Noventa trabalhadores que viajaram em dois ônibus por cerca de 70 horas desde Brasileira, no Piauí, estão isolados em hotéis no Rio Grande do Sul, um deles temporariamente em Camaquã e o outro em Pelotas, no sul do Estado. Todos deverão permanecer em quarentena nos seus quartos pelo período de 14 dias, sem a possibilidade de sair, com o recebimento de todas as refeições no local de hospedagem. Eles são empregados da Cymi do Brasil, empresa espanhola com filial no Rio de Janeiro, contratada pelo governo federal para realizar obra de instalação de redes elétricas e subestações de energia entre Santa Vitória do Palmar e Guaíba.
Prefeitos da região alegaram não terem recebido comunicações prévias nem sequer planos de contingência de saúde para lidar com a recepção do grupo em meio à pandemia de coronavírus. O Ministério da Saúde apontava 1.905 casos confirmados e 60 óbitos, até as 19h desta sexta-feira (15), no Estado do Piauí.
Ao tomarem conhecimento da chegada dos trabalhadores, prefeitos da região se mobilizaram para auxiliar, acompanhar e até restringir as movimentações. A justificativa é de que, caso haja manifestação de sintomas em algum dos trabalhadores, a rede de saúde local terá de dar conta de todos os atendimentos. Também causa temor o receio de contaminações coletivas, já que eles viajaram aglomerados entre segunda e quarta-feira, rasgando o Brasil de alto a baixo.
A prefeita de Pelotas, Paula Mascarenhas, chegou a ingressar com ação judicial requerendo que os grupos fossem impedidos de desembarcar na cidade, lhes restando a opção de buscar outro município de pouso ou regressar ao Piauí. A alegação foi de que havia decretos em vigor na cidade — um deles publicado na quarta-feira (13), dia em que se tomou conhecimento da chegada dos coletivos vindos do Piauí — impedindo a importação de mão de obra de outros Estados no período da pandemia. Recentemente, um pernambucano contratado por uma empresa terceirizada que também atuaria em obra do setor elétrico faleceu em Pelotas, após chegar já contaminado pela covid-19. O óbito foi contabilizado para sua cidade de origem.
O juiz do caso, Luis Antonio Saud Teles, da Comarca de Pelotas, avaliou que restringir o ingressos dos trabalhadores seria uma violação do direito de ir e vir, mas ponderou que a preocupação da prefeitura em momento de grave crise de saúde é fundamentada. Diante disso, o magistrado tomou uma decisão harmoniosa: permitiu que os dois ônibus ingressem em Pelotas, mas com a obrigatoriedade de os trabalhadores ficarem isolados em um hotel por 14 dias, passando por monitoramentos de saúde, incluindo a realização de testes em todos os passageiros para detectar eventual presença da covid-19. Todos os custos deverão ser arcados pela empresa, que deverá prestar informações sobre os deslocamentos à prefeitura.
— Falta prudência ao governo federal ao manter obras públicas de grande monta que exijam o transporte de trabalhadores de uma região para outra no país em plena pandemia. Nós, aqui em Pelotas, suspendemos obras públicas que dependem de mão de obra de fora. A nossa maior obra atual é a construção de uma estação de tratamento de água, mas suspendemos porque a mão de obra da empresa é basicamente de São Paulo. Proteger a sociedade, neste momento, é o mais prudente — avalia Paula.
Já nos últimos quilômetros da longa viagem, com o decreto impedindo a entrada em Pelotas, o ônibus que vinha à frente fez uma pausa em um hotel de Camaquã antes do meio-dia de quinta-feira (14). Contando com dois motoristas, se hospedaram no local 48 pessoas. Prefeito de Camaquã, Ivo de Lima determinou o isolamento do hotel tão logo soube da notícia. Ninguém podia entrar ou sair do local e os trabalhadores permaneceram nos quartos. A Brigada Militar e a Vigilância da Saúde monitoraram a situação no pátio do estabelecimento. Essa parcela de viajantes deixou Camaquã rumo a Pelotas às 19h15min desta sexta (15).
— Foi uma situação inesperada, houve esse decreto da prefeitura de Pelotas quando já estávamos quase chegando. Nenhum de nós está passando dificuldade, só não podemos sair — diz Alécio de Melo, supervisor da Cymi que viaja com o grupo provisoriamente retido em Camaquã.
Ele contou que, ao chegarem na cidade, o veículo foi higienizado. Também disse que os seus colegas estão em boas condições de saúde.
A prefeitura de Camaquã, horas após a chegada do primeiro ônibus, conseguiu interceptar o segundo na estrada, com auxílio da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Neste caso, o veículo foi impedido de ingressar na cidade e teve de seguir viagem até Cristal, onde estacionou em um paradouro. A prefeita Fábia Richter, de Cristal, enviou equipes ao local com alimentos, e profissionais de saúde fizeram medições de temperatura. Foi permitido que os trabalhadores descessem e ficassem ao redor do ônibus, no estacionamento, para que pudessem tomar sol. Pouco depois das 13h30min, esta parte do grupo seguiu viagem até Pelotas, onde seria encaminhada diretamente a um hotel para o cumprimento da quarentena, conforme decisão judicial.
A sucessão de fatos reverberou na região. A prefeitura de Barão do Triunfo, também na rota para a zona sul do Estado, soube por intermédio de contatos em Camaquã que cerca de 300 outros trabalhadores do Piauí estariam por chegar na cidade para trabalhar em obras do setor elétrico. A Vigilância de Saúde do município procurou a empresa responsável e ouviu a confirmação de que grupos numerosos chegarão a Barão do Triunfo, mas que isso não ocorrerá neste momento. Foi acordado que prefeitura e prestadora de serviço manterão contato para organizar protocolo de contingência.
Procurado pela reportagem, o Ministério de Minas e Energia se manifestou em nota: "O decreto 10.282/20, alterado pelo decreto 10.329/20, estabelece que a implantação de obras de engenharia para garantir a segurança de suprimento de energia elétrica, agora e quando a pandemia terminar, são serviços essenciais, além de permitir a participação de novos empreendimentos de geração nos próximos leilões. A execução das obras deve adotar todas as medidas necessárias para garantir a segurança dos trabalhadores e dos moradores dos municípios em que estão sendo implantadas. A empresa responsável pela implantação do empreendimento, que prevê investimentos de R$ 2,5 bilhões e geração de 11 mil empregos, assinou contrato de concessão com a Aneel e é responsável pela contratação dos trabalhadores."