Houve um tempo em que os super-heróis eram hegemônicos nas bilheterias. Sem muito esforço, arrecadavam US$ 1 bilhão. Não mais. Depois de 2019, só um filme do subgênero ultrapassou essa marca: Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (Spider-Man: No Way Home, 2021), que a RBS TV exibe da Tela Quente desta segunda-feira (22), às 22h25min.
Há que se levar em consideração a pandemia de coronavírus estourada no início de 2020, que prejudicou comercialmente os cinemas e forçou uma mudança de hábito no público (muitos espectadores migraram de vez para o streaming). Mas, no mesmo período, também tiveram faturamento bilionário Avatar: O Caminho da Água (2022), Jurassic World: Domínio (2022), Top Gun: Maverick (2022), Barbie (2023) e Super Mario Bros. (2023).
Sétima maior bilheteria de todos os tempos, com US$ 1,92 bilhão, Sem Volta para Casa foi o último grande sucesso do Universo Cinematográfico Marvel. Fez por merecer.
Quando vi no cinema, o filme conseguiu me tocar a ponto de eu chorar duas vezes, apesar de muitos obstáculos. O primeiro era de ordem subjetiva — não se trata do meu super-herói favorito. O segundo é bem objetivo: o longa-metragem do diretor Jon Watts foi todo constituído para surpreender o público, mas a expectativa gerada pela terceira aventura solo do personagem interpretado por Tom Holland teve como efeito cascata um mar de especulações e de revelações. Mesmo fugindo de trailers e evitando clicar em links, acabei bastante molhado. Agora, imagino que as violentas ondas trazidas por sites e redes sociais já tenham atingido todos os interessados, então, aviso que haverá spoilers no texto.
Os próximos obstáculos foram decorrentes dessa expectativa monstra. As salas de cinema estavam lotadas no dia da estreia, até nas sessões das 14h, afinal, uma multidão que se identifica com o protagonista adolescente já curtia férias escolares. Por mais que houvesse protocolos de segurança sanitária, uma aglomeração em tempos de pandemia fazia despertar um sentido de alerta. E potencializava outros incômodos: mais gente podia chegar atrasada, atrapalhando a concentração (aconteceu na minha sessão), mais gente podia estar odorizando o ambiente com o cheiro de hambúrguer e batata frita (aconteceu nas poltronas atrás de mim), mais gente podia passar o filme inteiro conversando (aconteceu do meu lado), mais gente podia gritar diante de aparições, diálogos ou cenas marcantes (aconteceu o tempo todo, mas devo admitir que me divirto e me comovo com esse engajamento da plateia).
A ironia é que Sem Volta para Casa começa justamente mostrando o lado negativo da popularidade. O roteiro de Chris McKenna e Erik Sommers retoma os instantes finais de Longe de Casa (2019), igualmente escrito pela dupla e realizado por Watts, quando o vilão Mysterio (Jake Gyllenhaal) não apenas revelou a identidade secreta do Homem-Aranha — também fez a caveira de Peter Parker. Evidentemente, a visão do Amigão da Vizinhança como um terrorista é comprada pelo editor do Clarim Diário, J. Jonah Jameson, um notório espalhador de notícias falsas deliciosamente interpretado por J.K. Simmons. O sensacionalismo transforma a vida de Peter em um caos, surpreendentemente embalado por I Zimbra, uma canção de 1979 da banda Talking Heads, e visualmente bem traduzido por uma sequência sem cortes e com movimentos rápidos de câmera no apartamento da Tia May (Marisa Tomei), onde nosso herói tenta se refugiar e proteger a amada MJ (Zendaya).
Parece que só um passe de mágica seria capaz de resolver o quiproquó, portanto, Peter procura o Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch). Mas isso acaba abrindo as portas do chamado Multiverso.
Eis a senha para um recado importante: você corre o risco de ficar boiando em Sem Volta para Casa se não tiver assistido às franquias anteriores do Homem-Aranha: a trilogia dirigida por Sam Raimi e estrelada por Tobey Maguire entre 2002 e 2007 e os dois filmes assinados por Marc Webb e protagonizados por Andrew Garfield em 2012 e 2014.
Ao lançar mão do Multiverso, o diretor Jon Watts fez um filme extremamente fiel a características dos quadrinhos da Marvel e ao espírito do Homem-Aranha. O resgate de personagens e de tramas do passado é uma marca da editora, que no cinema vem espelhando o conceito de cronologia norteador dos gibis: uma aventura puxa a outra, o que aconteceu lá atrás tem consequências lá na frente, tudo está interligado. Mas Sem Volta para Casa vai além. Expande para o cinema a ideia de que existem dimensões paralelas, outras linhas temporais, versões alternativas da História e do mundo — algo que, vale frisar, a série Loki, no Disney+, já havia revelado, preparando o terreno para os passos futuros do MCU.
Sem Volta para Casa promove o retorno de vilões como Duende Verde (Willem Dafoe, aproveitando cada momento com seu sorriso insano e sua dicção peculiar), Doutor Octopus (Alfred Molina) e Electro (Jamie Foxx). Como era especulado, o ator Charlie Cox, que interpretou o Demolidor nos seriados da Netflix, está oficialmente inserido no Universo Cinematográfico Marvel. E como era aguardado, Tobey Maguire e Andrew Garfield juntam-se a Tom Holland.
A escalação desses personagens e desses atores é uma demonstração simultânea de carinho e de força da Marvel. Por um lado, a empresa afaga o público que acompanhou as encarnações prévias do Aranha. Por outro, atesta sua segurança no próprio taco ao não se furtar de jogar holofotes para obras de outras produtoras.
O elenco vitaminado de mocinhos e bandidos pressupõe cenas de ação inesquecíveis, certo? Aí está mais um obstáculo de Sem Volta para Casa. Faço minhas as palavras do colega Carlos Redel em GZH: as sequências ora são escuras demais, ora têm enquadramentos pouco criativos. Nada empolga.
Mas Jon Watts compensa a falta de tato para a ação com um ouvido aguçado para as angústias e os anseios de um adolescente como Peter Parker, virtude que ele já vinha exibindo desde o início da trilogia, De Volta para Casa (2017). Se em Longe de Casa vimos Peter Parker lidando com o desejo de aprovação junto a seus pares e o sentimento de inadequação no mundo dos adultos, em Sem Volta para Casa ele será obrigado a amadurecer. A entender o princípio clássico do super-herói criado em 1962 pelo roteirista Stan Lee e o desenhista Steve Ditko: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.
Finalmente, o Peter interpretado por Tom Holland ficará em pé de igualdade com o Peter de Tobey Maguire e o de Andrew Garfield. Talvez nem tanta igualdade: o filme é muito engraçado ao brincar com as diferenças entre as três versões cinematográficas do personagem. A propósito, as comparações evidenciam acertos e erros dessas concepções, emocionam e fazem sobressair o talento — tanto dramático quanto cômico — de Garfield (não à toa, é o único que já disputou o Oscar, por Até o Último Homem, de 2016, e em 2022 pelo musical Tick, Tick... Boom!).
As interações também permitem a Sem Volta para Casa discutir a essência do Homem-Aranha e retratar, talvez como nenhum outro filme de super-herói tenha feito, a noção de legado, tão cara à Marvel. Ao mesmo tempo, este terceiro segmento transcende o gênero ao trabalhar o mítico tema da segunda chance. Faz isso com todas as letras — o Peter de Holland diz que escolheu um símbolo dela, a Estátua da Liberdade, como cenário do embate final — e com imagens poderosas e evocativas: desabei no choro, pela segunda vez, quando um dos Aranhas se viu diante da sua segunda chance.