Após décadas de muita discussão e poucas atitudes práticas, Porto Alegre iniciou nesta semana um período de cinco anos decisivo para o seu futuro.
O tempo corresponde ao contrato firmado entre as empresas responsáveis pelo Cais Embarcadero e o governo do Estado. Ele servirá como uma espécie de contagem regressiva para que se teste o quanto a iniciativa pode tornar mais atraente e célere a revitalização de todo o Cais Mauá, cujo modelo de negócio está na prancheta do BNDES. Outra incógnita é se a revitalização pode reverberar para toda a região do Centro Histórico.
Se em 2009 a tentativa de concessão do Cais Mauá encontrava uma Porto Alegre animada com o curto período de crescimento econômico e o sucesso de grandes eventos pela região, como o Fórum Social Mundial e as Bienais do Mercosul, hoje o Centro Histórico é um vizinho preocupante. A pandemia acelerou tanto a fuga tanto de moradores quanto de trabalhadores, triplicando o número de imóveis vagos pelo bairro em 2020.
Porém, o Embarcadero mal abriu as portas – desde o início da semana, os restaurantes do local aceitam reservas em “soft opening” – e os primeiros sinais de interesse são positivos, a ponto de ocorrer um novo problema inusitado: a curiosidade das tripulações tem feito os barcos passarem muito perto dos restaurantes do Embarcadero, danificando algumas das lâmpadas apontadas para eles. Diretor da DC Set, Eugenio Correa cita outro bom indicador:
– Há cerca de um ano, dois operadores dos restaurantes aqui do Embarcadero decidiram alugar imóveis aqui em frente para dar apoio aos estabelecimentos. Encontraram ótimas opções a preço de banana. Hoje, para renovar os aluguéis ou buscar outros, já encontraram tudo cerca de 30% mais caro.
O grande desafio dos novos habitantes do Cais é estimular quem circula pela região a contornar o Muro da Mauá e descobrir a região como um recanto que pode ser usufruído tanto em intervalos de expediente quanto em happy hours. Isso aparece em decisões como a de manter um palco ao ar livre para apresentações gratuitas ao entardecer, em parceria com uma marca de cerveja. Já os restaurantes apostam no atendimento estendido, contrariando a máxima de que o Centro Histórico morre com o entardecer.
O Press do Cais, por exemplo, que tem espaços aberto e fechado no Embarcadero, atende até a meia-noite, mas também oferece opções de almoço executivo no cardápio mirando os trabalhadores do bairro. O objetivo é fazer com que o hábito de almoçar e dar uma caminhadinha no intervalo migre para a beira do lago.
Outra estratégia é uma busca constante para que o local seja sede de feiras e eventos. Já está definido que dois dias da semana serão dedicados a uma feira orgânica e outra de antiguidades. O próximo passo é hospedar eventos já consagrados, como uma oktoberfest. Outro cobiçado pelos administradores do Embarcadero é o Mississippi Delta Blues Festival, o maior de blues da América Latina, realizado desde 2014 em Caxias do Sul.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Desafios urbanísticos
A operação do Embarcadero, concebida para ser uma espécie de show room das possibilidades do Cais, também será um teste de desafios ao poder público e ao parceiro que ele selecionar para a empreitada.
Um exemplo: os principais restaurantes, os localizados na chamada Travessa Por do Sol, operam em estruturas temporárias em frente aos últimos armazéns do Cais Mauá. O mesmo não poderá ocorrer nos demais armazéns, pois cobriria a vista para os galpões tombados, principais ícones do skyline de Porto Alegre, ao lado da Usina do Gasômetro.
No Embarcadero, um dos armazéns serve de apoio aos funcionários do espaço, já o outro teve de passar por uma reforma de R$ 500 mil – majoritariamente gasto no conserto de cinco das suas seis vigas, que corriam risco – para se tornar minimamente utilizável. Multiplicando esse valor por oito, se tem a noção do custo mínimo para que os demais armazéns comecem a vislumbrar uma reabertura.
As possibilidades para dentro dos galpões, no tanto, são tão imensas quanto eles. A primeira iniciativa, no Embarcadero, já será ousada. No segundo semestre, começa a operar no local a Multiverso Experience, que promove exposições virtuais imersivas e tem parcerias como instituições como o Museu do Louvre. Van Gogh e Leonardo Da Vinci já foram tema de exposições nesse formato em cidades como São Paulo, Gramado e Florianópolis.
– Se o Museu da PUCRS (de Ciência e Tecnologia) atrai 400 mil pessoas por ano, imagina as possibilidades que temos aqui, apresentando o Cais Mauá a estudantes do Estado inteiro que nem sabem que ele existe. Ano que vem, Porto Alegre faz 250 anos, imagina uma exposição a respeito – provoca Eugenio Correa, da DC Set.
Se o objetivo for incentivar que o cais reverbere desenvolvimento para o Centro, o segredo é transformar o que hoje é segregação em conexão
LUCIANA MARSON FONSECA
Urbanista da Escola Livre de Arquitetura
Além do custo da ocupação dos armazéns, é questão de tempo para que a reativação do Cais Mauá demande alterações no trânsito da Avenida Mauá. O simples acesso ao estacionamento do Embarcadero, cerca de 400 metros à frente do pórtico principal, mostra que o fluxo ali precisa ocorrer a uma velocidade inferior. Um tráfego menos intenso de carros e caminhões também será bem-vindo se o objetivo for incentivar o pedestre a enfrentar a avenida para usufruir do que está atrás do muro.
Em uma escolha curiosa de vocabulário se tratando de uma estrutura criada para coibir enchentes, urbanistas falam em criar “permeabilidade” à região.
– Essa primeira iniciativa, especialmente se vier seguida de outras, vai criar um “hot spot” no bairro. Isso mexe com mercados, com o inconsciente coletivo da cidade, com tudo. Mas se o objetivo for incentivar que o cais reverbere desenvolvimento para o Centro, o segredo é transformar o que hoje é segregação em conexão - aponta a urbanista Luciana Marson Fonseca, diretora da Escola Livre de Arquitetura (ELA).
Como exemplo, Lucina recorda a iniciativa de trazer um campus universitário para o cais, mas sugere uma alternativa:
– Por que não fazê-lo nos edifícios do outro lado da Mauá? É justo que o pôr do sol mais bacana da cidade seja assistido pelos carros dos prédios estacionamentos, que nem são mais tão necessários?
Ocupação pela água
Talvez a iniciativa mais ousada do Embarcadero, a Praça Náutica surgiu de um questionamento pessoal do consultor de direito ambiental Ioberto Banunas, CEO da empresa Celebra Nau:
– Porto Alegre tem 20 mil barcos registrados junto à Marinha. Em contato com os clubes náuticos da cidade, 2 mil ficam estacionados neles. Onde estão os outros 19 mil? Em garagens das casas de praia, eu aposto, cobertos o ano inteiro sem uso.
Ainda em construção, a Praça Náutica terá estruturas de embarque e desembarque que poderão ser reservadas a um custo proporcional à embarcação por meio de um aplicativo. A principal rampa é a mesma doca em que os antigos navios frequentadores do antigo Cais Mauá ancoravam para manutenção de suas hélices. Além de resgatar a relação entre o porto-alegrense e o lago para lazer, Banunas mira mais à frente:
– Obviamente o Amazonas é o Estado com maior potencial hidroviário do Brasil, mas tu dirias que o Rio Grande do Sul é o segundo? O objetivo é explorar todo esse potencial de embarcações turísticas, esportivas ou mesmo de transporte que agora vão desembarcar direto no Centro da cidade, a começar pelo catamarã.
Outro benefício para a região é que a praça passará a se candidatar a sediar competições náuticas, atraindo turistas e competidores sobretudo para os meses de verão, quando a ocupação da rede hoteleira do Centro Histórico enfrenta seu período mais crítico.
O exemplo de Belém
Uma capital cuja pujança econômica no início do século 20 levou seus gestores a autorizar a construção de um porto. Com o tempo, a estrutura caiu em desuso, levando a população a esquecê-la e, em meio à urbanização, dar as costas às suas águas. Décadas depois, o mesmo cais do porto é peça-chave para a revitalizar o degradado centro da cidade. Parece a capital gaúcha, mas o relato ocorreu 4 mil quilômetros acima.
O filme a que Porto Alegre assiste hoje já terminou com final feliz em Belém do Pará, que tirou do papel a Estação das Docas em 2000. Por lá, o projeto arquitetônico teve como grande mérito a simplicidade e harmonia com os equipamentos originais, como os velhos guindastes e gradis metálicos. Os três armazéns foram preservados, ganharam mezaninos e cada um uma vocação: artes, gastronomia e eventos. Entre eles, uma estrutura envidraçada conecta os espaços. A administração é de uma organização social sem fins lucrativos criada para este fim, a Pará 2000.
Para a Estação das Docas começar a sair do papel, em 1995, ajudou muito ter como secretário estadual de Cultura um dos arquitetos responsáveis pelo projeto: Paulo Chaves, que assinou mais de uma dezena de obras em Belém. Sua morte em março passado, aos 75 anos por problemas cardíacos, causou comoção no Pará. Também autora do projeto, a arquiteta Rosário Lima aponta o “pé no chão” como um dos méritos:
Talvez um dos segredos do sucesso seja justamente ser simples. Por ser uma obra pública, não foi pensado em hotéis, shoppings e grandes estruturas. Às vezes, se pensa muito alto a ponto de não se fazer nada
ROSÁRIO LIMA
Arquiteta da Estação das Docas
– Talvez um dos segredos do sucesso seja justamente ser simples. Por ser uma obra pública, não foi pensado em hotéis, shoppings e grandes estruturas como aí em Porto Alegre. O conceito explorado foi o de boulevard: um espaço agradável para circulação à beira do rio. Às vezes, se pensa muito alto a ponto de não se fazer nada – opina a arquiteta.
Antes da pandemia, a Estação das Docas recebia entre 180 mil e 300 mil pessoas por mês. É o segundo destino mais popular de Belém, atrás apenas da Basílica de Nazaré.
Com o sucesso da estação, empresas passaram a cobiçar para revitalizações e exploração turística os casarões históricos de Belém localizados do outro lado da movimentada via pública. Ela deixou de ser chamada de avenida para se chamar Boulevard Castilhos França.
Quem sabe, em alguns anos, Porto Alegre não ganha também sua Boulevard Mauá.