A empresa que deveria ter executado um mutirão de consertos em escolas municipais de Porto Alegre estava impedida de fazer negócios com o município quando o contrato de R$ 4 milhões foi assinado em abril de 2022 com a Secretaria Municipal da Educação (Smed).
A proibição era decorrente de medida cautelar da própria Procuradoria-Geral do Município (PGM) em função de a SLP Serviços de Limpeza e Portaria ser uma das investigadas pela Polícia Federal (PF) por desvio de recursos da saúde em Rio Pardo.
Em contratos na área da Educação e da Saúde a SLP recebeu, entre 2021 e 2023, gestão do prefeito Sebastião Melo, R$ 38,8 milhões do executivo municipal, conforme o Portal Transparência. Para manter os negócios com o poder público municipal, a empresa obteve decisão favorável na Justiça. Mas quando o contrato com a Smed para reparos e manutenção nas escolas foi assinado, a proibição estava valendo, conforme apurou o Grupo de Investigação da RBS (GDI).
Depois da medida da PGM, emitida em 2020, a SLP recorreu à Justiça para garantir o direito de contratar com o município. Teve decisão liminar favorável em dezembro daquele ano, mas em 9 de marco de 2022, a Justiça julgou o mérito da ação e negou o pedido da empresa, também cancelando a liminar que a beneficiava.
Conforme a PGM, o município só foi intimado dessa decisão judicial em 19 de março de 2022, depois de já ter homologado a vitória da SLP na disputa por pregão eletrônico.
Quando o contrato foi assinado pela Smed, no entanto, em 19 de abril do ano passado, a prefeitura já tinha conhecimento da decisão judicial que fazia valer novamente o impedimento de contratação da SLP.
Conforme a PGM, a assinatura ocorreu "em respeito ao resultado da licitação e levou em consideração o fato de que a própria administração reavaliou o ato administrativo que impedia a empresa de contratar".
Mas o julgamento do ato administrativo que proibia a contratação só ocorreu em outubro de 2022. Foi apenas nesse julgamento que o executivo entendeu que não havia elementos que impedissem a SLP de contratar.
Problemas no contrato da SLP com a Smed vieram à tona durante a série reportagens do Grupo de Investigação da RBS (GDI), que mostrou que materiais didáticos e esportivos comprados em 2022 seguiam encaixotados em escolas e depósitos sem uso por alunos e professores. Além disso, servidores reclamaram ao GDI de problemas estruturais não resolvidos nos prédios das unidades de ensino. O trabalho deveria ter sido feito pela SLP ao longo de um ano.
Antes de deixar o cargo de secretária municipal da Educação, Sônia da Rosa disse ao GDI que a secretaria não teve "sorte" com a empresa.
— Nós não tivemos talvez sorte com a empresa. Tivemos muitos problemas. Do tipo de realizar uma pequena reforma mal feita, de não estar a contento do que a diretoria gostaria. Do que ela solicitou e não foi cumprido. Serviço mal feito. Esse processo nós rescindimos. Venceu o contrato. Fizemos todas as notificações. A última notificação que nós fizemos já estava quase no encerramento (do contrato). E encerramos e não renovamos.
A SLP não é uma novata na prestação de serviços ao município. Ao menos, desde 2019, há contratos firmados entre o município e a SLP. Em 2020, a empresa apareceu como investigada pela PF na Operação Camilo, por suspeita de participação em desvio de recursos da saúde em Rio Pardo.
Em inquérito concluído no ano passado, a PF registrou que a SLP teria no comando um "laranja", ou seja, alguém que atuaria pelos verdadeiros donos. Quem consta oficialmente como dono da empresa, desde 2017, é Antonio Claudino Santos da Silva. Foi ele que assinou contratos com a prefeitura da Capital nos últimos anos.
A PF também apurou que a empresa teria sido usada para desvio de recursos por meio de contratos superfaturados em Rio Pardo. A Promotoria de Justiça do Patrimônio Público informou ao GDI que segue em andamento a investigação da Operação Camilo na parte que envolve recursos públicos estaduais e as empresas suspeitas, entre elas, a SLP.
A SLP na apuração federal
Na investigação da Operação Camilo, a PF diz ter reunido indícios de que Antonio Claudino Santos da Silva seria mais um dos laranjas usados por Carlos Varreira e Renato Carlos Walter à frente de empresas que atuam junto ao poder público. Varreira e Walter foram presos à época da operação, foram indiciados pela PF e respondem a processo na Justiça Federal.
Claudino foi investigado na Camilo justamente por que a SLP prestou serviços, primeiro, para a prefeitura de Rio Pardo e, depois, para o Hospital Regional do Vale do Rio Pardo. Ele e outras dezenas de pessoas identificadas como laranjas no esquema não foram indiciados pela PF.
No inquérito, há a informação de que a movimentação em conta bancária de Claudino foi de R$ 400 num determinado período, enquanto a SLP recebeu, só em Rio Pardo, R$ 13 milhões em um ano. Outro dado que chamou a atenção dos federais foi que Claudino tinha histórico de empregado no setor privado recebendo salário mínimo até que, em 2017, surgiu como único sócio da SLP, integralizando, em tese, uma cota de R$ 2,8 milhões.
A investigação apontou ainda que o "dono" anterior da SLP seria um vizinho de Claudino. Em registro de análise policial, constou que os dois moravam em casas humildes, incompatíveis com os ganhos da empresa.
A PF fez buscas na residência de Claudino em maio de 2020. Ao prestar depoimento como investigado, Claudino disse: "o ora declarante trabalha como pedreiro autônomo reparando casas e prédios. Que já prestou serviços de pedreiro para Carlinhos (referência ao investigado Carlos Varreira) em duas ocasiões, reparando um apartamento do mesmo no bairro Bonfim, assim como uma casa no sítio dele na cidade de Gravataí, na ocasião em que assinou recibos de pagamentos. Que como pedreiro ganha aproximadamente R$ 3.000,00 (três mil) reais mensais. Que atualmente anda com pouco serviço. Que nada tem como patrimônio, pois o que ganha vai para seu sustento. (...) Que pelo que sabe, nunca foi responsável por qualquer empresa. Que nunca tinha escutado o nome da empresa SLP - SERVIÇOS DE LIMPEZA E PORTARIA EIRELI (...)".
Uma semana depois do depoimento, no entanto, se apresentando como responsável pela SLP, Claudino assinou procuração para que o advogado Rafael Lopes Ariza atuasse perante a Justiça Federal pelos interesses da empresa.
Ariza também é advogado de Carlos Varreira e de Renato Walter, que, segundo a PF, seriam os verdadeiros donos da SLP e de outras empresas investigadas na Operação Camilo. Os dois respondem a processo na Justiça Federal.
Contraponto
O que diz a Procuradoria-Geral do Município sobre a contratação da SLP Serviços de Limpeza e Portaria
"A PGM esclarece que o contrato 78076, firmado em 19/04/2022 pela Secretaria Municipal de Educação com a empresa SLP Serviços de Limpeza e Portaria EIRELI, é decorrente do Pregão Eletrônico 739/2021. O resultado foi homologado em 16/03/2022, antes de o Município ser intimado da decisão judicial que cassou liminar obtida anteriormente pela empresa e que garantia a possibilidade de contratar com o Município.
A administração reforça que foram adotadas todas as medidas de cautela com relação à empresa, inclusive com a expedição da decisão cautelar, em dezembro de 2020, que a impedia de contratar com o Município de Porto Alegre.
Manter uma medida cautelar indefinidamente é uma ilegalidade, de forma que, posteriormente, em julgamento administrativo sobre a aplicação da medida, decidiu-se pelo arquivamento da mesma no que se refere à empresa SLP, uma vez que as denúncias não foram comprovadas".
O que diz a Smed
A Smed teve um custo de R$ 2,9 milhões em serviços prestados pela empresa durante um ano de contrato. Houve insatisfação manifesta por diversas escolas, o que gerou quatro extensas notificações formais por parte da Smed. As contestações em relação à qualidade dos serviços geraram sanções administrativas, como descontos dos valores. Resta ainda o pagamento do último mês de contrato (abril), que está em processo de regularização.
O que diz a prefeitura
A análise deste contrato e das circunstâncias que levaram à contratação no momento em que a empresa estava impedida de atuar junto ao Poder Público será feita na auditoria especial na Smed determinada pelo prefeito Sebastião Melo.
O que diz Rafael Lopes Ariza, advogado de Antonio Claudino Santos da Silva, Carlos Varreira e Renato Walter
"O Sr Antônio Claudino não é réu em nenhum processo na Justiça Federal, e a SLP não é demandada em nenhum processo decorrente da operação Camilo. À época, só atuamos (junto à Justiça Federal) para liberar valores da empresa que haviam sido bloqueados."
Sobre o depoimento de Claudino à PF dizendo não conhecer a SLP, Ariza afirmou não saber por que ele fez essa declaração. Segundo o advogado, posteriormente, Claudino fez uma manifestação por escrito explicando ter ficado muito assustado no dia das buscas, que os policiais teriam ameaçado ele de prisão e mostrado armas. Nesta nova manifestação, teria dito ser o dono da SLP.
Sobre a suspeita de que Carlos Varreira e de Renato Walter usam laranjas para conduzir empresas de sua propriedade, o advogado disse que os "esclarecimentos necessários serão prestados no momento e local adequados.
Quanto ao contrato firmado com a Secretaria Municipal de Educação para a execução de serviços de manutenção preventiva e corretiva nas escolas, com materiais a serem fornecidos pela contratada e ressarcidos pela contratante, ele teve plena execução, com aquisição dos materiais necessários e execução regular dos serviços, tendo se encerrado em maio de 2023.
Não obstante, a contratante não realizou os pagamentos da forma pactuada. Em que pese a conformidade da execução do contrato pela SLP, a secretaria atrasou todos os pagamentos, não tendo pago, até o momento, os serviços prestados no mês de abril e maio de 2023, o que soma aproximadamente R$ 280 mil, além dos valores decorrentes dos materiais adquiridos pela empresa e empregados na execução do contrato, no valor de R$ 101,9 mil.
Ainda, é devido pela Smed aproximadamente R$ 340 mil de dissídio coletivo dos empregos sobre os serviços prestados. Assim, em que pese a devida e regular execução do contrato, encerrado em 03 de maio de 2023, a secretaria deve para a empresa aproximadamente R$ 720 mil.
Cumpre salientar que a SLP detém cinco outros contratos com a Secretaria de Educação, que envolvem a execução de serviços de auxiliar de cozinha e serviços de cozinha para as escolas, sendo que já se manifestou que não renovará nenhum dos cinco contratos, tendo em vista as dificuldades de recebimento pelos serviços prestados."
Entenda a cronologia do caso
- Em maio de 2020, uma força-tarefa que incluía Polícia Federal e Ministério Público Estadual, entre outros órgãos, deflagrou a Operação Camilo, que apurava crimes de fraude à licitação, peculato, corrupção passiva, organização criminosa, ocultação de bens, crime de responsabilidade e desobediência.
- O foco era a atuação de uma Organização Social que subcontratou empresas – entre elas, a SLP – para prestar serviços ao Hospital Regional do Vale do Rio Pardo. A investigação apontou que contratos seriam superfaturados para desviar valores.
- Em dezembro de 2020, a Procuradoria-Geral do Município emitiu medida cautelar proibindo a SLP e outras empresas investigados na operação de contratarem com a prefeitura de Porto Alegre.
- No mesmo mês, a empresa obteve decisão liminar na Justiça permitindo que ela atuasse junto ao poder público.
- Em 9 de março de 2022, a Justiça julgou o mérito da ação de autoria da empresa e considerou haver elementos para a proibição ser mantida. Também foi cassada a liminar que permitia que a SLP contratasse com a prefeitura.
- A PGM informou que só foi notificada desta nova decisão judicial em 19 de março, depois de já ter homologado o pregão eletrônico vencido pela SLP. A homologação ocorreu em 16 de março de 2022.
- Mas quando o contrato foi assinado, em 19 de abril de 2022, a PGM já tinha conhecimento da proibição e, ainda assim, a Smed fez a contratação.
- Em junho de 2022, ao apelar da decisão da Justiça, a empresa obteve efeito suspensivo da decisão, recuperando o direito de contratar.