Cinco processos administrativos para aquisição de materiais didáticos e laboratórios de matemática e ciências realizados pela Secretaria Municipal da Educação (Smed) de Porto Alegre queimaram etapas previstas em regramentos da própria prefeitura e do Tribunal de Contas da União (TCU).
A Smed deveria ter apresentado a necessidade do produto e realizado o planejamento de compra seguindo passos que incluem estudos de eficiência, viabilidade e economicidade. As escolhas do modelo de aquisição e a definição do fornecedor deveriam constar no final de um criterioso processo. Ao contrário disso, os procedimentos analisados na íntegra pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) foram iniciados, em 2022, já com a apresentação de orçamentos ou com atas de registro de preço de empresas que viriam a ser contratadas como fornecedoras. A ata de registro de preço é uma licitação feita por outro ente público e que pode ser aproveitada pelos demais, mediante observação de normas. Ela é conhecida como "carona" e agiliza o gasto público.
Pela regra vigente, um procedimento de compra deve ser iniciado com a apresentação de uma demanda do poder público. É como fazer uma lista de mercado demonstrando a necessidade de leite e biscoito que tenham determinadas vitaminas, mas sem mencionar uma marca específica dos produtos a serem adquiridos. Depois, o setor responsável elabora um estudo preliminar que irá apontar alternativas para solucionar a demanda. As etapas seguintes se sucedem (veja o detalhamento abaixo) até que seja avaliada a melhor opção de modalidade de aquisição e a definição do fornecedor, mas a Smed já começou o processo com a escolha do fornecedor encaminhada. A pasta apontou, desde o princípio, as empresas Inca Tecnologia, Astral Científica e Sudu Inteligência Educacional como as escolhidas para vender produtos à rede municipal de ensino.
As regras a serem seguidas estão em uma "Informação Jurídica Referencial" da Procuradoria-Geral do Município (PGM). O documento registra, por exemplo, que "a realização de procedimento de adesão não dispensa a realização prévia de todos os procedimentos internos de planejamento da contratação". A orientação é de junho de 2022, e todas as compras da Smed foram concluídas depois desta publicação. Antes de ela entrar em vigor, já valiam norma do TCU e uma nota técnica de uma setorial da PGM emitida em 2019. Em ambas as orientações, é destacada a necessidade de estudos técnicos preliminares.
Os processos de compra analisados pelo GDI não têm indicação do objeto a ser comprado, explicação sobre qual a necessidade da secretaria, nem formalização da demanda assinada por quem deseja a compra. Também não consta informação de como a Smed encontrou a oferta dos fornecedores que foram contratados. Juntas, as empresas Inca, Sudu e Astral venderam à Smed nesses processos R$ 43,2 milhões em livros e laboratórios de ciências e matemática.
Série de reportagens revelou desperdício de materiais
Em 6 de junho de 2023, o GDI iniciou a publicação de reportagens mostrando que milhares de livros comprados da Inca e da Sudu estavam acumulados em caixas em escolas e em depósitos da Smed, sob condições precárias de acondicionamento, sem uso pelos estudantes da rede municipal. As revelações desencadearam medidas por parte da prefeitura, que determinou auditoria especial na Smed e criou um grupo de trabalho para agilizar a entrega dos materiais. O comando da secretaria foi trocado.
Em 11 de junho, o então secretário-adjunto da pasta, Mário de Lima, solicitou apuração, por meio de Investigação Preliminar Sumária (IPS), sobre nove processos de compras. Dentre eles, constavam quatro dos cinco analisados agora pelo GDI. No documento, Lima pediu verificação da forma de contratação e observação de pré-requisitos como economicidade, eficiência e interesse público, além da identificação dos responsáveis pela elaboração dos planos de trabalho, termos de referência, projetos básicos e critérios qualitativos e quantitativos para as compras. Também foram determinadas averiguações sobre a distribuição, armazenamento, transporte e entrega dos materiais.
O pedido de apuração interna foi homologado pela então titular da Smed, Sônia da Rosa. Houve encaminhamento, também, para a Corregedoria-Geral do Município por "haver temas de conduta disciplinar" a serem apurados. O prefeito Sebastião Melo ainda determinou, em 7 de junho, a realização de uma auditoria especial pela Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria, com prazo de 60 dias. A apuração administrativa segue em andamento e não há, até o momento, o anúncio de conclusão.
Como deveria ser o procedimento de compra da Smed
- A Smed deveria ter aberto os processos administrativos de compra com a "indicação sucinta do objeto e formalização da demanda" identificada. Por exemplo: registrar que a secretaria constatou a necessidade de comprar livros mais modernos para atender à base nacional comum curricular na formação dos alunos.
- Depois de apontada a necessidade, o gestor público deveria ter elaborado estudos preliminares que apontariam as soluções possíveis para a demanda.
- A partir desses estudos preliminares, também seria discutido o melhor modelo de compra pela prefeitura: pregão eletrônico, dispensa de licitação, inexigibilidade (quando somente um fornecedor dispõe de uma solução) ou adesão à ata de registro de preço.
- A decisão de aderir à ata de registro de preço, conhecida como "carona", exige a realização prévia de todos os procedimentos internos de planejamento da contratação, incluindo estudo que demonstre o ganho de eficiência, a viabilidade e a economicidade para a administração pública.
- Também é necessário discutir critérios qualitativos e quantitativos. Isso significa avaliar se determinada solução atende a padrões pedagógicos desejados e quantas unidades devem ser compradas para atender a rede municipal.
- Outra etapa do processo é a elaboração do termo de refência, um aprofundamento das discussões técnicas sobre os materiais a serem comprados.
- Cumpridas essas etapas, caso entendesse que o melhor caminho era aderir à ata de registro de preço, a Smed só então encaminharia a escolha do fornecedor.
Como foi feito o procedimento de compra da Smed
- Os processos administrativos de compra foram iniciados, desde os primeiros documentos, com orçamentos ou atas de registro de preço das empresas que viriam a ser contratadas como fornecedoras.
- Também houve casos de processos administrativos abertos com termos de referência que começavam com a fornecedora definida e identificada.
- Não houve indicação do objeto a ser comprado nem detalhamento da necessidade da Smed.
- Não houve realização dos estudos preliminares antes da abertura do termo de referência.
- Não constou a informação de como a Smed encontrou as ofertas dos fornecedores contratados, seja orçamento ou ata de registro de preço.
- Parte dos documentos públicos continha cópias de trechos do texto de apresentação do site de uma fornecedora.
Contraponto
A Secretaria Municipal da Educação (Smed) de Porto Alegre se manifestou em nota. Leia a íntegra:
"Todas as aquisições foram feitas de acordo com os ritos legais. As informações detalhadas estão sendo apuradas pela Auditoria Especial da Educação, realizada pela Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria (SMTC), por determinação do prefeito Sebastião Melo".