A plataforma MUBI adiciona a seu menu nesta sexta-feira (4) um dos meus filmes preferidos dos últimos tempos: Midsommar (2019), que no Brasil ganhou um subtítulo surpreendentemente adequado e atrativo, O Mal Não Espera a Noite. São quase duas horas e meia de perturbação. Não à toa, a classificação indicativa é 18 anos (contém conteúdo sexual, violência extrema e drogas ilícitas, informa o Ministério da Justiça).
A exemplo do que fez a cineasta Coralie Fargeat em A Substância (2024), o diretor e roteirista estadunidense Ari Aster lança mão de todos os recursos cinematográficos — desde o roteiro que deliberadamente espalha pistas sobre o que vai acontecer com os personagens durante uma celebração pagã na Suécia à direção de fotografia que nos faz temer o próprio sol, o inclemente sol, passando pela trilha sonora com cordas dissonantes e percussão que nos envolve em um transe e pela montagem que dilata, distorce e desorienta. Pelo menos no cinema, foi uma rara experiência sensorial: dava para se sentir como um dos participantes do bizarro culto transcorrido durante o solstício de verão, todos siderados pela mistura de som e fúria, de roupas brancas e trevas interiores, de natureza bucólica e ritos mórbidos, de choque e catarse.
Midsommar é um belo exemplo de como os filmes de terror podem ser simbólicos e alegóricos. Oferecem camadas de leitura mesmo quando parecem ser apenas epidérmicos. Em entrevista à revista Variety, Aster contou que a história nasceu do fim de um relacionamento amoroso que não foi dos melhores. Escreveu o roteiro enquanto estava juntando os pedaços após a separação.
Este foi o seu segundo longa-metragem, sucedendo Hereditário (2018), em que Toni Collette encarna a protagonista, o eixo de uma família assombrada pela morte: o pai dela se matou, a mãe acaba de morrer, e a filha adolescente perde a vida em um grotesco acidente com o carro pilotado pelo seu irmão mais velho. É uma outra tragédia familiar que abre Midsommar. Depois de uma sequência que mostra paisagens nevadas — um contraste climático com o que está por vir, mas também um prenúncio do inverno das almas —, somos apresentados a Dani, brilhantemente interpretada pela atriz inglesa Florence Pugh, indicada ao Oscar de coadjuvante por Adoráveis Mulheres (2019). A jovem está preocupada com o recente e-mail que recebeu da irmã bipolar: "Está tudo dando errado. Nossos pais vêm comigo. Adeus". Ela também se preocupa em como dividir sua angústia com o namorado, Christian (Jack Reynor), pois acredita que abusa emocionalmente dele.
Do outro lado do telefone, Christian e seus amigos — o CDF Josh (William Jackson Harper), o tarado maconheiro Mark (Will Poulter) e o gentil sueco Pelle (Wilhelm Blomgren) — só estão preocupados com a viagem que farão para Hårga, um vilarejo na província de Hälsingland, na região central do país escandinavo, onde acompanharão durante nove dias uma cerimônia coletiva conduzida pela família de Pelle. Com habilidade para equilibrar tensão e senso de humor, Aster, em poucos minutos, estabelece os termos da relação entre Dani e Christian — estão em vias de se separar, dada a combinação explosiva entre a ansiedade dela e o egoísmo dele —, a personalidade de seus amigos e os fantasmas que a protagonista vai carregar na mala ao se juntar aos quatro na jornada rumo à Europa.
Um desavisado pode achar que os cinco amigos e os espectadores acabaram de embarcar para uma roubada como O Albergue (2005), de Eli Roth, em que dois estadunidenses e um islandês resolvem tirar a limpo um boato sobre uma hospedagem na Eslováquia repleta de mulheres lindas e sedentas por sexo. Mas, ainda que os personagens de Midsommar sejam movidos por uma curiosidade juvenil que pode se revelar traiçoeira, Ari Aster tem muito mais requinte visual e ressonâncias psicológicas a ofertar. Na Suécia, enquanto os amigos dirigem de Estocolmo a Hårga, a câmera vira lentamente de ponta-cabeça, prenunciando que seus mundos também serão virados, antecipando o inferno sobre a Terra. Os rituais aos quais assistem ou dos quais participam evocam mitos perenes e temas contemporâneos (evidentemente, Aster aproveita o cenário para acenos ao clássico O Homem de Palha, lançado em 1973 por Robin Hardy, e ao cineasta sueco Ingmar Bergman, a quem ele já definiu como seu herói) e alinham o filme a uma vertente, a do chamado horror folclórico, de títulos como A Bruxa (2015), A Lenda de Golem (2018) e Lamb (2021). Diferentemente de O Albergue, também, Midsommar subverte algumas características dos filmes de terror — praticamente não há sustos, inexiste o sobrenatural — e pouco se interessa em como os personagens vão sofrer, mas sim em por que eles sofrerão. Há algumas lições, digamos assim.
O próprio Aster é um professor do melhor tipo: generoso, ao nos fornecer uma série de elementos (como o urso na jaula) com os quais trabalharemos mais tarde, e exigente — não nos dá o resultado da conta, mas nos ensina a chegar a ele. Sua arquitetura de cena é impressionante, sobretudo nos planos abertos, em que vale a pena perscrutar tudo, à procura de uma movimentação suspeita, um olhar esquisito, uma esclarecedora pintura na parede. O cineasta confia tanto no seu talento para construir o horror e na capacidade do aluno para absorvê-lo que, em várias e longas passagens, prescinde dos diálogos. Estes, quando necessários, se curvam a essa matemática singular, em que uma frase dita aqui ecoará logo ali, dando sentido ou ressignificando o que vimos antes.
Ver: em seu sentido mais amplo, é nisso que Midsommar investe bastante. Ari Aster parece nos dizer que, não raro, devemos olhar com os olhos dos outros para enxergar o que está a um palmo de distância. Os sinais estavam todos aí, nós é que somos autocentrados demais para prestar atenção. A empatia há de ser a chave para nossa sobrevivência, temos de escutar e abraçar o outro a ponto de nos perceber falando a mesma língua em uma terra estranha. Mas não podemos deixar de olhar para dentro também e entender que, às vezes, precisamos cauterizar nossas feridas emocionais, tacar fogo no passado para clarear o futuro.
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