O mês de fevereiro será marcado pelo centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Ainda no primeiro semestre, deverá ser publicado pela editora Todavia um livro de Luís Augusto Fischer que busca redimensionar o episódio na história da cultura brasileira. Será a consolidação de uma crítica à Semana que o professor de Literatura Brasileira da UFRGS tem desenvolvido ao longo dos anos. Fischer pontua, como explica na entrevista a seguir, que o modernismo paulista é visto – indevidamente – como ponto de partida de tudo que houve de moderno na cultura do país, abordagem ensinada inclusive nas escolas. Seu esforço é o de descortinar a construção dessa ideologia. Um dos intelectuais do Rio Grande do Sul mais presentes na arena pública nacional, Fischer lançou em agosto o livro Duas Formações, uma História (ed. Arquipélago). Nesse estudo de fôlego, traça um mapa para repensar a forma como a história da literatura brasileira pode ser contada.
A Semana de Arte Moderna de 1922 está completando cem anos. Tens sido uma voz crítica a esse movimento, identificando um superdimensionamento de sua importância na cultura brasileira. Que parte da Semana de Arte Moderna merece ser comemorada em 2022?
Falando bem genericamente, pode-se comemorar qualquer coisa. Certamente a Semana de Arte Moderna é um marco. Mas uma coisa é o evento em si e outra é o que o processo histórico faz com ele. Para dar um exemplo de outra ordem: a Guerra dos Farrapos. O que ela foi naquele contexto e o que se fez com ela? Quem são os herdeiros que reivindicam o espólio farrapo, verdadeiro ou não? Então, a primeira coisa nesse debate é dizer: uma coisa é a Semana e outra é o que ela virou com o tempo. Meu ponto principal é estudar o processo de consagração da Semana como sendo um big bang de tudo de moderno, bom e bacana que se fez no Brasil dali por diante. Essa ideia de que a Semana está no centro de tudo é uma construção histórica muito lenta, que demorou várias décadas até se estabilizar. Voltando à pergunta: dá para comemorar, porque foi legal, foi bacana. Um evento, três dias, barulho e tal. Mas, colocado nos seus termos, aquilo é um evento local, provinciano, na cidade de São Paulo, que – vou citar o Mário de Andrade – era uma cidade rica, mas provinciana. Ele diz isso com essas palavras em uma famosa conferência de 1942. Diz que, se a Semana tivesse ocorrido no Rio, não teria tido nenhuma repercussão. Porque o Rio, e essas agora são minhas palavras, já tinha muitas estratégias de modernidade, autores, compositores, cancionistas, gente que fazia cinema, feminismo. Tinha de tudo no Rio. Não porque era melhor que São Paulo; simplesmente era uma cidade mais cosmopolita, mais antiga. Era a capital do país. Este é um dado bem interessante: até a década de 1880, Porto Alegre e São Paulo tinham a mesma população e o mesmo padrão de crescimento populacional. Só a partir dali é que São Paulo explode. Então, dá para comemorar, mas não dá para ter a ilusão de que a Semana foi o big bang da inteligência brasileira. Essa transformação ocorreu por operações históricas que são detectáveis e analisáveis. É o que faço no novo livro que deve sair em 2022.
Uma coisa é a semana de arte moderna em si e outra é o processo histórico que se fez com ela. Por exemplo, a Guerra dos Farrapos: o que ela foi naquele contexto e o que se fez com ela? Não dá para ter a ilusão de que a Semana foi o big bang da inteligência brasileira.
O livro vai elaborar em profundidade a visão crítica sobre a Semana que tens pesquisado nos últimos anos?
A ideia foi juntar as coisas que eu já tinha escrito sobre a crítica à divinização da Semana. Mas aí acabei estudando e vendo que tinha uma estratégia melhor. Os capítulos se chamam 1922, 1932, 1942... até 2022. Década por década, o que fiz foi estudar, em torno dessas datas, o que ocorreu no debate a respeito da importância da Semana e do modernismo. Tem marcos importantes, como o artigo do Mário de Andrade de 1942. Era ele aos 20 anos da Semana fazendo uma conferência no Rio, dando um balanço da Semana. No mesmo ano, o Viana Moog, intelectual nascido em São Leopoldo, faz um estudo e afirma que não há literatura brasileira ainda. O que tem são sete ilhas que não se comunicam. Não sei se ele tem razão ou não, mas só para ilustrar. Em 1942, o Mário dizia naquela conferência que já existia literatura brasileira e que ela era o modernismo. É só um exemplo bem pontual de como em 1942 ainda tinha essa disputa. Também fui atrás de obras do Antonio Candido e do Alfredo Bosi. O Bosi, em 1966, publica O Pré-Modernismo. Ele diz que o pré-modernismo está definido há muito tempo por Alceu Amoroso Lima. E sai falando sobre o que é o pré-modernismo, que é o sentido que tem até hoje. Aí fui ler o Alceu, que nunca tinha lido. E ele não diz nada daquilo. Só usou o termo pré-modernismo para dizer que era antes do modernismo. O Bosi inventou a categoria do pré-modernismo e consolidou uma ideia que o Mário de Andrade já tinha. Mário chamava o Manuel Bandeira de São João Batista do modernismo. É uma metáfora cristã, porque São João Batista anunciou a chegada do suposto salvador, que era Jesus Cristo. Aí eu digo de maneira debochada que o Mário dizia isso porque ele, Mário, era o Jesus Cristo dessa história, ele era a verdade revelada. E o Bandeira reagia a isso. Catei na correspondência entre Mário e Bandeira. Ele dizia: “Não sou São João Batista coisa nenhuma”. O livro contará esses episódios.
Que condições possibilitaram que a Semana assumisse esse significado central no imaginário brasileiro?
O que faço no último capítulo do livro é um ensaio em que tento explicar quais são as condições objetivas, históricas, políticas, econômicas, sociais que sustentam essa entronização da Semana como centro de tudo. Em uma frase: a resposta é a economia de São Paulo. Voltei a estudar história econômica. Tem uma tese do Jorge Caldeira que diz que São Paulo conseguiu enriquecer porque ficava longe da sanha fiscalista da Coroa. São Paulo enriqueceu com a Guerra do Paraguai. A economia da província de São Paulo foi uma intermediária importante no abastecimento das tropas. E, quando veio o café, foi um negócio absurdo. Na década de 1910, quase 90% do café mundial passava pela cidade de São Paulo. É uma fábula de dinheiro que não tem tamanho. E isso se acentua. Na chamada Primeira República, foi o primeiro momento em que as províncias tiveram autonomia para taxar exportação. Isso muda tudo. Então, o imposto de exportação era cobrado pelos Estados, e o de importação era cobrado pela União. O café enriqueceu São Paulo. E, uma geração depois da Semana, nos anos 1950, há a explosão da indústria automobilística brasileira. A força da economia de São Paulo é irrepetível. Não tem outra região do Brasil que tenha vivido algo parecido com essa arrancada, que vai de 1880 a 1950, um processo de três gerações.
Acreditas que tua interpretação sobre o modernismo pode ser adotada nas universidades e no Ensino Médio?
Respondendo de trás para frente, primeiro a questão de chegar às escolas. O vestibular unificado quase acabou. A força que a ideologia modernista paulista teve correspondeu nos últimos 50 anos à lógica do vestibular unificado. Antes de 1970, o exame vestibular era feito em cada unidade. Os professores da Faculdade de Arquitetura, por exemplo, elaboravam provas para quem era candidato à Arquitetura. Então, o cara tinha que estudar história da arte, desenho, matemática. Porque era um momento em que a universidade no Brasil era para muito poucos. Muito pouca gente concluía o atual Ensino Médio. Então, ocorreu a revolução industrial brasileira, o êxodo rural, e, ao longo dos anos 1960, começou a haver mais gente nas cidades, mais gente demandando a universidade. Nesse momento, no miolo da ditadura, em vez de ampliar as vagas, o então Ministério da Educação e Cultura criou o vestibular unificado. E todos os candidatos a qualquer curso prestavam a mesma prova. Isso é um crime intelectual inominável que fez a gente ter um Ensino Médio enciclopédico. É bem diferente do que se faz, por exemplo, nos EUA. Agora, esse vestibular unificado acabou por causa do Enem. E o Enem não tem um programa explícito de literatura. Tem habilidades de leitura. Acho que por alguns anos ainda vamos ter a inércia dessa mentalidade da historiografia literária brasileira modernistocêntrica dominando sem aparecer, seguirá como favas contadas.
A universidade hoje é uma presa da superespecialização. A perspectiva de uma leitura de conjunto da história não é moeda corrente, quase ninguém se ocupa disso. O cara faz a carreira dele estudando um autor.
E quanto à repercussão da tua interpretação no meio acadêmico hoje?
É uma coisa muito irregular. Não sou só eu que faço essa crítica (ao modernismo), tem mais gente que faz. Tem um cara que não tem a ver com a academia, que é o Ruy Castro, que tem publicado muita coisa. Muitos dos meus colegas de universidade gostam, saúdam o que eu escrevo, mas ao mesmo tempo a universidade hoje é uma presa da superespecialização. A perspectiva de uma leitura de conjunto da história não é moeda corrente, quase ninguém se ocupa disso. O cara faz a carreira dele estudando um autor. No fundo, arriscaria dizer que a maior parte dos meus colegas professores de literatura em universidades simplesmente não vê isso como relevante. Por causa da superespecialização. A universidade permite, para o bem e para o mal, um relativo descompromisso com um debate como esse, que envolve ensino, ideologia. Estudei História, não me formei por poucas cadeiras. Às vezes, eu me encontro mais conversando com colegas que estudam história da cultura na (área de) História do que com colegas que estudam literatura.
O livro Duas Formações, uma História é como um roteiro para repensar a forma de escrever a história da literatura tendo em vista o advento de diferentes aportes teóricos, incluindo alguns que não têm origem na literatura, como Viveiros de Castro?
Sim. Tomo conselho com Viveiros de Castro, com Stephen Jay Gould, com teóricos da história. Com a nova geração de historiadores, que é a minha geração cronológica: João Luís Fragoso, Manolo Florentino, que são os caras que reviraram essa história. O número dois do título Duas Formações, Uma História tem a ver com minha condição de habitante do sul do Brasil ou, como se diz genericamente, gaúcho. Vivendo numa ponta do Brasil que nunca esteve no centro de nada, ao contrário dos baianos, cariocas e paulistas, que estão ou estiveram no centro da cultura brasileira. Então, a gente sempre desenvolve uma perspectiva, no fundo, dupla. Quem é intelectual aqui tem de pensar sobre o local e o não local o tempo todo. Escutamos o samba carioca e o tango platino e, de certa forma, as duas coisas nos dizem respeito. Porque realmente estamos numa ponta da história. E essa ponta costuma ser vista como problemática para os grandes enquadramentos. Eu postulo a ideia de que o Brasil tem essas duas formações: uma sendo a plantation, a grande propriedade escravagista monocultora exportadora, no litoral; e tem também o lado de dentro, e uso para isso a palavra sertão, num sentido genérico, como terra desconhecida. A gente aqui vive ouvindo poesia, lendo romance que tem a ver com esse mundo do “sertão” entre aspas. O Erico Verissimo de O Tempo e o Vento é sertão puro. E aí esses caras que falam desse sertão aqui no pampa ou no oeste do Rio Grande do Sul são vistos pela visão hegemônica – que é urbana – como um acidente de percurso. Daí, quando aparece um gênio como Guimarães Rosa, não dá para dizer que é um acaso. Ele não fica naquela gaveta de “outros”. Como tu lidas com esse cara? A visão modernistocêntrica diz: embora o sertão do Guimarães Rosa seja um assunto vencido, ele é um cara experimental. Aí vem a possibilidade de conversa dele com James Joyce, por exemplo. O que é uma forma possível de pensar sobre ele, mas, ao mesmo tempo, é uma visão que renega justamente essa profunda inscrição dele no mundo do sertão. Meu ponto: esse Brasil do litoral é o Brasil das grandes cidades, como Salvador e Rio de Janeiro. São Paulo já é boca do sertão. Acontece que há vida no sertão desde o século 17. É um mundo que no começo não é escrito, é ágrafo, mas que vai chegar na letra. Vai chegar pela via das tradições orais, do causo, do chamado romance regionalista do século 19. Só que de repente tu passas a ter monumentos literários aí. O exemplo superior é o Guimarães Rosa. No fundo, a conclusão é trivial: o Brasil não é só o litoral. Só que tento fazer isso dizendo: organicamente, mesmo a literatura brasileira, que é uma arte claramente urbana, depende de impressão, de escola... Mesmo a literatura alcança o sertão de maneira muito forte e efetiva.
A gente tem que ensinar as pessoas a ler, mostrar como é bom ler, como faz bem. tenho sempre essa sensação de que temos um produto maravilhoso para 'vender', entre aspas: ensinar as pessoas a ler.
Como vês o fato de sermos ainda um país de poucos leitores? Muitos o são por falta de oportunidade, e outros tiveram oportunidade e mesmo assim optam por não serem leitores. Com quem falamos quando falamos de livros?
Eu me sinto fazendo um negócio que tem muito futuro, no sentido de que tem um mercado potencial imenso. A gente tem que ensinar as pessoas a ler, mostrar como é bom ler, como faz bem. Antonio Candido mesmo afirmava num artigo dos anos 1970: o que está acontecendo é que as massas que estão chegando na cidade vão passar de uma etapa de folclore oral para um outro tipo de folclore – palavra usada aqui no sentido pejorativo – urbano dos meios de comunicação massivos. Hoje em dia, no ambiente digital, imagina. Tem uma força avassaladora dos meios de comunicação massivos que de certa forma impede a leitura, porque justamente a leitura é um negócio lento, que tem que fazer despendendo energia mental e emocional. Não tenho uma resposta muito boa nem muito esperançosa. Mas tenho sempre essa sensação de que temos um produto maravilhoso para “vender”, entre aspas: ensinar as pessoas a ler. Além disso, tem o fato de que para mim a canção é um elemento que faz parte do mundo da literatura. Assim como a telenovela. Não sei dizer nada de relevante sobre telenovela, mas a canção acho que pode ser incorporada a esse patrimônio. A canção é um negócio massivo. Não apenas essa canção de agora, mas a canção em geral. Certamente, no Brasil, do ponto de vista da população, a canção é muito mais importante na formação lírica do brasileiro do que a poesia de livro. Então nós, professores de literatura, temos que conversar com esse patrimônio. Nós que temos de nos habilitar nele. Porque essa habilitação para a sociedade já existe.
Há algum tempo, tens te debruçado sobre a canção como objeto de estudo. A canção seria a forma artística mais popular do Brasil?
Entre as formas que envolvem literatura? Certamente. Junto com a telenovela. A telenovela tem um problema complexo e talvez sem solução que é sua duração no tempo. É inexequível tu passares uma telenovela inteira para conversar com os alunos. Um pouco as séries têm feito o papel que a telenovela fez. Não acompanho muito, mas acho que tem a ver com isso. Tu consegues fazer um romance cíclico, um roman-fleuve numa série, contando uma história complexa, de uma família ao longo de várias gerações ou uma trama complexa. Isso não é narrativa escrita, mas é narrativa. Então, nós, professores de literatura, deveríamos nos habilitar nessa conversa. Falar sobre isso.
A canção está mais entranhada na universidade do que a telenovela?
Sabe que a cadeira de canção que inventei está fazendo 30 anos? Simplesmente foi uma coisa que me pareceu óbvio fazer. Porque eu já sou dessa geração que fez a sua formação lírica ouvindo canção. Nasci em 1958, então acompanhei os últimos festivais e os anos 1970 como jovem, entusiasmado. Então, me pareceu óbvio que isso ali tinha a ver com o mundo das letras. Ao mesmo tempo, do ponto de vista acadêmico tradicional nas Letras, a canção seria uma coisa problemática. Porque a tradição é de texto escrito e impresso. Mas basta fazer um pequeno movimento para o lado que tu enxergas como a canção é relevante para todos. Tu entrevistas as pessoas, especialmente de classe popular hoje em dia, e vês que os Racionais MCs estão no absoluto centro da vida de gente como o (escritor José) Falero. Como ignorar essa presença?
A canção é relevante para todos. Tu entrevistas as pessoas, especialmente de classe popular hoje em dia, e vês que os Racionais MCs estão no absoluto centro da vida de gente como o escritor José Falero. Como ignorar essa presença?
Mas ainda hoje se debate se canção é literatura. Esse assunto voltou, por exemplo, quando Bob Dylan ganhou o Nobel, em 2016. É um debate que ainda faz sentido?
Um argumento que uso nesse tema é a forma chamada romance. O romance, quando nasceu, era uma coisa vulgar, bagaceira. No século 18, era uma coisa trivialíssima, lida por todos, logo, não era muito considerada. Lá pelas tantas aparece o Balzac, e, duas gerações depois, o Flaubert – para ficar no exemplo francês, que no Brasil é mais influente. Ali o romance já é considerado grande arte. Mas um pouco antes não era. Os grandes autores ingleses neoclássicos achavam aquilo uma vulgaridade insuportável, escrita em língua cotidiana, com gente comum. No fim, o romance virou um grande negócio. Então, a canção é a mesma coisa. Nasceu como, sei lá eu, brincadeira de roda, como um jogo comunitário de pergunta e resposta, como sátira. Só que de repente entraram uns caras nessa brincadeira que elevaram o patamar da conversa. Noel Rosa, por exemplo. Com ele, e alguns outros, a canção adquire uma complexidade que a faz ser simplesmente incontornável.