Gilberto Gil não para. Em setembro e outubro passados, fez 18 shows em oito países europeus. Em novembro, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, onde tomará posse em março. Em junho e julho próximos, vai retornar à Europa, desta vez para uma turnê diferente: ao seu lado estará toda a família, musical ou não, pois em 26 de junho o mestre baiano comemorará 80 anos. Também estará lá uma equipe de TV liderada pelo cineasta Andrucha Waddington para produzir um reality show a ser apresentado pela Amazon. A primeira parte de Família Gil foi filmada em meados de 2021 na casa de campo construída por iniciativa de sua companheira Flora em Araras, região serrana do Rio de Janeiro. Para este ano não há previsão de disco novo, Gil ainda não tem nem ideia de como seria ele – o último, OK OK OK, de 2018, tem um certo caráter até profético. Trecho da letra da música-título: “Enquanto os ratos roem o poder/ Os corações da multidão aos prantos/ Alguns sugerem que eu saia no grito/ Outros, que eu me quede quieto e mudo/ E eis que alguém me pede: ‘Encarne o mito/ Seja nosso herói, resolva tudo’.” Mais do que propriamente uma entrevista, o que temos a seguir é uma conversa.
Em 2022 se completam 50 anos de nossa primeira grande entrevista. Foi quando você esteve em Porto Alegre para lançar o disco Expresso 2222 – o que também não deixa de ser uma meia coincidência com 2022. E depois fizemos muitas outras, esta deve ser a oitava ou nona.
No caso de 2222, são 200 anos menos... Mas o que se passou entre nós foi uma coisa de encontro mesmo, no nível humano profundo, nos tornamos pessoas amigas.
Me orgulho disso. Mas vamos lá. Para começar, você poderia falar da recente turnê pela Europa, em setembro e outubro. Deu sorte, pois a onda Ômicron viria um pouco depois. Como foi a receptividade?
A receptividade foi boa. Havia uma expectativa natural, as pessoas todas muito ávidas por encontros, a possibilidade de saírem, verem um artista. Havia, portanto, essa coisa precipitada pela pandemia, as pessoas se reencontrando, e isso criava uma excitação, um frisson.
Que repertório você escolheu? Fez uma retrospectiva?
Bom, antes de mim o show começava com Adriana Calcanhotto de voz e violão, ela foi minha parceira em toda a temporada. Mas sim, mesclei épocas. Começava com o Expresso 2222, cantava o Viramundo, de meu primeiro disco, 1967, depois Panis et Circencis, que é uma música minha e de Caetano da época da Tropicália... de outros compositores cantava É Luxo Só, do Ary Barroso, Upa Neguinho, de Edu Lobo, tudo com arranjos novos, arranjos de agora. Na segunda parte eu cantava Palco, Back in Bahia, Andar com Fé, Toda Menina Baiana no final...
Você estava com dois filhos e um neto no palco...
Dois filhos e dois netos, porque tínhamos o Bem e o José, meus filhos, mais o João, meu neto, e a Flor, minha neta.
Poderia falar dessa questão da família? Sua família sempre foi muito agregada, muito unida...
Foi ficando, na medida em que se estendia, se expandia, ia se tornando mais numerosa. São oito filhos, né? Agora já 12 netos e uma bisneta de cinco anos. Nesses últimos tempos, com o crescimento do número deles, e o imperativo do convívio, eles foram, enfim, tendo que escolher entre serem mais agregados ou menos agregados. Tudo isso por influência de minha própria presença, meu próprio gosto em tê-los ao redor, mas muito também pelo empenho, o cuidado e o interessa da Flora, como minha mulher, como a última ponta da procriação, quer dizer, como a última mãe de todos eles. Flora se encarregou desses cuidados de juntar todos, de insistir na agregação, se tornou a mãe representando todas as outras mães. Esse fator foi fundamental para que todos estivessem juntos. Eles desenvolveram um afeto muito grande por ela, todos eles, inclusive os provenientes de outras mães, desde o início com a Narinha, Marília, que foram minhas primeiras filhas, depois já Preta, Maria, o Bem, a Bela, o José, e aí todos os netos que foram chegando.
Aproveitando a citação de Bela Gil, já famosa cozinheira da TV, quero lembrar que a última pergunta da nossa entrevista de 1972 foi a seguinte: "Além de música, o que você gosta de fazer?". Sua resposta: "Eu adoro cozinhar, viu? Tô muito ligado nessa coisa de alimentaçãoe talvez isso me influencie um pouco. A coznha tem um lance alquímico". Antes, lembro que a entrevista foi feita em meu apartamento no centro de Porto Alegre, e isso eu sempre cito como coisa absolutamente rara, pois te encontrei no camarim do teatro e te levei ao fusquinha dirigido por minha mulher. Você e mais ninguém, além de sua bolsa, onde estavam uma garrafa térmica com banchá e uns biscoitos macrobióticos.
(Risos.) Tempos de rigidez alimentar...
Você ainda gosta de cozinhar ou isso ficou pelo meio do caminho?
Fiquei no meio do caminho, um pouco, pois esse gosto foi sendo esparramado pela família. Por várias razões fui deixando o regime especial que tinha naquela época, que requeria cuidados mais específicos. Eu me dedicava a isso, como você falou viajava com minha sacola cheia de ingredientes da macrobiótica, nos hotéis em que me hospedava procurava logo a cozinha, buscava uma atmosfera de mais intimidade com o pessoal que cuidava da alimentação e tudo mais. Então, era uma época em que eu cozinhava. Isso tudo foi um pouco se diluindo. Primeiro, pelo próprio relaxamento do regime macrobiótico que foi se dando ao longo dos anos, fui adotando outras formas alimentares. E também porque Flora foi incorporando outros elementos, passou a ter uma relação mais íntima com as ideias do Tomio Kikuchi, mestre principal da macrobiótica no Brasil com suas unidades em São Paulo, enfim. E como eu disse, outros sistemas alimentares foram sendo introduzidos. E então eu praticamente deixei de cozinhar, passei a ser um supervisor geral dos hábitos alimentares da casa... Um curador, digamos assim. Muito ajudado por Flora, e mais recentemente veio a Bela...
Hoje não existe uma mobilização como a passeata dos 100 mil, pois isso migrou para as redes sociais, onde automaticamente há dispersão. O que resta são micro-agregações, e a pandemia sem dúvida intensificou isso.
De certa forma, a macrobiótica exige uma postura meio religiosa das pessoas, com suas regras rígidas. E a alimentação cuidada foi ganhando corpo por outro lado, com produtos orgânicos e tal...
Na medida em que foi crescendo essa onda pelo alimento mais qualificado, natural, sem química etc., no mundo todo. Aqui também, passamos a ter alternativas de alimentos orgânicos nas grandes cidades. Essa cultura da boa alimentação foi se espalhando, não só no sentido dos vários modelos que foram sendo adotados – e a macrobiótica era um deles – como na expansão dos consumidores e dos produtores.
Quero ouvi-lo um pouco sobre duas questões, que em muitos casos se ligam: a pandemia, um fenômeno muito marcante para a humanidade...
Que estabeleceu uma espécie de regência nas vidas de todos, a pandemia rege o comportamento mundial hoje em dia.
...E a questão da desigualdade social, do fosso profundo entre pobres e ricos, bem mais invencível do que a pandemia, pois não tem vacina que resolva. E que foi aprofundada na crise sanitária, quando os 10 bilionários mais ricos do mundo ficaram 10 vezes mais ricos, enquanto 90% da população do planeta perdeu renda. Você tem esperança na raça humana.
Os detentores do poder econômico detêm majoritariamente os meios de produção de tudo o que se consome, desde o alimento até a roupa, o transporte, a moradia etc., e isso não tem mudado ao longo do tempo. Como fazer? Fica a pergunta. Quanto à esperança é a mesma que sempre tive, que sempre me acompanhou, no sentido de que é possível, através de estudo, do maior conhecimento, da dedicação às formas de saber, é possível aumentar o grau de sabedoria humana, digamos assim... O exercício interativo do convívio social e etc. vão também levando os homens a se conhecerem melhor não apenas nesse sentido do saber individual mas também no saber social, saberem ser coletivos e trabalharem mais acuradamente essa questão da coletividade. Esses foram pressupostos que sempre me acompanharam na avaliação da condição humana.
Por outro lado, temos visto um negacionismo cada vez maior. Políticos que desprezam a mudança climática, sem falar que até um "debate" sobre a Terra plana veio à tona. Isso com apoio de dirigentes com poder de fogo, como Trump e Bolsonaro.
As direitas têm emergido em muitos lugares, na França, na Holanda, na Inglaterra, na Polônia, na Hungria, na Espanha... Mas sempre fui um otimista, sempre acreditei nos pressupostos de esperança na sociedade humana.
Mas esse otimismo não impede que você seja crítico. Desde Louvação, o primeiro disco, lá nos anos 1960, você tem sido um observador crítico da realidade.
Isso continua da mesma maneira, na medida de minha capacidade de compreensão dos fenômenos humanos e minha capacidade de criticá-los.
Você foi ministro da Cultura nos governos Lula de 2002 a 2008. Foram seis anos de aprendizado dentro da máqquina governamental e junto aos fazedores de cultura de maneira geral. Pode falar sobre essa experiência? E como você oberva a situação da cultura no âmbito oficial hoje?
Naquela época havia, por parte da direção geral do próprio governo central brasileiro, a presidência, o mundo ministerial e as relações com os governos regionais, com as municipalidades, havia toda uma compreensão desse campo da vida política com relação à importância da vida cultural, da inserção da vida cultural no mundo das políticas públicas. Havia interesse pela questão cultural nas várias instâncias de poder, no sentido de criar, desenvolver, produzir e implementar políticas públicas de cultura. O que efetivamente acabava resultando em maior envolvimento das comunidades, das populações, dos agentes culturais etc. nesse fazer cultural, nessa compreensão da atividade. Isso permaneceu basicamente desse modo até cerca de seis anos atrás, até a chegada desse último grupo governamental...
Que...
Que arregimentou comunidades adversas a esse modo que tínhamos. Estabeleceu um descuido quase que absoluto em relação às questões culturais, mudou o eixo da compreensão sobre a cultura, a diversidade cultural, a ampliação dos espaços culturais... Para exemplificar, acabou com o ministério, criou uma secretaria totalmente despreparada, desaparelhada – no melhor sentido da palavra aparelhamento. Descuidou-se completamente da questão cultural e deu espaço exatamente a todos esses negacionismos variados em relação a tudo. “Não interessa isso, não interessa aquilo, não temos nem precisamos de políticas públicas de cultura”, tudo o que está vigente agora. Uma diferença bastante acentuada em relação ao que era no meu tempo.
Na época da ditadura militar a classe artística se manifestava bastante, lembro daquela foto emblemática dos artistas de braços dados na passeata dos 100 mil. Também muitos participaram da campanha "Diretas Já", enfim. Os artistas, hoje, não estariam um pouco atônitos com essa avalanche de ignorância instalada no país e quase não se mexem como antes?
Você usou a expressão "se mexer". O que significa se mexer hoje em dia? Hoje essa palavra está ligada à proliferação, variedade e sofisticação tecnológica dos meios de comunicação. As formas de agregação migraram. Você citou a Passeata dos 100 mil dando o exemplo de um tipo de mobilização. Um tipo que praticamente não existe hoje em dia, pois isso migrou pras redes sociais, os modos eletrônicos de comunicação, os modos cibernéticos, as formas de convocar e etc. e etc. migraram pros algoritmos e todo esse novo mundo. Isso dispersa automaticamente, os indivíduos são pulverizados. O que resta são as micro-agregações, e a pandemia sem dúvida alguma intensificou isso, introduziu o dado em que as pessoas não podendo se encontrar pessoalmente tendem a substituir tudo pelas formas eletrônicas. É o fenômeno do tempo de hoje. Mas entendo, você pergunta se não há déficit de mobilização, déficit de interesse social e coletivo, em relação a atuar politicamente etc. Sem dúvida alguma esse déficit existe, mas ele é um pouco explicável por essa migração dos modos de associativismo clássico, para esses lugares onde os indivíduos se escondem, as redes sociais entre eles, podendo esbravejar cada vez mais a partir de suas próprias casas, seus telefones celulares, seus computadores.
Você foi um dos primeiros artistas brasileiros a se ligar na tecnologia do futuro, digamos . A primeira homepage na área da música foi a sua, em 1992. Em alguns discos também se refere a isso. Qual sua ideia sobre os avanços tecnológicos? Não andarão rápido demais? Na música, expande-se o consumo dos arquivos digitais, é raro hoje um artista lançar um disco físico, um CD. As pessoas, e aí me refiro mais aos jovens, passaram a ouvir e a "comprar" uma música; não um álbum, um conjunto de músicas...
Toda essa tendência à individualização, à pulverização individualizante, passou pra todos os produtos culturais. Eles também passaram a ter esse mesmo aspecto fracionário, individualista. Você traz o exemplo aí, ninguém consome mais os álbuns que formavam conjuntos de composições que tinham algo a dizer no sentido do conjunto da obra, da ideia conceitual. Isso já está desaparecendo mesmo, hoje você tem os meninos lançando singles o tempo todo, avaliando até onde isso pode andar, as respostas do público, os resultados dos números da internet. E é isso, migramos para particularismos cada vez mais intensificados.
Você considera que isso é definitivo, que não tem mais volta? A música ficou atomizada mesmo e continuará sendo assim?
Não sei, é difícil...
Porque você convive com seus netos, eles devem dizer algo sobre isso.
Vivem já inseridos nesse modelo. Você tem aí os meninos do Gilsons. Meu filho José e meus netos João e Francisco fizeram esse grupo e estão aí desenvolvendo uma carreira, um trabalho todo em função desse atomismo...
(A música sertaneja hegemônica) é egressa dos lugares que eram mais remotos. Antes, a grande força de produção musical vinha dos centros urbanos. O grande negócio brasileiro migrou para o Oeste. Ao mesmo tempo, o discurso musical foi migrando também.
Tempos atrás, em 2019, fiz uma entrevista com Charles Gavin. E falamos sobre o fenômeno da música sertaneja. O título da entrevista foi: “A música sertaneja é a trilha-sonora do agronegócio”. Como você vê a hegemonia desse gênero, ou estilo, na mídia brasileira? Porque é uma hegemonia que, de certa forma, escanteia outras manifestações no espaço público. É raro ouvirmos em rádio a MPB tradicional, por exemplo, nem a de sua geração, nem a mais recente.
Acho que é um fenômeno real. Quando se associa essa hegemonia da música sertaneja a aspectos mais amplos da vida, como é o caso da menção do Gavin ao agronegócio, temos uma questão em que pensar. É uma música egressa dos lugares anteriormente mais remotos do Brasil. Antes, a grande força de produção e difusão musical vinha de centros como São Paulo e Rio de Janeiro, eventualmente Salvador, Recife, Porto Alegre. Da mesma forma que o grande negócio brasileiro migrou pro oeste, as grandes produções de soja e de milho, de grãos etc.
E de carne...
Exato, de carne. Ao mesmo tempo, a produção musical, o dizer, o discurso musical foi migrando também, essas áreas se tornaram economicamente fortes, com capacidade de imposição, de disputa vantajosa em relação àqueles setores que você mencionou e que foram sendo escanteados, da MPB geral, das outras variedades regionais e etc. A regionalidade brasileira, tanto no Nordeste quando no Sul, no Norte, foi ficando regida cada vez mais por essa força do Oeste.
Se os discos de artistas de sua geração, e da posterior, forem ouvidos daqui a 50 anos, lá saberão o que estava acontecendo no Brasil dessa época. Mas, se daqui a 50 anos você ouvir esse pop sertanejo, saberá muito pouco, quase nada, sobre as questões políticas e sociais do Brasil atual.
Vai saber que a força narrativa associada ao nível musical, aos cancioneiros etc., estava submetida a esse reducionismo de enquadramento da realidade. Isso também é o resultado daquilo que já falamos a respeito da atomização, da individualização, dessa transformação dos coletivos reais, mobilizáveis, para esse mundo fantasmagórico das redes sociais. A música acompanhou isso. Então, daqui há 50 anos, como você fala, esse tipo de música vai contar esse tipo de história, esse reducionismo a que fomos sujeitos e tal, enquanto que os momentos anteriores vão contar um Brasil com suas variedades, suas problematizações, das variedades de seus processos de busca de soluções, os confrontos políticos, as ideologias etc. Essa produção atual é afastada desse compromisso, desse interesse. Não tem interesse nenhum. Com as exceções, evidentemente, que você tem aqui e ali.
Por outro lado, em relação à nossa entrevista de 50 anos atrás, há questões que passaram a ser emergentes, muito enfatizadas. Nos anos 1970, discutir racismo era meio tabu, mesmo considerando os movimentos "black power" nos Estados Unidos, por exemplo. Falava-se em "amor livre", mas em homossexualidade, quase nada, menos ainda na questão LGBT+.
Pluralidade, diversidade...
E hoje há uma grande pressão dessas "minorias". Como você vê tal questão? O racismo é cada vez mais combatido, para começar...
São minorias políticas que em muitos casos são maiorias sociais. É a outra face da moeda desse concentracionismo reducionista, na medida em que tecnologicamente as pessoas foram levadas a estarem menos corporalmente juntas e mais mentalmente esparramadas por aí, houve também isso, muita divulgação dos modos variados de encarar e expressar a existência. Isso tem trazido benefícios nesse sentido, desesconder, trazer à luz coisas que estavam à sombra. Criar amplitude de vozes a setores que estavam mais silenciados, mais calados anteriormente. Mas você também tem que associar toda essa fenomelogia nova ao extraordinário crescimento populacional do mundo, à grande explosão demográfica que temos. Enchemos o planeta de gente, numa proporção inusitada, nova. Estamos na faixa entre sete e oito bilhões de pessoas, que têm que cada vez mais buscar o alimento físico, o alimento espiritual, buscar a compreensão política, buscar isso e aquilo, tudo isso com cada mais gente. Apesar das dificuldades de novos associativismos etc., o elemento humano criou essa amplitude de presença mundial. Os pequenos grupos, os pequenos modos de ser, as pequenas formas de comportamento, tudo isso se ampliou para escalas de grandes proporções. É a outra face da moeda.
Acompanho sua carreira desde antes do primeiro LP, de 1967. Seus 60 discos têm uma coerência absurda, sempre refletindo o que ia acontecendo no Brasil e no mundo. A exposição de seu pensamento sobre os cotidianos, sua visão de mundo sempre foi muito clara no conjunto da obra.
Sim, sei que você me acompanha desde sempre. E é certo o que diz, os diferentes momentos estão sempre explicitados nos discos conceituais, nos títulos das canções, nos títulos dos álbuns, na tentativa de explicação do significado de cada discurso sobre a vida, sobre a sociedade. Os 60 discos são 60 tomos, digamos assim, de uma narrativa. Como já comentamos aqui, tudo isso hoje em dia é mais difícil de obter, pois praticamente já não se gravam álbuns. Mas ao mesmo tempo, dentro dessa fragmentação, estamos obtendo novas vantagens, outras vantagens. Temos que nos adaptar aos tempos e ver como levá-los...
Você completa 80 anos em 26 de junho. Como também completam Caetano, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Jorge Benjor, Paul McCartney... Como você se sente fazendo parte dessa geração revolucionária da música?
Ah, é um condicionamento histórico... Uma... Um imperativo geracional, temporal, de termos nascido e vivido nessa metade de século onde pudemos nos reunir, estarmos juntos, pudemos ter nossos microscópios e nossos telescópios ajustados para os corpos que quisemos, que pretendemos, que pudemos fazer, examinar a vida e o mundo a partir das nossas óticas, enfim. E aí pronto, foi uma reunião de talentos, de jovens meninos e meninas. A Nara Leão também faria 80 anos, e tivemos agora a série O Canto Livro de Nara Leão (da Globoplay). Ali você pode ver essa força extraordinária, de uma presença individual e coletiva, ela e a bossa nova, e o Rio de Janeiro, aquele movimento todo surgindo, se expandindo. Ter vivido dentro dessa turma, nessa metade de século de atuação, parece um determinismo das origens. A História determinou que fôssemos os constituintes dessa geração. O que a gente vai dizer? Só temos que dizer gracias a la vida (risos).
Em março, antes da nova turnê europeia, você tomará posse na cadeira 20 da Academia Brasileira de Letras. Um reconhecimento que, guardadas as proporções, pode ser visto como o Nobel de Literatura dado a Bob Dylan. Como sentiu tal honraria? A escolha não representa uma novidade?
Gostei, claro, mas depois não fiquei pensando muito nisso, pelo menos até a posse. Vou repetir o que disse na época ao Jornal Nacional. Faço uma poesia ligada ao campo do entretenimento popular. É uma novidade nesse sentido. Não são só poetas, enfim, classicamente considerados aqueles que escrevem poemas, publicam livros etc. Muito do acolhimento dado pelos acadêmicos se deve ao fato de que há uma reconhecida qualidade no meu trabalho poético, na minha escritura como compositor.
Gil, muito obrigado por sua disposição em interromper as férias em sua terra para uma conversa. Mas gostaria de uma última pergunta: quais as suas expectativas para as eleições de outubro?
Olha, espero que o voto brasileiro manifeste a grande decepção, o grande desagrado com o grupo político que se instalou no poder nos últimos anos. Espero que a eleição seja uma resposta positiva a todo o negacionismo que tem representado esse grupo. Acho que isso já se configura um pouco nas enquetes que vêm sendo divulgadas sobre as intenções de voto. Acho que essa eleição trará outra expectativa, para não dizer esperança.