Istambul, na Turquia, é cenário por excelência para uma história de conflito e confluência: lá, se encontram a Ásia e a Europa, o Oriente e o Ocidente, o antigo e o moderno. Com 15 milhões de habitantes, é a 15ª cidade mais populosa do mundo, o que a torna muito convidativa para quem quer desaparecer, como diz um personagem de Caminhos Cruzados (Crossing, 2024), belíssimo filme do diretor sueco Levan Akin disponível na plataforma MUBI.
Este é o quarto longa-metragem de Akin, 44 anos, um descendente de georgianos. No seu trabalho anterior, E Então Nós Dançamos (2019), ele retratou o cotidiano oprimido de um bailarino gay na Geórgia — o filme provocou protestos de grupos ultraconservadores em Tiblíssi, a capital do país cristão ortodoxo banhado pelo Mar Negro, e em Batumi, a cidade natal dos pais do diretor.
A trama de Caminhos Cruzados começa em Batumi e logo atravessa a fronteira com a Turquia, em direção a Istambul, 1,2 mil quilômetros distante. Outra vez, o cineasta aborda a marginalização da comunidade LGBTQIA+.
Um letreiro na abertura do filme informa que os idiomas georgiano e turco são neutros em termos de gênero, ou seja, não fazem distinções gramaticais. Mas os preconceitos de gênero estão profundamente enraizados em ambas as culturas.
Em Batumi, uma professora de História aposentada, Lia (Mzia Arabuli, que domina a tela com seu rosto), está em busca de sua sobrinha perdida, Tekla, rejeitada pela família após fazer a transição de gênero e despejada da casa onde estava morando. Quer encontrá-la para realizar o último desejo de sua irmã. O jovem Achi (Lucas Kankava, cativante) se oferece para ajudá-la, menos por empatia e mais para fugir do jugo do irmão rude e beberrão. Diz conhecer o novo endereço de Tekla, em Istambul — onde também pode estar a sua mãe.
Partem os dois para o território turco, Lia mais entregue ao silêncio, como se ruminasse uma culpa, obstinada em cumprir sua promessa, Achi sempre faminto — um símbolo de sua voracidade por mudança, por novas perspectivas. Não à toa, cenas importantes se passam em um local de travessia: a balsa no Estreito de Bósforo, que marca o limite entre a Ásia e a Europa, tendo ao fundo as silhuetas de cartões-postais como o Palácio de Topkapi e a Santa Sofia.
Em Istambul, Levan Akin acrescenta um terceiro personagem, mas sem forçar uma aproximação com a dupla georgiana: tem uma vida própria, com suas delícias e seus desafios, a advogada e ativista transexual Evrim (Deniz Dumanli), que luta para conseguir seu documento de identidade feminina. Evrim atua em uma organização solidária real, a Pembe Hayat (Vida Rosa), criada em 2006 para defender pessoas transgênero da Turquia, onde, conforme um artigo do jornalista e escritor Kaya Genç publicado no site do MUBI, o presidente Recep Tayyip Erdogan considera a não conformidade de gênero uma "perversão". Desde 2015, um ano após Erdogan assumir o cargo para o qual foi reeleito em 2018 e em 2023, estão proibidos eventos que promovem o orgulho LGBTQIA+. Consta que em 2016 o país teve a maior taxa na Europa de assassinatos de trans.
O enredo e o contexto podem sugerir um filme entristecido, depressivo, mas o diretor sueco ilumina o espectador com momentos de ternura, de amor, de alegria, de otimismo — até de dança. Há uma aposta no afeto, no coletivo e na solidariedade. Gatos — onipresentes em Istambul — pedem colo, e personagens coadjuvantes estendem a mão, pagam o jantar, convidam para uma festa, declaram seu tesão. Abrindo frestas na melancolia, Levan Yakin conduz Caminhos Cruzados a um final simultaneamente ensolarado e cortante, daqueles que reafirmam o poder da ilusão cinematográfica, em um casamento lindo de imagem, atuação, palavra, montagem e música, e se incrustam na nossa memória.
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