Faltando uma hora para o encerramento das atividades do Judiciário em 2018, uma liminar permitindo a saída da cadeia do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sacudiu o país na quarta-feira (19), realimentando a espiral de amor e ódio em torno do mais notório presidiário brasileiro.
Em decisão individual, o ministro Marco Aurélio Mello contrariou posição consolidada no plenário da Corte e determinou a soltura de todos os condenados em segunda instância que ainda têm recurso aguardando julgamento. A medida só foi revertida no início da noite, quando o presidente do STF, Dias Toffoli, cassou o despacho do colega de toga.
Eram 14h quando Mello colocou ponto final nas 18 páginas da medida cautelar tomada no âmbito de um processo movido pelo PCdoB. Tradicional aliado do PT, o partido havia ingressado em abril com uma ação pedindo que fosse declarado constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal. O dispositivo impede a prisão antes do trânsito em julgado das condenações.
No texto, o ministro criticou os "argumentos metajurídicos" supostamente usados para a execução provisória das penas, sobretudo o alegado combate à corrupção.
— Tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República! Que cada qual faça a sua parte, com desassombro, com pureza d'alma, segundo ciência e consciência possuídas, presente a busca da segurança jurídica — escreveu Mello, antes de garantir a possibilidade de soltura de 169 mil condenados em segunda instância, entre eles 21 dos 35 presos pela Lava-Jato.
Com a decisão tomada, Mello foi almoçar com Toffoli — e ficou em silêncio
Havia dois dias que corria à boca pequena, nos círculos mais reservados de Brasília, rumores de que uma decisão judicial poderia tirar Lula da cadeia antes do recesso do Judiciário. Pouco antes de liberar a decisão, o próprio Mello participou de almoço de final de ano oferecido por Toffoli aos ministros da Corte. Em nenhum momento comentou estar prestes a assinar o despacho. O comportamento irritou os colegas que, assim que souberam da decisão, procuraram Toffoli para cobrar a cassação da liminar.
— Está virando rotina o STF fazer todo o tipo de trapalhada — reagiu um habitué dos gabinetes do Supremo.
Em junho, Marco Aurélio havia dito que "infelizmente" não podia derrubar sozinho a prisão em segunda instância em respeito à decisão do plenário. Para justificar a mudança de entendimento, ele disse nesta quarta-feira que reagiu à "manipulação da pauta" pelos presidentes da Corte.
Das três ações, Mello liberou duas pra julgamento, mas a ex-presidente da Corte Cármen Lúcia jamais marcou data. Nesta semana, Toffoli pautou o outro processo para 10 de abril.
Tão logo a decisão de Mello se tornou pública, às 14h48min os advogados de Lula ingressaram com uma petição na Justiça Federal de Curitiba exigindo o cumprimento da liminar. Surpreendida com a notícia e vendo pedidos semelhantes se acumularem, a juíza Carolina Lebbos, titular da 12ª Vara e responsável pela gestão das penas da Lava-Jato, decidiu solicitar manifestação do Ministério Público Federal antes de agir.
Ao mesmo tempo, militantes pró e contra Lula começaram a se mobilizar. Em Brasília, um grupo se dirigiu para a frente do STF para protestar contra a liminar. Em Curitiba, petistas ampliaram a aglomeração no acampamento situado a uma quadra da Superintendência da Polícia Federal, onde Lula cumpre pena desde 7 de abril. Parlamentares do partido diziam que Lula até mesmo abria mão do exame de corpo de delito para deixar a prisão o mais breve possível.
Decisão caiu como uma bomba nos meios político e jurídico
Nos ambientes políticos e jurídicos, a repercussão foi imediata. O assunto pautou a primeira reunião ministerial do presidente eleito Jair Bolsonaro, mas na saída reinou uma lei do silêncio. Futuro titular da Justiça e responsável pela primeira condenação de Lula, Sergio Moro se esquivou:
— Não vou falar sobre isso.
Filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro citou a abrangência da decisão para criticar a iniciativa de Mello.
— Não sei se o Brasil tem noção da real gravidade que essa medida do ministro do STF Marco Aurélio pode impactar neste fim de ano. Milhares de presos podem ser soltos e ficarem livres pelo menos até fevereiro! Num ambiente com a população desarmada e a polícia desestimulada! — escreveu o parlamentar em sua conta no Twitter. Horas depois, a mensagem foi apagada.
Seus aliados foram mais além. Deputados eleitos, Filipe Barros (PSL-PR) e Bia Kicis (PRP-DF) pretendem protocolar hoje no Senado pedido de impeachment de Mello.
— Nos causou estranheza que, somente 48 minutos após Marco Aurélio dar sua decisão, o PT já protocolou na Justiça Federal do Paraná o pedido para a soltura de Lula. Parece que foi articulado e o pedido de impeachment é justamente para averiguar essa situação - disse Barros.
Em Curitiba, a força-tarefa da Lava-Jato convocou entrevista coletiva para reagir à liminar. Num jogral de críticas a Mello, cinco procuradores reunidos em torno de uma mesa citaram insegurança jurídica e estímulo à impunidade como efeitos imediatos da medida.
— A decisão contraria o sentimento da sociedade que exige o fim da impunidade. Ela na verdade consagra a impunidade violando pretendentes estabelecidos pelo próprio STF — afirmou o coordenador da equipe, Deltan Dallagnol.
Pedido para suspensão da liminar chegou depois das 18h
Às 17h52min, chegou ao STF o pedido da Procuradoria-Geral da República para a suspensão da liminar.
Em 21 páginas, a procuradora Raquel Dodge afirma que a iniciativa representa "triplo retrocesso" para o sistema jurídico, afetando a estabilidade, o cumprimento das penas e a própria "credibilidade da sociedade na Justiça".
Os argumentos bastaram para justificar a ação de Toffoli, que desde o início da tarde estava disposto a cassar a liminar. No despacho, o presidente afirmou que a decisão tinha por finalidade "evitar grave lesão à ordem e à segurança públicas".
Era o fim de uma celeuma jurídica que, pela segunda vez em menos de seis meses, deixou Lula na iminência de sair da prisão, mas que ao cabo o impediu de até mesmo tomar o banho de sol diário na carceragem da PF em Curitiba.