Março, que já parece tão distante no calendário tamanha a intensidade de tudo a que se assistiu após a chegada da pandemia do coronavírus ao Brasil, assinalou o início de uma nova etapa na formação de Bruna Schneider, 26 anos: ela começou sua residência em medicina intensiva no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). O mês teve duas semanas de “normalidade”, pelo que lembra a médica nascida em Erechim e graduada pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
O período de aprendizado e prática ganhou, então, contornos carregados de dramaticidade em tempo real, para novatos e experientes: era preciso desvendar o vírus enquanto a contaminação avançava pelo país, batendo recordes funestos. Bruna passava a trilhar seu caminho como intensivista na linha de frente do combate à maior crise sanitária global em um século atuando em uma das instituições de referência para covid-19 na capital gaúcha.
Após os seis anos da graduação, os médicos podem se decidir entre múltiplas opções de especialização. Um intensivista passa por duas residências – em geral, cursa dois anos de medicina interna (a opção mais comum no Rio Grande do Sul), cirurgia ou anestesiologia antes de seguir para os dois anos de medicina intensiva. Dedica-se, portanto, por uma década a estudo e prática até que esteja pronto para desempenhar suas funções em um dos ambientes mais tensos e exigentes da área da saúde, onde necessitam de cuidados os pacientes criticamente enfermos.
– Apesar de saber das notícias internacionais, foi algo que a gente não esperava. As provas (de seleção para a residência) foram em novembro, quando ainda nem se falava em coronavírus. Era todo um outro plano, toda uma outra expectativa – recorda Bruna.
Ela vinha de uma residência em medicina interna no Hospital Nossa Senhora da Conceição, também em Porto Alegre. Tinha ideia do que a aguardava na etapa seguinte, em 2020: acompanhar doentes em estado grave e gravíssimo, que padecem de doenças sobre as quais já acumulava conhecimento, e manter uma rotina de atendimento.
– Eu tinha a noção de como seria a rotina normal de um CTI. Porém, logo isso mudou.
Em um esquema rotativo, Bruna permanece um mês no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) para covid-19 e um mês no CTI geral do HCPA. Em março, a residente pôde acompanhar a preparação do ambiente e os treinamentos, focados nas minúcias da paramentação e da desparamentação, que são a colocação e a retirada dos equipamentos de proteção individual (EPIs). Os tratamentos e as internações andavam a pleno em maio, mês em que Bruna retornou ao CTI covid-19. A próxima escala está programada para julho, que pode registrar contaminações e hospitalizações em velocidade ainda maior no Estado. Lidar com o desconhecido tem sido o aspecto mais marcante da jornada.
– Há incertezas sobre muitas coisas. O diagnóstico, o tratamento, a comunicação com os familiares, tudo, de alguma forma, foi algo novo e que foi se implementando ao longo do manejo dos pacientes. Essa incerteza, as discussões, tudo mudando muito rapidamente, isso traz uma carga psicológica além da sobrecarga física e de trabalho que temos – conta Bruna, que passa cerca de 10 horas por dia no HCPA.
Estresse como combustível
A residência é composta de porções teóricas e práticas. Há aulas formais, apresentações de trabalhos, discussões de artigos – neste momento, o tema dominante das leituras é a pandemia, obviamente. Por conta das elevadas demandas deste período de exceção, somam-se mais horas de conteúdo teórico, mas não poderia ser diferente, segundo Gilberto Friedman, coordenador do Programa de Residência Médica em Medicina Intensiva do HCPA e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Reuniões científicas são quase diárias. Por videochamada, os residentes de primeiro e segundo ano já participaram de discussões com profissionais de Milão, na Itália, e Nova York, nos Estados Unidos, duas das cidades mais profundamente atingidas pela mortandade da covid-19.
– Também estou aprendendo – constata Friedman.
Para o professor, a oportunidade que se apresenta aos novatos é inédita e inesquecível, em especial para os que escolheram a medicina intensiva, devido à grande quantidade simultânea de casos preocupantes.
– Eles estão aprendendo tudo o que um paciente grave pode ter. Pacientes com covid-19 apresentam as complicações mais variadas possíveis. Esse tipo de quadro respiratório grave que esses pacientes têm, a gente vê, em média, dois, três, quatro por mês, com outras causas. Agora, os residentes estão vendo isso às dezenas em um período de três meses. A experiência é tão intensa e tão impressionante que nunca imaginaríamos que eles teriam um treinamento tão bom – comenta Friedman.
Marcou a residente Bruna o primeiro caso suspeito de coronavírus. Um telefonema adiantou que o paciente logo chegaria ao HCPA. Depois do teste e da expectativa, o resultado: negativo. Outro episódio retido na memória é o de um homem ao redor dos 60 anos que a residente acompanhava havia dias. Interagiram na admissão no CTI, antes da entubação. A equipe estava otimista quanto à evolução do quadro, até que, certa manhã, Bruna foi surpreendida ao iniciar o turno.
– Na madrugada, ele tinha tido uma parada cardiorrespiratória. Depois de um bom tempo de reanimação, faleceu. Fiquei bem abalada – lembra.
Uma lição é evidente no tempo transcorrido até aqui. Enfrentar situações em que o profissional não tem controle total quanto ao diagnóstico e ao tratamento tem sido uma exigência permanente.
– É um trabalho intensivo, um aprendizado intensivo – define Bruna.
Friedman conta que, normalmente, o residente é “protegido” – trabalha ao lado de colegas entendidos, sob orientação, mas está ali, antes de tudo, para aprender. Na conjuntura atual, um sorvedouro de esforços e energia, os principiantes estão suportando cansaço equivalente ao dos versados, com o sufoco de plantões intensos e horas a mais.
A pró-atividade costuma ser inerente a esta especialidade, segundo o professor. Em geral, quem opta pela jornada frenética das UTIs sente uma enorme necessidade de absorver conhecimento.
– Parece que o estresse é uma gasolina para o intensivista – compara Friedman.
Mostrar-se ao mundo
Um dos momentos mais assustadores para pacientes em estado grave pode ser o da entubação. Quando o corpo não dá conta, sozinho, da respiração, torna-se necessária a conexão a um ventilador mecânico, por meio de um tubo que é inserido, pela boca, até a traqueia. Antes que o doente fique inconsciente em consequência da aplicação de sedativos, os profissionais explicam o que será feito. Residente em medicina intensiva no Hospital Moinhos de Vento (HMV), Mariana Bühler, 34 anos, conversa olhando diretamente nos olhos e segurando a mão dos que se mostram mais temerosos e resistentes.
– O senhor vai para a ventilação mecânica, mas não está sozinho – garante ela, que em alguns momentos segura as lágrimas.
A pandemia confronta os profissionais de saúde de forma geral, mas duas especialidades têm sido particularmente acionadas sob forte tensão: medicina intensiva e medicina de emergência. Quem percorre essas estradas viverá seus dias ao embalo do desconhecido, do inesperado e do imediatismo. Idosos, diabéticos, cardiopatas, hipertensos e obesos, entre outros, são mais propensos às complicações decorrentes da covid-19, mas inúmeros indivíduos gozavam de plena saúde, sem registro de enfermidade prévias, até a contaminação pelo microrganismo descoberto em Wuhan, na China, em dezembro passado. Ocorrem mudanças abruptas na evolução de alguns doentes, que pioram de repente, por vezes desperdiçando os progressos conquistados em função de alterações em outra parte do corpo. Com a excessiva carga de estresse físico e emocional provocada pela disseminação do coronavírus mundo afora, o clima, conta Mariana, tende a ficar pesado.
– Às vezes, chego em casa e boto para fora, choro. Acho que, com o tempo e a experiência que vamos adquirindo, conseguiremos lidar melhor com isso. É uma situação muito nova. Ainda temos muito o que aprender – afirma a residente.
O desafio se apresenta imenso para todos: chefes de setor, preceptores, professores, médicos experimentados, recém-chegados. No início, acredita Mariana, o susto parecia generalizado, mas essa sensação se diluiu com o passar dos meses, permitindo que agora seja possível administrar melhor os procedimentos exigidos por cada doente internado. Ela também cita, a exemplo da residente do HCPA Bruna Schneider, o acúmulo e os efeitos do cansaço físico e mental.
– É uma experiência totalmente diferente para mim e para os meus colegas. Além de toda a técnica que temos que desenvolver, este é o momento de avaliar o nosso lado emocional enquanto profissional da linha de frente – conta Mariana, egressa da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) que já passou pela residência em medicina interna.
Cena recorrente em hospitais é aquela que coloca colegas, frente a frente, em um enredo inusual: um responsável pelo tratamento, o outro infectado pelo coronavírus. Mariana rememora o quão impactante foi deparar com um companheiro de profissão entubado no CTI do HMV. Duas semanas antes, eles haviam conversado em um plantão noturno.
– Foi duro ver um rosto conhecido, uma pessoa que a gente admira muito, dependendo de todos os cuidados do CTI. Isso me tocou muito. Naquele momento, tive noção de tudo o que estava realmente acontecendo. Você só se dá conta de algumas coisas quando elas atingem pessoas próximas. Penso que estamos expostos, também pode acontecer conosco, mas isso não pode nos abalar agora. Temos de estar aqui para eles, para ajudar – reflete Mariana.
A respeito do ramo que a atraiu, Mariana acredita que é hora de a medicina intensiva “se mostrar para o mundo”. De fato, não eram de amplo conhecimento do público leigo as funções de um intensivista. Desde que o planeta se curvou ao coronavírus, esses profissionais foram catapultados ao protagonismo, requisitados por todo lado. Com vagas de emprego em caráter emergencial a serem preenchidas, existem hospitais com dificuldade para encontrar todos os intensivistas de que precisam para montar suas equipes. Para Mariana, o rumo dado a sua incipiente carreira foi acertado.
Eles (os residentes) levarão isso para a vida toda e para outros pacientes no futuro. É uma experiência rara e inédita.
GILBERTO FRIEDMAN
Coordenador do Programa de Residência Médica em Medicina Intensiva do Hospital de Clínicas e professor da UFRGS
– Tenho ainda mais orgulho da minha especialidade e dos intensivistas com quem tenho a oportunidade de trabalhar. O intensivista será visto de outra maneira lá fora, será mais valorizado. A relação com a UTI é de amor, e cada vez a gente fica mais apaixonado – declara a médica. – É muito bom extubar uma pessoa (desconectá-la do ventilador mecânico), dizer que ela vai melhorar. Mesmo nos casos em que você não consegue salvar alguém, sabe que fez de tudo – completa.
Manter-se a par dos mais novos títulos da literatura científica é dever profissional, o que significa, hoje em dia, um sem-fim de páginas extras a serem perscrutadas em busca de aprofundamento sobre os mistérios da covid-19. Luiz Antonio Nasi, superintendente médico do HMV, relata que os médicos nunca estudaram tanto quanto agora.
Ao conversar com a reportagem de GaúchaZH, o professor da Faculdade de Medicina da UFRGS chamou a atenção para um artigo de autoria de pesquisadores de Seattle, nos Estados Unidos, que acabara de ser publicado no periódico The New England Journal of Medicine, abordando as reações de estudantes e residentes à pandemia. Entre as respostas de mais de 300 entrevistados, surgiram relatos de empolgação, vulnerabilidade, medo de contaminação (incluindo a transmissão do vírus para familiares), subaproveitamento, dilemas éticos, implementação “infinita” de novos protocolos e recomendações. “Por mais estranho que pareça, me sinto sortudo por estar trabalhando agora”, detalhou um deles. Nasi percebe o receio dos residentes em levar o vírus para casa, mas, em sua opinião, a maior parte está gostando da experiência.
– Eles estão sendo extremamente úteis. É um período intenso de estudo, descoberta e desafio. Eles participam muito mais intensamente do atendimento dos pacientes, sentem-se médicos, vibram com o sujeito que está melhorando. Esta é uma doença de tratamento muito dinâmico, e eles tomam decisões junto, nos questionam, contam o que descobriram – observa Nasi, rindo ao comentar que o artigo mencionado certamente já deveria ser de conhecimento dos atentos residentes do hospital àquela hora.
Gilberto Friedman, do HCPA, reconhece o estresse agudo provocado por este absurdo 2020, mas estimula que seus alunos aproveitem a oportunidade histórica para aprender:
– Eles levarão isso para a vida toda e para outros pacientes no futuro. É uma experiência rara e inédita.
À espera do imprevisível
Nathan Hermenegildo Lisboa, 28 anos, é outro que desembarcou no primeiro ano de residência junto da pandemia. De segunda a sexta-feira, das 8h às 18h, e com eventuais plantões noturnos e aos finais de semana, o médico paulista formado na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) está sempre à espera do imprevisível na Emergência do HMV.
– Sempre gostei de todas as especialidades, mas nunca amei nenhuma. Na medicina de emergência, temos o resultado na hora da intervenção. Nunca cai numa rotina. Quando abre aquela porta, não sabemos o que vem. Às vezes, são coisas leves, às vezes, pacientes muito graves – descreve.
Devido ao alto risco de contaminação, as trocas de EPIs são incessantes. É necessário lavar as mãos mais de uma vez durante o atendimento de um mesmo doente. Entre primeiros atendimentos e reavaliações, Lisboa estima que possa ter de cumprir o ritual da higienização, com álcool gel ou água e sabonete, mais de uma centena de vezes em um único dia. Microfissuras se abrem na pele, tamanho desgaste com a fricção e os desinfetantes. A máscara é o maior incômodo: dificulta a respiração, provoca suor e coceira, machuca o rosto, exige a elevação do tom de voz nas conversas, ainda mais dificultadas quando há o uso simultâneo do escudo facial. Mas Lisboa se sente grato por ter os acessórios necessários à disposição.
– Temos treinamentos semanais. Não podemos descuidar da nossa própria segurança – salienta o residente.
Ao contrário da maior parte da população, que teve a vida transformada e deve obedecer a uma série de restrições, Lisboa comenta que seguiu sua rotina – ainda que com o acréscimo de todos os riscos e traços dramáticos descritos nesta reportagem.
– Tenho de ver os pacientes, tenho de estar em contato com o vírus. É gratificante porque posso ajudar. Nunca trabalhei tanto com uma coisa tão diferente. Eu, meus preceptores, os fluxogramas do hospital, todos estão se reinventando. É frenético. A cada semana, o que achávamos que era verdade já caiu por terra.
Um dos aspectos que mais intrigam o jovem médico é que alguns pacientes com covid-19 aparentam estar bem, com poucos sintomas, mas a gravidade acaba desvendada em exames de imagem e laboratoriais. Lisboa já efetuou a entubação de doentes com suspeita de coronavírus. O procedimento impõe ao profissional um nível de responsabilidade ainda maior:
– Não que antes a entubação não precisasse ser perfeita, mas precisava ser perfeita para o paciente. Agora a entubação pode contaminar o médico e quem estiver ao redor. O sentimento de coletividade aumentou. É um reforço positivo muito bom.