Passados quase quatro meses após o primeiro caso de coronavírus, o Brasil adentra o inverno neste sábado (20) prestes a atingir 1 milhão de casos e 50 mil mortes, uma das mais tristes marcas na história de sua saúde pública. O país, no entanto, não foi pego desprevenido: assistiu ao drama da China e de países europeus e ainda foi informado por uma série de projeções sobre os possíveis cenários a serem enfrentados e da importância do distanciamento social.
No emaranhado de números, gráficos e estudos que buscam antever o futuro do vírus, os brasileiros já depararam com dezenas de previsões que, assim como aquelas feitas para prever a alta do dólar, por exemplo, erraram e acertaram. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) estimou 5,5 mil mortes até 6 de abril no país, mas, chegada a data, o total de óbitos foi de 667.
Por outro lado, em março, o Imperial College de Londres calculou, com base em dados e na curva da doença na China, que o Brasil teria 44 mil mortes mesmo adotando o distanciamento social — o que se confirmou nesta semana. Fosse adotado o isolamento apenas de idosos e os chamados grupos de risco, como proposto pelo presidente Jair Bolsonaro, seriam 529 mil óbitos, calculam os pesquisadores da instituição inglesa, e, sem nenhuma estratégia para conter o vírus (algo que nenhum país seguiu), um total de 1,15 milhão de vítimas.
Quando ainda era ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta afirmou que o Brasil enfrentaria um grande crescimento de casos entre abril e maio e uma desaceleração em junho, o que foi reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Já o erro de certas previsões se explica por uma espécie de efeito borboleta: pequenas variações logo após a análise podem causar grande impacto em um cálculo.
Assim como previsões do tempo, análises sobre o futuro da epidemia têm maior chance de acerto quando feitas para os próximos dias do que para os meses a seguir. Em outras palavras, é mais fácil prever o que vai ocorrer em um futuro imediato do que a longo prazo, devido, principalmente, às variações decorrentes ao longo do tempo.
Na prática, uma projeção é uma série de equações matemáticas que usam informações do presente para responder a uma pergunta: se tudo continuar no ritmo de hoje, como será o amanhã? Boas previsões são feitas por professores universitários de instituições reconhecidas e oriundos, para além da matemática, da estatística, da física, da epidemiologia e da economia. Só que nem sempre o “ritmo de hoje” se mantém por muito tempo.
— Certo é que nenhum modelo vai acertar. Imagina dirigir num local com neblina: você acende o farol para enxergar um pouco mais à frente, mas não enxerga exatamente tudo lá longe. Aí você desacelera para tomar cuidado. Modelos são teóricos e servem como orientadores, partem do pressuposto de que, no futuro, nada muda se a situação das últimas semanas continuar como está quando eles são elaborados – explica a estatística Suzi Camey, professora na pós-graduação em Epidemiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e uma das cientistas que realizam projeções para o Comitê de Análise de Dados do governo do Estado.
Há mais de uma metodologia a ser usada em projeções, cada qual com suas variáveis. O resultado depende dos fatores levados em conta — inclusive do número de fatores. Um dos modelos mais clássicos para esses cálculos é o chamado SEIR, que avalia quatro variáveis: suscetíveis (população que não pegou o vírus), expostos (quem se expôs a alguém com vírus), infectados (quem teve o vírus) e removidos (curados e mortos). Seja qual for a metodologia utilizada, há ao menos dois parâmetros básicos que são avaliados: densidade da população (o vírus passa mais fácil no Brasil, onde muitas famílias moram juntas, do que na Suécia, onde mais da metade da população vive sozinha em casa, segundo o Gabinete de Estatísticas da União Europeia) e capacidade de transmissão do vírus (covid-19 é potencialmente mais contagiosa do que a gripe H1N1, também chamada de gripe suína).
A esses dois fatores, cientistas acrescentam outras tantas variáveis — como tamanho da população, casos e mortes diários e no total até a realização do cálculo, taxa de morte entre os infectados, taxa de mobilidade, proporção de idosos na população, força do inverno, entre outros. Essas variáveis, acrescidas às projeções, tentam reduzir a margem de erro em meio a uma dificuldade enfrentada por epidemiologistas: a vida real transborda os números.
Se, até o dia do cálculo, a epidemia se comportava de um jeito, no dia seguinte as pessoas podem sair mais de casa por causa do tempo ensolarado, um governo pode relaxar medidas de distanciamento ou impor lockdown, um surto inesperado pode ser identificado, um voo com infectados pode chegar a uma região ou uma cidade pode expandir a testagem e elevar o número de confirmados.
O coronavírus ainda traz incertezas científicas: não se sabe ao certo se uma pessoa contaminada adquire imunidade e por quanto tempo isso ocorre — o que pode influenciar no cálculo de pessoas que podem ser contaminadas. No caso do Brasil, há ainda um obstáculo: o baixo número de testes realizados, o que dificulta mensurar a taxa de infecção e entender a real abrangência da epidemia para além das internações hospitalares.
— Quanto menos a gente testa, mais impreciso fica o cálculo da velocidade de propagação da epidemia, porque só se pegará um estrato dos pacientes — afirma Alexandre Zavascki, professor de Infectologia na UFRGS e chefe da Infectologia do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
Por que o pico é adiado
Esta reportagem começou a ser produzida na segunda-feira (15/6), quando o prestigioso Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dos Estados Unidos, anunciava que haveria 1 milhão de casos e 55,7 mil mortes, no Brasil, na quinta-feira (18). A previsão da mesma instituição para o dia 15 de agosto é de 2,27 milhões de casos e 125 mil mortes no país. Acompanhe no gráfico:
Outra projeção, para 4 de agosto, feita pelo Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME) da Universidade de Washington, também norte-americana, prevê marca próxima — 166 mil mortes, com margem entre 113 mil e 233 mil vítimas, e um número assustador, pois bem superior ao atual: mais de 5 mil óbitos por dia:
Quanto à época de pico Brasil, o prazo já foi apontado para maio, junho e, agora, para julho ou até mesmo nos meses seguintes. Esses adiamentos, afirmam os pesquisadores, ocorrem não por erro de cálculo, mas como efeito do distanciamento social, que posterga e achata o pico — e que tem atingido diferentes índices ao longo dos dias.
— Se fizéssemos um lockdown no Brasil hoje, em três semanas o pico termina. Mas, com um modelo que permite a atividade econômica e algum nível de pessoas circulando pelas ruas, o pico vai sendo adiado — acrescenta o infectologista Zavascki.
Mas é claro que há projeções. Cálculo da Funcional Health Tech, uma plataforma de análise de dados do setor de saúde no país, estima pico em julho, com 1,78 milhão de contaminados — no Rio Grande do Sul, a previsão de ápice é para 30 de julho.
Outra previsão, do departamento de Estatística da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), estima que o pico do coronavírus no Brasil ocorreu na quinta-feira (18) — com margem de erro até a segunda (22). O modelo, contudo, ainda está em desenvolvimento para contornar as distorções de fim de semana (quando saem menos resultados de testes e, por isso, há variação nos registros) e não leva em conta o relaxamento das restrições adotado em vários Estados, entre os quais Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. Com isso, o número de infecções irá aumentar.
— Se mantiver as condições da análise, o pico, mesmo que esteja para a frente, não estará muito longe. Em São Paulo, que é a maior fonte de casos no Brasil, o pico deve ocorrer em julho, mas há vários Estados que apresentam redução e compensam para o Brasil ter esse resultado que fornecemos — diz Dani Gamerman, professor de Estatística da UFMG e um dos responsáveis pelo estudo.
O diretor-executivo da OMS, Michael Ryan, afirmou que o aumento nos casos de coronavírus no Brasil não é tão grande quanto antes, mas que o quadro ainda é muito severo — ou seja, a epidemia cresce, só que com força menor. Neste momento, o país é um dos epicentros mundiais: tem o segundo maior número de casos e mortes por coronavírus no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.
O Brasil é o sexto país mais populoso do mundo, perdendo em número de habitantes apenas para China, Índia, Estados Unidos, Indonésia e Paquistão. GaúchaZH mostrou que saímos do 31º lugar, no início de maio, para a 11º posição no ranking mundial de mortes com base no tamanho da população — e o aumento está acelerado, o que deve fazer com que o país “suba” ainda mais nesse ranking. O indicador costuma ser citado por integrantes do governo Jair Bolsonaro como argumento para alegar que o país não vive situação tão grave (há outros à “frente”), mas especialistas ponderam que isso ocorre simplesmente porque o Brasil está em um momento atrasado da pandemia — o vírus chegou aqui depois de outros países, do Oriente e de todo o Hemisfério Norte, por exemplo.
Variações regionais na balança
Em termos brutos, o Brasil enfrenta atualmente um grande aumento no número de casos dia após dia, mas há certa estabilização no número de novas mortes, que seguem crescendo, mas com baixa variação entre os dias, mostra análise do grupo Covid-19 Analytics, formado por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da Fundação Getulio Vargas (FGV). Os estudiosos projetam um avanço mais significativo da epidemia para os próximos 14 dias.
Na terça-feira (16/6), o Brasil registrou recorde de casos em um dia: 34,9 mil pessoas. Mas análise de GaúchaZH indica que a média de mortes diárias se mantém de forma estável ao longo das semanas mais recentes: nos últimos sete dias, foram 975 vítimas diárias, na média. Na semana anterior, eram 1.018 e, na anterior, 992.
Os números nacionais, entretanto, escondem as realidades regionais. O tamanho continental do Brasil é destacado por especialistas: falar de um único pico no Brasil equivale a apontar um único pico para toda a Europa. As análises locais precisam levar em conta que há várias curvas ocorrendo no território nacional, cada qual com seu ritmo — de forma semelhante ao que ocorre, por exemplo, dentro do Rio Grande do Sul, que também tem indicativos de variações particularizadas conforme a área do Estado.
A gente ainda vê, nos próximos 14 dias, uma tendência de crescimento dos casos, mas de estabilização nas mortes. E epidemia não está acabando, mas cresce em um nível menor.
MARCELO MEDEIROS
Coordenador do Covid-19 Analytics
Há, neste momento, indicativo de que o primeiro pico chegou em alguns Estados, como Amazonas e Pernambuco, mas não em outros, afirma Marcelo Medeiros, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, especialista em econometria e um dos coordenadores do projeto Covid-19 Analytics.
Uma forma de visualizar a disparidade de cada uma das microepidemias é olhar para a taxa de reprodução do vírus, que estima a velocidade de avanço – um indicador acima de 1 demonstra alta expansão de contágio. No Brasil, a taxa era de 1,14 na terça-feira (16/6), mas já em um ritmo de queda — um mês atrás, era de 1,54. Neste momento, só Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Sergipe têm taxa de contaminação acima de 1,5. No Rio Grande do Sul, é de 1,27.
— Os Estados estão em momentos diferentes da epidemia. No Brasil como um todo, a gente ainda vê, nos próximos 14 dias, uma tendência de crescimento dos novos casos, mas de estabilização no número de novas mortes. A epidemia não está acabando, mas cresce em um nível menor, sem comportamento exponencial. Teremos, no entanto, umas duas semanas críticas vendo os efeitos da abertura realizada por alguns Estados — diz Medeiros.
Como o Brasil optou por achatar a curva (reduzir e adiar o pico para que o sistema de saúde lide com a maior demanda) em vez de esmagá-la (eliminar o coronavírus de suas fronteiras, como fez, por exemplo, a Nova Zelândia), nossa curva epidêmica promete ser peculiar, estimam os especialistas.
Em vez de um pico seguido de uma queda abrupta (por conta do lockdown), nossa curva terá vários picos, sendo marcada por constantes subidas e descidas em virtude das aberturas e dos fechamentos de serviços. A boa notícia é que cada um desses picos deve ser menor do que o anterior, uma vez que o universo de pessoas a serem infectadas será progressivamente menor.
O isolamento no Brasil deu certo: foi feito dentro da capacidade de um povo que não teve suporte financeiro, alimentar e de esclarecimento. A quantidade de casos em algumas cidades foi um desastre, mas em outras se conseguiu administrar.
MARÍLIA SÁ CARVALHO
Pesquisadora da Fiocruz
— Serão múltiplas ondas de múltiplas epidemias nos Estados. As pessoas ficarão em casa e acabará uma epidemia, depois voltarão a sair e haverá outra. Já houve um pico em maio e pode ser que, em julho, haja outro, que pode ser maior ou menor do que aquele. No Japão e na China aconteceu isso. O isolamento no Brasil deu certo: foi feito dentro da capacidade de um povo que não teve suporte financeiro, alimentar e de esclarecimento. Sabíamos que, em um país com nossa dimensão, densidade demográfica e situação econômica, a preocupação era não deixar que o coronavírus ultrapassasse a capacidade do sistema de saúde. A quantidade de casos em algumas cidades foi um desastre, como Manaus e Fortaleza, mas em outras se conseguiu administrar — avalia Marilia Sá Carvalho, médica epidemiologista e pesquisadora da Fiocruz, do Rio de Janeiro.
A possibilidade de novos picos não é específica do Brasil: China, Itália, Espanha e Japão enfrentam o fantasma das novas ondas de contágio, com surgimento de casos. A única forma de evitar isso é investir no distanciamento social ou na descoberta da vacina ou de outra forma de cura do vírus.
Enquanto a ciência não traz a chamada bala de prata, o brasileiro terá de isolar-se constantemente para achatar as várias curvas que aparecerão, resume Benilton de Sá Carvalho, professor do Departamento de Estatística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em Bioestatística pela Universidade John Hopkins. Ele destaca que o pico é apenas “metade da história”: se o pico do Brasil fosse hoje, ainda haveria ao menos mais 45 mil mortes pela frente.
— Como a gente vai ter várias ondas, sempre vai ter esse exercício do achatamento. Vai fechar comércio, depois voltar alguma atividade essencial, cancelar o retorno e assim vai. O problema é que, nesse movimento de abre e fecha, vai acentuar esse comportamento de descrença até as pessoas obedecerem cada vez menos as medidas sanitárias. Além disso, vai ser complicado prever o que vai acontecer: com a flexibilização, a movimentação das pessoas vai aumentar, e isso não era esperado para a maioria dos modelos de previsão idealizados — pondera Carvalho.
Efeitos da política cambaleante
Meses atrás, o Brasil tinha poucos dados nacionais, então projeções iniciais usavam números de outros países para prever o que ocorreria. Quando o país precisou lidar, de fato, com a pandemia, as trocas de comando no Ministério da Saúde e, consequentemente, na política nacional de combate ao coronavírus, não constavam nos modelos. Com a resposta dependendo de cada Estado, as incertezas cresceram ainda mais.
Se o país fora elogiado por especialistas por implementar o distanciamento cedo e controlar o crescimento nos casos, no entanto, a falta de diretrizes do governo federal, a briga com os governadores e os prefeitos e a desmobilização para o distanciamento, reiterada em diversas manifestações de Bolsonaro e outros integrantes do governo ao longo da pandemia, é uma das causas para o Brasil ter degringolado no combate ao coronavírus, afirmam, em consenso, os especialistas ouvidos para esta reportagem.
— Estávamos com algum grau de controle na epidemia. Em vez de haver uma unidade que garantisse a governança, um ministro foi demitido e o outro se demitiu. E ainda houve as mensagens contraditórias. O Brasil entrou nesse caos porque não houve coesão e interesse em manter uma política que vinha dando certo – afirma a médica epidemiologista Marília, da Fiocruz.
Contatado pela reportagem, o Ministério da Saúde não ofereceu porta-voz para entrevista nem projeções internas, próprias, da epidemia, mas diz que tem atuado para ajudar os Estados e os municípios, como a liberação de R$ 12 bilhões em recursos para o combate ao coronavírus. O valor foi enviado para estruturar serviços de saúde, comprar equipamentos, contratar profissionais e custear leitos de unidade de tratamento intensivo (UTI).
Na segunda-feira (15/6), o Brasil fechou um mês sem um ministro da Saúde. O general Eduardo Pazuello segue na função de forma interina.