Trancada no quarto, Isis Marques Severo, 40 anos, ouve os apelos insistentes de João Miguel.
— Mamãe, abre a porta! — suplica o menino de três anos. — Eu te amo!
Desde que começou a sentir dores de garganta e pelo corpo, na madrugada de domingo (29), Isis está isolada do convívio com o filho e o marido, o preparador físico Michel Huff, 44 anos.
— A mamãe está aqui dentro porque está te cuidando. Logo que for possível, a mamãe vai sair daqui — responde ela.
No Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Isis desempenha um dos papéis mais fundamentais no combate à pandemia do coronavírus: é enfermeira. Teve de se afastar da linha de frente — e da rotina doméstica — durante o maior desafio de sua trajetória profissional de quase duas décadas. Em casa, aguarda o resultado do teste a que se submeteu no final de semana para saber se contraiu ou não o vírus, o que será determinante para estabelecer seus próximos passos. Por enquanto, usando máscara, ela vê João Miguel e Michel por breves instantes, pela fresta da porta, quando recebe as refeições, e utiliza o banheiro localizado dentro do cômodo.
Afônica, ela conversou com a reportagem de GaúchaZH, por telefone, sobre a importância de seu ofício. Enfermeiros são responsáveis pela gestão do cuidado dos pacientes. Avaliam caso a caso, examinam, estabelecem planos de ação e prioridades, orientam doentes e familiares, participam de reuniões multidisciplinares e coordenam grupos, integrados ainda por outra categoria indispensável, a dos técnicos em enfermagem. Os enfermeiros também efetuam procedimentos complexos, como a colocação de sondas, cateteres e grandes curativos.
— São cuidados baseados na literatura científica, mas é muito mais do que isso. Tem amor, dedicação, apoio — destaca Isis. — Somos peças fundamentais. Passamos a maior parte do tempo junto ao paciente e contribuímos, com toda a equipe, para o estabelecimento do tratamento.
Me sinto no dever de colocar em prática aquilo que tenho de melhor no cuidado com o outro, com as vidas. Somos muito unidos, e essa união nos fortalece. Temos muito orgulho de cuidar do amor de outra pessoa.
ISIS MARQUES SEVERO
Enfermeira
A enfermeira acompanhou de perto os dramas da pandemia de H1N1, entre 2009 e 2010, e do socorro aos sobreviventes do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, em 2013. Habituada a lidar com doentes críticos, que demandam complicadas intervenções clínicas e cirúrgicas, Isis garante estar preparada para o desafio que agora se apresenta. Desde que o coronavírus virou notícia, funcionários do HCPA vinham se preparando para o momento em que os infectados começassem a adentrar o maior hospital-escola do Rio Grande do Sul.
— Me sinto no dever de colocar em prática aquilo que tenho de melhor no cuidado com o outro, com as vidas. Somos muito unidos, e essa união nos fortalece. Temos muito orgulho de cuidar do amor de outra pessoa — afirma Isis.
A voz de Isis fica embargada quando fala em João Miguel, que tem sido entretido pelo pai, do lado de fora do quarto de casal isolado no apartamento do bairro Santa Cecília, na Capital. Há carrinhos espalhados pelo chão, e o pequeno também se diverte enquanto Michel orienta os jogadores sob sua supervisão, no time paulista do Corinthians, e pratica exercícios. O garoto tenta imitar os abdominais e serve de "carga", sentado na cacunda, para os agachamentos. No universo predominantemente feminino da enfermagem, salienta Isis, os parceiros também são protagonistas:
— Acho importante fazer um agradecimento aos maridos e às pessoas que ficam em casa cuidando dos nossos filhos para que possamos cuidar das outras pessoas. Vem aí um grande desafio.
A gente tem medo, né? É uma coisa desconhecida, e não sei se isso vai adiante por muito tempo. Mas precisam de nós, e me sinto muito útil.
MAGALI DE SOUZA DORNELES
Técnica em enfermagem
Em outro setor do HCPA, a técnica em enfermagem Magali de Souza Dorneles, 43 anos, cumpre há 10 anos as tarefas para as quais foi preparada em seu curso de formação: administrar a medicação prescrita ao doente, verificar sinais vitais, trocar curativos, auxiliar no banho, amparar durante as caminhadas, aspirar secreções.
Pela frequência e proximidade dos contatos que se estabelecem ao longo das internações, esses auxiliares se tornam interlocutores dos pacientes, que compartilham histórias de vida e angústias. Atualmente, Magali lida todos os dias com pacientes com suspeita ou diagnóstico confirmado de covid-19. Dialoga com homens e mulheres à espera de resultados de exames e acolhe suas inquietações.
— Será que passei o vírus para algum familiar? — afligiu-se um deles, dividindo com a técnica um questionamento comum no nono andar.
Ela conta que, entre os medos frequentes, estão o de agravamento do quadro e de uma eventual necessidade de transferência para o CTI.
— A pessoa que está com uma dor se tranquiliza quando sabe que vai passar se tomar determinado remédio — exemplifica Magali. — Mas agora não tem uma medicação específica, e há pacientes que não respondem às medicações que os médicos estão usando.
Nessa situação em que estamos, acabamos abrindo mão da vida pessoal, nos dedicando ainda mais ao trabalho e contando mais com os familiares. Estou bem cansada, mas é nosso dever, mesmo preocupados, atender as pessoas e fazer o máximo para atender o maior número possível de pessoas.
JULIANE MARTIN PRESTES
Enfermeira
Em casa, a filha de Magali, de 12 anos, encara a experiência da pandemia com dois atores diretamente envolvidos: o pai exerce a mesma profissão da mãe, em outra instituição de saúde da cidade. Apesar da segurança proporcionada por sua capacitação, Magali não esconde os próprios temores:
— A gente tem medo, né? É uma coisa desconhecida, e não sei se isso vai adiante por muito tempo. Mas precisam de nós, e me sinto muito útil.
Juliane Martin Prestes, 33 anos, atua como enfermeira da emergência do Hospital Conceição, em Porto Alegre, e no momento também auxilia na coordenação do setor que recepciona e encaminha quem chega com sintomas gripais. Manter a equipe tranquila é essencial:
— Por mais que eu esteja preocupada com tudo o que possa acontecer, a única forma de conseguirmos passar por essa situação é mantendo a calma e vendo o que podemos fazer para que as coisas de que temos medo não aconteçam.
A paramentação e a desparamentação, ou seja, a colocação e a retirada das roupas e dos acessórios que compõem o conjunto de equipamentos de proteção individual (EPIs), são minuciosas, mantidas com repetidas orientações aos colegas, para que se evitem contaminações. Juliane começa seu turno às 7h e fica no Conceição até o final da tarde. Mãe de duas crianças, de seis e sete anos, a enfermeira conta que, ao retornar para casa após o expediente, segue um protocolo: descalça os sapatos, deposita em uma caixa todos os itens que trouxe da rua e vai direto para o banho. Depois é que parte para um reconfortante abraço nos filhos.
— Nessa situação em que estamos, acabamos abrindo mão da vida pessoal, nos dedicando ainda mais ao trabalho e contando mais com os familiares. Estou bem cansada, mas é nosso dever, mesmo preocupados, atender as pessoas e fazer o máximo para atender o maior número possível de pessoas.