Além da adoção de medidas precoces contra o coronavírus, Pelotas, no sul do Estado, apostou na união de forças entre os setores público e privado e no engajamento da população para conter o avanço da pandemia. No fim da manhã desta quinta-feira (18), a cidade se mantinha como único centro urbano brasileiro com mais de 200 mil habitantes sem nenhuma morte por covid-19.
Com 169 casos confirmados da doença (em um universo de 17,1 mil no Estado), o município contabilizava apenas quatro pacientes internados em razão da infecção, dois deles em UTI. Para quem acompanha a evolução dos números, o quadro indica que a cidade vem conseguindo barrar a epidemia. O segredo está em uma combinação de fatores.
— O primeiro aspecto a destacar é o trabalho em conjunto. Não é apenas discurso bonito. Aqui, universidades, prefeitura e hospitais têm atuado em sintonia, discutindo item por item a estratégia de enfrentamento, desde o começo. Isso permitiu que, no momento certo, fosse possível reduzir a circulação do vírus — diz o epidemiologista Pedro Curi Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
No fim de fevereiro, antes mesmo do primeiro óbito registrado no país, a Secretaria Municipal da Saúde montou, com a ajuda dos parceiros, o plano de contingência para combater o novo inimigo.
Definiu o papel de cada hospital e fez adequações nos postos, que receberam tendas de triagem e passaram a dedicar as manhãs aos pacientes com sintomas gripais e as tardes às demais demandas, para evitar a contaminação cruzada. Ao mesmo tempo, equipes da rede de atenção primária foram treinadas antes de o problema bater à porta.
— Agimos rápido. Fizemos uma capacitação no começo de março. Nos preparamos para o que estava por vir — ressalta a secretária municipal da Saúde, Roberta Paganini.
Naquele mês, a prefeita Paula Mascarenhas estabeleceu uma série de medidas drásticas, entre elas o fechamento de todas as atividades comerciais não essenciais e a suspensão das aulas. A UFPel, seguida pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e pelo Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSul), foi uma das primeiras a paralisar atividades no país, dando exemplo. Na sequência, as lições coletivas de empatia e solidariedade não só se seguiram como cresceram na crise.
Diante da escassez de álcool gel, as três instituições de Ensino Superior e a fábrica de refrigerantes Biri iniciaram a produção de mais 10 mil litros do produto, de forma voluntária, para distribuir no SUS. A iniciativa sensibilizou a população.
— Foi uma ação muito importante naquele momento, porque de certa forma contagiou as pessoas e fez com que compreendessem a gravidade da situação — recorda o cirurgião José Carlos Pereira Bachettini Júnior, reitor da UCPel.
A adesão às restrições foi imediata. Pelotas parou por cerca de 30 dias. Em abril, quando percebeu que a situação começava a ficar insustentável, Paula decidiu iniciar a flexibilização antes da maioria das cidades no Estado. Deu certo.
— Senti que a comunidade já não estava conseguindo levar aquilo adiante. Eu sabia que lugares que seguraram a curva (de infecções) por muito tempo, quando romperam com o isolamento, tiveram uma explosão de casos. Então cheguei à conclusão de que deveríamos flexibilizar, mas com compromisso social. As pessoas entenderam e se comprometeram — avalia a prefeita.
Comerciantes adotaram regras rigorosas e passaram a impedir a entrada de clientes sem máscaras. Nas ruas, a Guarda Municipal concentrou esforços nas filas bancárias, evitando aglomerações. Assentos e mesas da praça central foram interditados. Aos domingos, as forças de segurança passaram a orientar e a medir a temperatura dos moradores no acesso às praias e ao Arroio Pelotas. Com a ajuda de voluntários, passageiros recém-chegados à rodoviária também foram examinados.
Para preparar o sistema de saúde para o pior, a prefeitura abriu o Centro Covid, voltado inicialmente ao atendimento pediátrico, ampliou o número de leitos de UTI de cinco para 31 e criou serviço de teleconsulta via 0800 para reduzir a movimentação desnecessária nos postos. A partir de um projeto piloto da UCPel, as unidades básicas começaram a se comunicar via WhatsApp com os pacientes (leia mais detalhes abaixo).
Cada uma dessas ações, aliadas à participação da comunidade, contribuiu para evitar a perda de vidas e, em um círculo virtuoso, serviu de estímulo aos profissionais na linha de frente. Com classificação de risco baixo no modelo de distanciamento controlado (bandeira amarela), Pelotas não subestimou a doença. O desafio, a partir de agora, é manter a sociedade em alerta e consciente de que, mesmo com a aparente tranquilidade, não há margem para descuidos.
— Entramos na fase em que normalmente começam a aparecer os casos de síndrome respiratória aguda grave, então a tendência é de que o sistema seja mais demandado. É agora que a gente tem de reforçar os cuidados — alerta a secretária da Saúde.
Como o WhatsApp ajudou a conter a pandemia
Em abril, quando os efeitos da covid-19 se tornaram mais visíveis, pesquisadores da UCPel deram início a um projeto-piloto nas seis unidades básicas de saúde (UBS) administradas pela universidade em Pelotas: decidiram usar telefones celulares com WhatsApp para estreitar os laços com as comunidades do entorno. A iniciativa deu tão certo que acabou sendo estendida pela prefeitura a todas as UBS do município.
A ideia, segundo o médico Cayo Lopes, coordenador de Saúde Coletiva da UCPel, foi monitorar de forma ativa a situação de doentes crônicos e de grávidas cadastrados nos postos e, ao mesmo tempo, abrir um canal para quem precisasse de atendimento. A universidade adquiriu os smartphones e planos de dados, e os estudantes de Medicina colocaram a proposta em prática.
Em 40 dias, foram realizados 1,6 mil atendimentos. Em 48,9% deles, o contato partiu das equipes e, no restante das interações, a iniciativa foi dos pacientes. A maioria das conversas se deu por texto (60,7%) e áudio (37,2%). E o mais surpreendente: 68,3% dos atendidos tiveram problemas resolvidos sem precisar colocar os pés na rua.
— Ou seja: de 1,6 mil pessoas, mais de mil puderam permanecer em casa. Em uma pandemia, isso é fundamental — destaca Lopes.
Para os alunos, a experiência também foi importante.
— Aprendemos na prática como se faz telemedicina. É um bônus na nossa formação — resume a estudante Mariana Coelho de Lima, 25 anos.
Na avaliação de Lopes, a tendência é de que a iniciativa, até então pouco usual, se torne um legado da pandemia e continue sendo usada, mesmo depois que tudo passar.
— Nada disso substitui o atendimento presencial de um médico, mas pode ajudar muito — conclui o coordenador.
Veja outras ações adotadas em Pelotas
1) Teleconsulta
- Para evitar que as pessoas saíssem de casa para tirar dúvidas, obter ajuda psicológica ou ter acesso a orientação médica, foi criada uma central de teleconsulta via 0800, operada por profissionais da saúde que tiveram de ser afastados das atividades presenciais por integrarem grupos de risco. A central é uma parceria entre prefeitura, UFPel, UCPel, Companhia de Informática de Pelotas (Coinpel) e a startup Indeorum.
2) Dra. Vida
- Foi criada uma página na internet (pelotas.com.br/coronavirus) para oferecer atendimento online à população e facilitar o encaminhamento daquelas que têm sintomas gripais aos serviços de saúde. No site, o cidadão responde a perguntas feitas pela assistente virtual Dra. Vida, recebe um pré-diagnóstico e é orientado sobre como proceder (se deve permanecer em isolamento domiciliar ou procurar algum serviço de saúde). A iniciativa é fruto de parceria entre prefeitura, UFPel, UCPel, Hospital Escola, Coinpel e a empresa AVMB.
3) Mudanças nos postos
- Para minimizar o risco de contaminação cruzada, todas as unidades básicas de saúde (UBS) receberam tendas de triagem (evitando aglomeração e espera na recepção) e tiveram os turnos de atendimento divididos da seguinte forma: manhãs para pessoas com sintomas gripais e tardes para atividades de rotina, como vacinação, pré-natal, etc. Entre um turno e outro, higienização reforçada.
4) Centro Covid
- O Centro de Atendimento de Síndromes Gripais, mais conhecido como Centro Covid, foi criado no prédio que deveria ter sido destinado a uma UPA que nunca chegou a ser aberta por falta de apoio federal. Desde que foi criado, em 24 de abril, até a última sexta-feira (12), o local atendeu 329 pacientes com sintomas respiratórios, uma média de 7,6 por dia.
5) Treinamentos
- Cerca de 600 profissionais das 50 UBS receberam treinamento sobre como usar equipamentos de proteção individual (EPIs) e organizar o serviço de atendimento (com simulações) e cerca de 75 higienizadores foram capacitados sobre EPIs e formas de higienização.
6) Medições
- Durante seis semanas, a partir de 24 de março, foi medida a temperatura dos passageiros que chegavam à rodoviária, a partir de parceria entre Secretaria Municipal de Saúde, Terminal Rodoviário, Defesa Civil, Secretaria de Segurança Pública e profissionais voluntários. Foram examinadas 11,1 mil pessoas.
7) Doações
- Para que empresas e a população em geral pudessem ajudar com doações, foi criado um site (pelotaspelavida.com.br) que agrega e aponta de forma simples e direta as principais necessidades na pandemia, facilitando a vida de quem quer contribuir (basta visualizar os itens e escolher o que pretende doar). O projeto foi realizado em parceria entre prefeitura, Incomum Comunicação Estratégica e Coinpel. Até 12 de junho, foram doados 19 mil máscaras, 6 mil litros de álcool 70% e dois desfibriladores, entre outros produtos.
8) Fila segura
- Agentes da Guarda Municipal atuam para evitar aglomerações nas filas das agências bancárias, além de explicar sobre a necessidade do distanciamento e a importância de usar máscara. A operação conta com o apoio da Caixa Econômica Federal e da Associação Comercial de Pelotas (ACP) para a impressão de folhetos com orientações que são distribuídos às pessoas e da Secretaria Municipal de Saúde para a alimentação dos profissionais que atuam na ação.