A Operação Tempus Veritatis, deflagrada pela Polícia Federal na semana passada e que resultou em cumprimento de mandados judiciais contra aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (incluindo o próprio), gerou controvérsia no meio jurídico. Entre os indícios que motivaram a ação, que incluiu quatro prisões preventivas, está o vídeo de uma reunião na qual o então mandatário nacional e ministros cogitam "virar a mesa" antes das eleições e colocam em dúvida a legitimidade do pleito presidencial, no qual ele acabaria derrotado.
Segundo a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que assina os despachos judiciais, há indícios de tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado democrático de direito. Mas há quem discorde disso.
A reportagem ouviu especialistas em direito. A maior parte deles entende que a mera cogitação de um delito não caracteriza infração à lei. Mas há os que se alinham ao pensamento de Moraes e concordam que a pregação golpista sugerida pelo vídeo da reunião de Bolsonaro com ministros e também mensagens trocadas entre eles indicam crime.
Primeiro, os fatos: a PF coletou mensagens que indicam que Bolsonaro discutiu com oficiais-generais das Forças Armadas a edição de um decreto anulando o resultado das eleições e chamando novo pleito. É a chamada "minuta de golpe", que previa inclusive prisão do ministro Alexandre de Moraes.
Além disso, em reunião ministerial três meses antes da eleição, Bolsonaro sugeriu que ministros divulgassem falas sobre fraude eleitoral e conclamou-os a traçarem uma estratégia para garantir a manutenção do governo. "Se tiver que virar a mesa é antes das eleições", diz um dos presentes no encontro, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general da reserva Augusto Heleno.
Outros participantes da reunião — como o então ministro da Justiça, Anderson Torres, o ex-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e Mário Fernandes, então chefe-substituto da Secretaria-Geral da Presidência da República — também são investigados pela suposta tentativa de golpe de Estado, tendo sido alvos de mandados na operação da semana passada.
Cogitar golpe é crime?
Para o advogado criminalista e professor de Direito Penal Lúcio de Constantino, existem fases antes da concretização de um crime. Uma delas é a cogitação, a outra é a preparação e uma terceira, a execução.
— A mera cogitação, segundo o Código Penal, não é crime. É uma ideia. Mesmo a preparação é controversa. A execução, sim, é que é punível — resume Constantino.
Um exemplo de ato não punível seria o aluguel de uma casa que seria usada como cativeiro em um sequestro ou compra de cordas para amarrar uma vítima. Caso não ocorra o sequestro ou tentativa, não teria havido crime, mesmo que cogitado.
O advogado criminalista Daniel Tonetto, de Santa Maria, avalia que a tentativa de golpe de Estado, em si, é crime — mesmo quando a derrubada do governo não acontece. Só que, no caso específico de Jair Bolsonaro, no máximo teriam ocorrido atos preparatórios (caso a Justiça confirme a investigação da PF).
— Seriam, portanto, fatos atípicos criminalmente, pois estão ausentes as elementares dos artigos que descrevem os crimes em questão. Inexiste a violência, bem com a minuta e a reunião, por si só, não possuem o condão de configurar grave ameaça. Sendo assim, estaria-se falando de meros atos preparatórios, os quais não são puníveis criminalmente — pondera.
Entendimento similar tem o advogado catarinense Marcos Azevedo, que defende um dos réus condenados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, o gaúcho Eduardo Englert. Microempresário, ele viajou a Brasília para exigir novas eleições e pedir que fosse anulada a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foi preso dentro do Palácio do Planalto, invadido por uma multidão de manifestantes, alguns dos quais depredaram o prédio presidencial. Ele nega ter cometido qualquer dano ao patrimônio, mas foi condenado a 17 anos de prisão, pelo STF. Entre as provas que levaram à sua sentença estão mensagens que ele recebeu e repassou, conclamando os brasileiros a não aceitarem e se mobilizarem contra o resultado das eleições.
Conforme o advogado Azevedo, não existem provas de que Englert planejou o cometimento de crimes como invasão e depredação. E mesmo a cogitação não seria crime.
— Mesmo que tivesse cogitado tais atos, o STF estaria punindo ele por atos preparatórios, que não implicam em responsabilidade penal — pontua o defensor do condenado.
Azevedo acaba de mover, junto ao STF, embargos de declaração com efeitos infringentes, pedindo a absolvição de Englert.
A opinião do advogado criminalista gaúcho André Callegari, especialista em crimes de colarinho branco e com intensa atuação na Operação Lava-Jato, é de que, em alguns crimes, é possível antecipar a punibilidade, ou seja, permitir a punição pela preparação do delito.
— É o caso da tentativa de crime em que a reunião pode ser o início da execução do delito. Desde que presentes outros elementos que indiquem que havia a intenção de abolição do Estado democrático de direito — exemplifica.
Callegari avalia ainda que, confirmada a ocorrência de crime na reunião, todos os participantes, mesmo que não tenham se manifestado, podem ser responsabilizados por omissão. Alguns agentes públicos, como oficiais das Forças Armadas, têm dever jurídico de denunciar possíveis delitos que presenciem.
STF tem condenado complôs similares
Mesmo que pelo Código Penal a cogitação de crimes possa não ser punida, a Lei Antiterrorismo (13.260/16) prevê a punibilidade para quem endossar crimes de terrorismo ou tentar prepará-los. É o que aconteceu com um grupo de jovens brasileiros, admiradores da organização extremista muçulmana Estado Islâmico, que combinou cometer atentados terroristas às vésperas das Olimpíadas de 2016.
Eles divulgavam vídeos elogiando decapitações promovidas por terroristas e cogitaram envenenar redes de distribuição de água no Brasil. Não concretizaram nenhum dos crimes, mas oito dos integrantes do grupo foram condenados a penas que variam de cinco a 15 anos de prisão. A pena mais alta foi para um homem de Goiás, que adquiriu armamento para possíveis atentados. Eles cumpriram as sentenças, confirmadas pelo STF.
O Supremo também tem considerado que a mera pregação de golpe de Estado é passível de condenação. A Corte condenou dezenas de pessoas pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 e as penas mais altas foram pelos crimes de tentativa de golpe de Estado e articulação para abolir o Estado democrático de direito. Nenhum dos réus, até agora, foi absolvido.
Ao autorizar os mandados da Operação Tempus Veritatis, Alexandre de Moraes não hesita em chamar os fatos de "intento criminoso". "Os protestos convocados não se originavam da mobilização popular, mas da arregimentação e do suporte direto do grupo ligado ao então presidente Jair Bolsonaro, como estratégia de demonstração de 'apoio popular' aos intentos criminosos", diz trecho do despacho do ministro do STF.