baforadas para dentro do corpo de José, que jura até hoje senti-las indo até os pulmões. A partir deste momento, ele começou a sair do coma.
Segundo a psicóloga Rita Gomes Prieb, o que estes pacientes vivenciaram fazem parte do chamado delirium, uma síndrome que tem como características apresentar um início agudo e curso flutuante. Durante o coma induzido, ocorrem alterações como diminuição da consciência, desatenção e alterações na cognição, associados a uma causa fisiopatológica:
— Várias agressões fisiológicas podem desencadear o delirium, assim como variadas doenças e situações clínicas podem favorecer o seu início. Podemos dividir os fatores de risco em três categorias: relacionados ao paciente, à doença aguda e a fatores ambientais, como os encontrados em uma UTI. Há importantes fatores de vulnerabilidade, como idade (idosos com mais de 65 anos), presença de déficit cognitivo prévio, a gravidade da doença de base e doenças mentais preexistentes.
As experiências vivenciadas pelos três pacientes no período do coma foram as formas encontradas pelo cérebro para dar conta das experiências sensoriais. Um paciente na UTI experimenta diferentes situações enquanto está em coma induzido e não consegue assimilar de forma adequada. A experiência de José, por exemplo, pode te sido vivida no momento da extubação, quando o paciente volta a respirar sem o apoio das máquinas, diz a psicóloga.
— É como se eles tentassem preencher as lacunas de memória. Por isso que cada um deles traz vivências diferentes. Cada paciente pós-UTI nos trará inúmeras situações que são uma tentativa de assimilar a experiência traumática — resume Rita.
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