Quem é o primeiro gaúcho condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pelos distúrbios antidemocráticos de 8 de janeiro em Brasília? As definições sobre Eduardo Zeferino Englert, 41 anos, cujo julgamento terminou sexta-feira (24), refletem a polarização política do país. Para os que conviviam com esse santa-mariense nos acampamentos de protesto contra o resultado das eleições presidenciais que elegeram Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Englert é a gentileza em pessoa — e um patriota fervoroso e incompreendido. Para alguns colegas na faculdade de Psicologia, no entanto, é um extremista de direita, que jamais respeitou os resultados das urnas.
Englert foi condenado a 17 anos de prisão. O Grupo de Investigação da RBS (GDI) foi a Santa Maria e região para conhecer um pouco mais o réu. Falou com defensores, familiares, colegas, amigos... pessoas que concordam e outras que discordam das posições políticas de Englert.
Leu também a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) que o enquadra em conspiração para golpe de Estado e associação para o crime. Foram analisadas as provas coletadas pela Polícia Federal (PF) no processo e lido o voto do ministro-relator do STF, Alexandre de Moraes, que votou por 17 anos de prisão para o gaúcho. O resultado é um mosaico, bem de acordo com o conturbado cenário político do país.
Englert se criou e ainda vive no bairro Dom Antônio Reis, uma área de classe média em Santa Maria, onde os familiares administram comércios. Microempresário, chegou a fundar um aplicativo de transporte de pessoal, trabalhou numa ferragem da família e atuou na fabricação de canecas, copos e camisetas personalizadas. Universitário, Englert gosta de política e nunca disfarçou suas crenças.
Ao longo da última década criticou o mensalão (escândalo de compra de parlamentares durante o primeiro governo Lula) e o petrolão (corrupção em contratos da Petrobras, segundo governo Lula), apoiou a Operação Lava-Jato e o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), fez postagens a favor de Jair Bolsonaro (PL) em 2018 e renovou apoio à reeleição, em 2022. O que lhe trouxe alguns dissabores.
Política estudantil na faculdade
Na faculdade de Psicologia da Sobresp, onde cursa o sétimo semestre, Englert costumava frequentar um grupo de apoio a Bolsonaro. Conforme colegas, foi advertido por postar, em um grupo de Whatsapp criado para avisos da turma da faculdade, mensagens de propaganda política. Parou, mas continuou foco de polêmicas, criticado pelos colegas pelo uso frequente de adesivos bolsonaristas ou por divulgar nas redes sociais links da Brasil Paralelo (empresa de documentários com viés de direita e que prega o revisionismo histórico sobre alguns temas).
Costumava duvidar da confiabilidade das urnas. Ao contrário de alguns admiradores de Bolsonaro, no entanto, Englert não se posicionou abertamente contra a vacina da covid-19, nem colocava em dúvida que a Terra é redonda. Seus amigos dizem que ele também não fez cursos do pensador Olavo de Carvalho, guru da extrema-direita brasileira (falecido em 2022).
Englert tampouco é visto como encrenqueiro, nem sequer pelos adversários ideológicos. Mesmo em discussões políticas, não costuma se exaltar, usa mais da ironia. Não se envolveu em brigas pela política, nem tem antecedentes policiais ou criminais
Englert participou das grandes manifestações bolsonaristas no Sete de Setembro e, logo após a vitória de Lula nas eleições, aderiu à tese de que o pleito poderia ter sido fraudado. Ingressou no grupo de WhatsApp Business "Segundo Turno Santa Maria" e passou de imediato a frequentar as manifestações em frente ao quartel da 6ª Brigada de Infantaria Blindada, em Santa Maria. Sem exaltações, ressaltam colegas de causa.
— Eduardo é um sujeito tranquilo. Fabricava e levava canecas com temática política ao acampamento. Um cara de alto nível, universitário, contrário à bandalheira no país. Um legítimo patriota — define o representante comercial Gilson Da Cas, um dos frequentadores do acampamento em frente ao quartel santa-mariense.
De ônibus até Brasília
Outra frequentadora dos protestos, produtora rural, confirma que Englert é um boa-praça, sempre solícito em trazer café e lanches aos colegas. Diz que ele chegou a providenciar um roteador para que os frequentadores do acampamento em frente à 6ª Brigada pudessem desfrutar gratuitamente da internet.
Essa conhecida dele, que prefere não se identificar, lembra que Englert estava entre os manifestantes sondados sobre uma possível ida a Brasília. A produtora disse que não iria, até porque Lula já tinha tomado posse e os militares não davam sinal de que fossem intervir contra o novo governo, como queriam os bolsonaristas.
— Aquela ida a Brasília nunca me pareceu razoável. Desconfiei que não terminaria bem, porque ficamos 60 dias em frente aos quartéis, sob chuva, sem que os militares fizessem algo sobre a possível fraude nas urnas. Decidi não passar o Natal numa barraca — resume a conhecida de Englert.
Englert optou por se aventurar. Em 8 de janeiro, quando cruzava o Estado de Goiás, o manifestante inconformado postou no Facebook: "Estou indo para Brasília, neste país lugar melhor não há" (verso da canção Faroeste Caboclo, de Renato Russo). É possível acompanhar seus passos por meio da perícia feita pela Polícia Federal no celular dele, que foi apreendido.
Conforme o GPS do telefone, Englert saiu às 13h de 6 de janeiro de sua casa, em Santa Maria. Ingressou num ônibus de linha, que fez várias paradas, até Passo Fundo. Lá chegou na madrugada do dia 7 e pegou outro ônibus, fretado por manifestantes anti-Lula trajados em verde e amarelo, rumo a Brasília, onde desembarcou às 14h30min do dia 8, quando começavam os distúrbios. Saiu do veículo na Praça dos Três Poderes, já tomada por manifestantes irados, às 15h3min, quando o Congresso, o Planalto e o STF eram depredados.
Englert chegou a ter o julgamento adiado porque, em seu voto, Alexandre de Moraes mencionava que o gaúcho esteve acampado com bolsonaristas em frente ao QG do Exército em Brasília. O advogado do réu provou que Englert chegou na capital federal apenas no dia dos distúrbios. Esclarecida a questão, o julgamento no STF foi remarcado e terminou dia 24.
Vídeos embasaram prova
A quebra do sigilo telemático do celular de Englert mostra, além do trajeto feito desde o Rio Grande do Sul, que ele fotografou os distúrbios. Registrou o momento em que mais de mil manifestantes (inclusive ele) ingressaram à força nos edifícios, sob olhar atônito de policiais. A investigação menciona que ele compartilhou um vídeo que estimula as pessoas a tomarem Brasília "igual ao povo de Sri Lanka fez". Na mensagem (destacada em voto pelo ministro do STF Alexandre de Moraes), Englert recomenda que as imagens sejam viralizadas.
— Não adianta paralisação, não adianta fechar estrada. A gente já teve experiência com isso. A gente já sabe o que vai acontecer. Vamos levar borrachada na estrada, vamos ser preso, levar multa. Ou agimos todos juntos, em união, numa cartada só, é agora ou é nunca... — relata o vídeo compartilhado por Englert, conforme perícia da PF.
Em outros dois vídeos que a PF diz terem sido veiculados por ele, Englert recomenda divulgação "porque a mídia vermelha vai dizer que foi um fracasso". Da estrada, ele fez nova postagem: "Chegando em Brasília, 07/01, sábado. Estamos na maior mobilização da história".
A perícia menciona ainda outros vídeos gravados por Englert, que focam em manifestantes subindo a rampa e invadindo o Palácio do Planalto, assim como cantando o Hino Nacional em frente ao prédio presidencial. Ele também se filma junto aos militantes, tentando convencer soldados do Exército a deixá-los passar para outras alas do edifício. O santa-mariense trajava boné claro e camiseta verde e amarela, escrita em letras grandes BRASIL. Foram seus últimos retratos divulgados.
Englert foi preso no Palácio do Planalto por volta das 17h22min de 8 de janeiro. Teve as mãos manietadas pelos policiais, com fios de náilon. E foi conduzido a uma delegacia da Polícia Civil às 19h10min, com outros detidos em flagrante. De lá foi transferido para um local de triagem na Polícia Federal. Sua trajetória definiu seu destino: como fora preso em flagrante dentro de um local depredado e invadido, foi indiciado por conspiração para golpe, tentativa de abolição do Estado de Direito, associação criminosa, dano qualificado e deterioração do patrimônio público tombado. Da triagem, foi recambiado para o Complexo Penitenciário da Papuda, onde permaneceu por exatos seis meses. Partilhou a cela com outros bolsonaristas presos em flagrante naquela data.
Eduardo Englert acabou liberado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 8 de agosto. Foi imposto a ele o uso obrigatório de tornozeleira eletrônica, proibição de encontrar outros réus do caso e, também, de uso de redes sociais. Alegando isso, o santa-mariense não quis dar entrevista ao GDI.
Estudo de psicologia de massas
Em seis meses trancafiado na Papuda, Englert recebeu poucas visitas: de familiares e, algumas vezes, do defensor, Marcos Azevedo. Reclamou da comida e das restrições para ser visitado ou se comunicar. No semestre atrás das grades, Englert e outros gaúchos receberam visitas de alguns parlamentares de direita, como Osmar Terra (MDB) e Marcel van Hattem (Novo).
Desde que foi libertado, retomou as aulas, só que agora por ensino a distância (EAD), por força dos limites impostos pela tornozeleira eletrônica. Englert enviou um recado à reportagem: ele participou de muitas manifestações porque estuda psicologia das massas, de um ponto de vista que foi abordado até por Freud. Inclusive esse deve ser o tema do seu trabalho de conclusão de curso (TCC).
Conforme o advogado Marcos Azevedo (que atua no caso porque conhece a família de Englert), ele não tem envolvimento em depredação e isso pode ser provado por geolocalização do celular dele. O empresário teria ido até a entrada do Palácio do Planalto para ajudar manifestantes que estavam machucados.
— Eduardo foi até Brasília com valores próprios, ninguém o financiou. Foi com a intenção de manifestar, pacificamente, sua insurgência contra as eleições. Agora está sendo penalizado, sem o adequado processo legal, como um preso político. Ele é um sujeito pacífico, não é um militante, embora tenha suas preferências políticas — reclama Azevedo.
Não é esta a opinião do relator dos processos do 8 de janeiro no STF, ministro Alexandre de Moraes, que pediu a condenação de Englert a 17 anos de prisão. E justificou:
"Cabe lembrar que o acesso à Praça dos Três Poderes e aos edifícios sede não estava liberado aos manifestantes, que somente lá chegaram por meio de rompimento das barreiras fixadas e pelo enfrentamento com as forças de segurança, em especial a Polícia Militar do Distrito Federal. Nesse sentido, o acusado (Englert) gravou a invasão no Palácio do Planalto e a horda criminosa pedindo a intervenção militar, com o insuflamento de soldados que ali se encontravam".
A amigos, Englert revelou que estava apreensivo e pouco esperançoso, já que assistiu aos primeiros julgamentos. Afinal, todos os 25 julgados até chegar sua hora foram condenados. Acertou. Foi condenado, mas ainda tem direito a recorrer em liberdade.