Se a primeira parte revitalizada da orla do Guaíba despertou a paixão dos porto-alegrenses pela cidade, dentro de algumas semanas, os votos devem ser renovados. Recebendo os últimos ajustes, o chamado Trecho 3 corresponde a 1,6 quilômetro entre a foz do Arroio Dilúvio e o Parque Gigante, com 29 quadras esportivas e uma superpista de skate. Ao longo de setembro, vão ocorrer os primeiros eventos testes nas quadras de grama sintética, de concreto, de areia, de vôlei e de tênis.
O reencontro dos moradores com o Guaíba já é preconizado desde a entrega da Orla Moacyr Scliar em 2018. A área entre a Usina do Gasômetro e a Rótula das Cuias chegou a reunir mais de 50 mil pessoas por fim de semana.
A vontade de estar perto do Guaíba ficou ainda mais escancarada nos últimos três meses, com o Cais Embarcadero. A primeira parte do Cais Mauá devolvida à população "teletransporta" os porto-alegrenses a metrópoles ao redor do mundo — Nova York, Barcelona e Buenos Aires, com seu Puerto Madero, estão entre as comparações feitas nas mesas dos restaurantes lotados.
E os próximos anos devem trazer mais novidades junto ao Guaíba, incluindo a reforma da Usina do Gasômetro, a revitalização da área ao redor do Anfiteatro Pôr-do-Sol e a concessão do Cais Mauá. Com sete obras ainda para sair do papel, Porto Alegre pode encerrar a década diante de uma revolução urbanística nos 12 quilômetros que separam seu antigo cais dos clubes náuticos da Zona Sul.
O arquiteto, doutor em Urbanismo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Benamy Turkienicz aposta que a Capital terá “a orla planejada mais espetacular do país”.
— Você vai poder caminhar desde o Mercado Público, que é onde começa o cais, até a Avenida Diário de Notícias. Desafio alguém a encontrar em qualquer parte do país uma orla dessa extensão com mais atrações esportivas, de lazer, comércio, cultura. Nesse trecho tem até um museu de altíssima qualidade — salienta Benamy, referindo-se à Fundação Iberê Camargo.
Sempre que se acrescenta alguma coisa nova, que valoriza o espaço, a pessoa se sente orgulhosa daquilo que é seu
BENAMY TURKIENICZ
Arquiteto, doutor em Urbanismo e professor da UFRGS
Para ele, Porto Alegre vai se colocar como um expoente turístico e de qualidade de vida. E essas transformações já estão mexendo com a autoestima do morador da cidade:
— Sempre que se acrescenta alguma coisa nova, que valoriza o espaço, a pessoa se sente orgulhosa daquilo que é seu.
Benamy destaca ainda a sensação de segurança gerada pela presença de tanta gente na orla, antes malcuidada, suja e até inóspita. O povo não precisa mais sair correndo quando o sol se põe.
— Isso permite que as pessoas se aproximem do Guaíba, inclusive, à noite. Essa experiência de estar perto da água, de sentir aquilo que só se via de longe, é uma extensão nada desprezível — comenta o professor.
Retomada das ruas
O psicanalista Robson de Freitas Pereira, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, acredita que existe um movimento importante em curso na Capital, que é a retomada das ruas. Essa sede por estar ao ar livre só aumentou com a pandemia, que enclausurou as pessoas por meses dentro de casa. Com a beleza, a proximidade à natureza e a já citada sensação de segurança, a Orla acabou servindo bem a esse propósito.
— Esse reencontro com a rua é muito importante para nossa relação com o espaço e com o meio ambiente. Quer a gente se dê conta ou não, são coisas que você compartilha com os outros, não está isolado. Mesmo que esteja sozinho vendo o pôr do sol, você vai ter esse sentimento de comunidade — afirma.
Esse reencontro com a rua é muito importante para nossa relação com o espaço e com o meio ambiente. Quer a gente se dê conta ou não, são coisas que você compartilha com os outros, não está isolado. Mesmo que esteja sozinho vendo o pôr do sol, você vai ter esse sentimento de comunidade
ROBSON DE FREITAS PEREIRA
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
A relação do porto-alegrense com o Guaíba é tão forte que a cidade sempre levou “porto” no nome: Porto de Viamão, Porto dos Casais e, por fim, Porto Alegre. Mas grandes enchentes, em especial a de 1941, fizeram o porto-alegrense temer suas águas.
Com a intenção de proteger os moradores, foi construído um muro com três metros abaixo e três acima do solo ao longo de 2.647 metros de extensão — o maior símbolo da distância que se estabeleceu entre a cidade e o Guaíba. O Muro da Mauá projetou por vários anos, por meio de grafites, provocações de como seria a paisagem se a estrutura não estivesse ali.
O muro não vai ficar alheio às transformações junto ao Guaíba. A revitalização de um trecho de 750 metros começou na semana passada, entre a Secretaria Estadual da Fazenda e as proximidades da Usina do Gasômetro. As intervenções de embelezamento iniciaram-se pelo plantio de um jardim vertical de podocarpos (espécie conífera). Adotante do espaço, o consórcio Sinergy/HMidia ainda deve fazer painéis com a imagem de grandes personalidades da música, da literatura, do esporte, entre outros, além de uma cascata artificial. A previsão de entrega é para novembro.
Mas essa é uma solução temporária. O prefeito Sebastião Melo já defendeu levar ao chão o Muro da Mauá, e Eduardo Leite também acenou na mesma direção. A concessão que o governo do Estado está elaborando para o Cais Mauá deve incluir a diminuição ou até mesmo a demolição do muro, a partir de soluções anticheias mais modernas.
Porto Alegre ano 250
Porto Alegre completa 249 anos neste 26 de março ainda sob impacto da pandemia do coronavírus. Para o Grupo RBS, a data também marca o início da contagem regressiva para os 250 anos que serão completados no ano que vem. Assim, mensalmente, até o aniversário de quarto de milênio da Capital, publicaremos em Zero Hora e GZH conteúdos que abordarão aspectos fundamentais na tentativa de entender a formação de uma identidade porto-alegrense. As reportagens vão tratar a Porto Alegre das ruas, das pessoas, do futuro, da cultura, do empreendedorismo e das paixões. Esses conteúdos vão lançar um olhar para trás, como forma de compreender o que nos trouxe até aqui, retratar o presente e projetar o amanhã da Capital, sempre com foco voltado a aproximar nosso público da cidade que escolheu viver.
Muro da Mauá como inspiração à arte
Bem ou mal, o Muro da Mauá foi um elemento importante na concepção da imagem e da arte da Capital nas últimas décadas. Já fizeram referência a ele grandes nomes da música, como Humberto Gessinger, da banda Engenheiros do Hawaii. O vermelho que inspirou e guiou toda a composição de Anoiteceu em Porto Alegre, nona faixa do disco O Papa é Pop, de 1990, vem do pôr do sol no Guaíba, que levou ao elemento cinza que bloqueava sua vista.
— Derrubar muros e ampliar horizontes não deixa de ser uma das funções da arte. Espero que, além de metáfora, a gente sinta isso no dia a dia. Que a nova paisagem seja o símbolo de uma cidade que recebe e transmite, ouve e fala. Cultura é diálogo — reflete o músico, 31 anos depois.
Derrubar muros e ampliar horizontes não deixa de ser uma das funções da arte. Espero que, além de metáfora, a gente sinta isso no dia a dia. Que a nova paisagem seja o símbolo de uma cidade que recebe e transmite, ouve e fala
HUMBERTO GESSINGER
Músico
A banda Graforréia Xilarmônica também transformou em música a maior catástrofe natural de Porto Alegre e a construção do muro, compondo Enchente de 41: “Veja vocês, o mesmo Guaíba de um lindo pôr-do-sol; Deixou toda a cidade enredada num anzol; Canoas, jangadas, todo tipo de embarcação; Bateu a concorrência sem fazer licitação; Mas vejo com tristeza, no final a solução; Um muro na Mauá pra evitar outra invasão; Agora o Guaíba está distante, pra ver essa beleza Tem que subir o Morro Santa Teresa”.
Frank Jorge, integrante da banda, fica feliz ao ver “que a sociedade vem reaprendendo a conviver com essa parte da cidade”:
— Provavelmente, novas gerações de artistas, que já circulam por lá como um passeio, uma opção para espairecer, saberão cantar em prosa e verso os encantos e mistérios desse rio-estuário-lago.
Na fotografia, já existe o reflexo dessa nova fase da cidade, e a Orla repaginada é eternizada tanto por lentes de profissionais como de amadores. Apenas no rolo da câmera do celular do funcionário público Edson Peixoto, 53 anos, há milhares de fotos do espaço. Já teve publicada fotos suas em mais de cem grupos de redes sociais, divulgando o cartão-postal para o Brasil todo, e ainda para Índia, Indonésia, Grécia, Hungria, Croácia, Bangladesh.
Como trabalha no Fórum e mora na Cidade Baixa, passa sempre que pode na Orla para assistir ao pôr do sol. Teve semanas, no verão, em que não faltou a nenhum. Esse hábito é mais antigo que a revitalização, fotografava ali “desde que era tudo mato”.
Não que as pessoas não aproveitassem a Orla naquela época: mesmo sem muita infraestrutura, a parte próxima à Usina do Gasômetro sempre foi disputada. Mas em direção à Rótula das Cuias, ele costumava ter o Guaíba só para si.
— Agora, com a revitalização, é notório que as pessoas elegeram aqui o novo point. É a nossa praia — sintetiza.
Iniciativas em terra e na água
A Orla repaginada, sua geografia plana e ciclovia deram condições para dois guias de turismo criarem uma bike tour em Porto Alegre. À frente do projeto Viva+Poa, Evandro Costa, 28 anos, e Tamara Dias, 35, conduzem turistas e, principalmente, moradores da Capital em um percurso de oito quilômetros, a maior parte tendo o Guaíba à vista. Fazem paradas para comentar sobre monumentos, prédios históricos e mesmo a geografia da cidade.
— A gente conta a história do aterro, que o Guaíba antes vinha até perto da Avenida Praia de Belas e que toda essa área do parque Marinha do Brasil e estádio Beira-Rio não existia. Tem muita gente que não sabe e fica surpresa, mesmo quem mora aqui — relata Tamara.
O percurso de duas horas e meia começa na Usina do Gasômetro e termina no Pontal do Estaleiro, e a cobrança de R$ 45 inclui o aluguel da bicicleta, se o participante não tiver.
Tamara acredita que a nova orla pode impulsionar o turismo na Capital. Mas destaca que, antes de mais nada, uma cidade boa para o turista é uma cidade boa para o morador.
— Essa ciclovia que vai se estender nos novos trechos vai encurtar as distâncias entre o Centro e a Zona Sul, vai ter um fluxo ainda maior de pessoas fazendo o trajeto a pé ou de bici, de patinete — afirma a guia de turismo. — Fora que isso aproxima mais os atrativos e locais de grandes eventos, incluindo o Gasômetro, o Anfiteatro Pôr do Sol, o Parque Harmonia. A partir do momento em que existe uma conexão dos atrativos, a pessoa tem mais interesse em visitar mais lugares da cidade e vai permanecendo mais tempo — acrescenta.
Além de meios de transporte diferentes, as pessoas têm procurado outros ângulos para apreciar o Guaíba. Em finais de semana de tempo bom, há cada vez mais veleiros, lanchas e motos aquáticas.
Atento à oportunidade, o consultor em direito ambiental e navegador Ioberto Banunas criou a CelebraNau, empresa que prepara o início das operações para as próximas semanas. Ela servirá como uma facilitadora do acesso de embarcações ao Cais Embarcadero por meio de plataformas flutuantes.
— O pessoal não aguenta mais esperar, estão quase invadindo — conta, bem-humorado.
Dessa “praça náutica”, também devem sair passeios em veleiros na Capital. Há pelo menos oito iniciativas de charter na cidade, em que velejadores colocam seu barco à disposição para passeios privativos.
A gente tem que acabar com essa ideia de que Porto Alegre está se voltando novamente para o Guaíba: com o Trecho 1, isso já aconteceu. Agora, as pessoas querem se sentir dentro do Guaíba
IOBERTO BANUNAS
Consultor em direito ambiental e navegador
Para Banunas, antes muita gente achava que navegar pelo Guaíba era exclusividade de pessoas mais ricas. Com o compartilhamento dos barcos, esse conceito muda.
— A gente tem que acabar com essa ideia de que Porto Alegre está se voltando novamente para o Guaíba: com o Trecho 1, isso já aconteceu. Agora, as pessoas querem se sentir dentro do Guaíba — sustenta o empreendedor.