Em um estudo sobre a repressão da ditadura militar contra a população LGBT+, o advogado Renan Quinalha, professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), defende que o regime militar (1964-1985) buscou controlar não apenas o sistema político e econômico, mas tentou também implementar uma visão conservadora e higienista de família “ideal” para o país. Houve uma perseguição a gays, lésbicas, travestis e prostitutas, argumenta o autor no recém-lançado livro Contra a Moral e os Bons Costumes. A obra é resultado de seu doutorado defendido na Universidade de São Paulo (USP) e do trabalho na Comissão Nacional da Verdade e nas comissões estaduais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na entrevista a seguir, Quinalha, que tem 35 anos, comenta suas descobertas sobre o tema e como a situação dos LGBT+ evoluiu do período de repressão da ditadura até os dias de hoje.
Seu livro narra a repressão da ditadura contra a população LGBT+ e a organização de ativistas em movimento contrário. Como era essa repressão?
A ditadura instituiu mecanismos de repressão, censura e perseguição motivados por discriminação de orientação sexual e de identidade de gênero. Busco entender como, nesse contexto da ditadura no Brasil, em que havia limitações à liberdade de associação e aos direitos civis e políticos, foi possível ao movimento homossexual se organizar para desenvolver uma luta para redemocratizar o país e garantir cidadania às pessoas LGBT+. Descrevo duas frentes de repressão e de resistência. Em um capítulo, exploro a dimensão da repressão nas ruas, da violência policial. Houve um circuito de perseguição a guetos LGBT+ nas grandes cidades, prendendo arbitrariamente, extorquindo e explorando a população LGBT+. E examino também a questão da censura, nas mais variadas linguagens artísticas. Ao contrário do que geralmente se pensa, de que a ditadura foi branda na censura moral, houve censura moral significativa na música, no teatro, no cinema e na televisão.
O livro cita que, na década de 1970, existia no Rio de Janeiro uma Divisão de Meretrício na Delegacia de Costumes e Diversões. O que era isso?
A ditadura tentou centralizar mecanismos de repressão e irradiar isso a todo país. Além de criar estruturas novas, também mobilizou estruturas repressivas de segurança pública já presentes nos Estados. Delegacias como essa eram dedicadas à ordem política e social. Em “ordem social”, a gente não vê a dimensão de resistência política, das pessoas acusadas de serem comunistas e subversivas, mas a dimensão social e moral de pessoas que afrontavam regras de comportamento de gênero e sexualidade consideradas padrão. Essas delegacias, que tiveram nomes diferentes a depender do lugar do país, se expressaram também no departamento de censura. Era uma tentativa de olhar para artes, entretenimento e vida noturna, lugares onde pessoas LGBT+ podiam existir. A ditadura promoveu de forma mais intensa algo que já existia no Brasil desde a urbanização: a dessexualização do espaço público, que é tentar confinar esses corpos a lugares não tão próximos à convivência da família tradicional.
Dá para entender “dessexualizar o espaço público” como “tornar hétero”?
Sim, porque de alguma maneira é a ideia de deixar apenas o padrão. Tudo se comporta como se fosse naturalmente hétero. Há uma heteronormatização das cidades, o que alguns autores da sociologia urbana chamam de “cidade armário”: a ideia de que há espaços da cidade mais ou menos abertos para a existência de pessoas LGBT+, mas há outros espaços em que essas pessoas precisam ficar dentro do armário porque não são zonas em que possam expressar livremente seu desejo e identidade. A ditadura institucionalizou a LGBTfobia. Não a fundou, mas a alçou a uma dimensão de política de Estado.
Você destaca o caso do delegado José Wilson Richetti, que comandava uma perseguição sobretudo a travestis, com apoio do governo e dos comerciantes da região central de São Paulo. Isso parece resumir o controle da ordem moral da época. Como era a oposição a esse tipo de repressão?
Havia apoio de parcela muito grande da população, e a ditadura soube mobilizar esse conservadorismo quase atávico na sociedade brasileira, algo estrutural. A ditadura não usou a questão moral e sexual como algo secundário, isso é uma tese central do meu livro. A dimensão do conservadorismo moral e das políticas sexuais foram estruturantes do regime, que buscou educar a sociedade de modo conservador. Mas evidente que havia resistência. Em dado momento, as operações comandadas pelo delegado Richetti foram contestadas quando o processo atingiu repercussão pública.
Com a prisão de um sociólogo, um homem de classe média.
Exato. Vinícius Caldeira Brant, um sociólogo que não era dessa “clientela” fidelizada da repressão policial, composta por travestis, prostitutas, homossexuais e pessoas negras que ficavam nas regiões centrais guetificadas. A partir dali, essa repressão aparece com mais espaço na opinião pública, com denúncias da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), do jornal Folha de S.Paulo, de setores que até então apoiavam as rondas e da oposição parlamentar à ditadura, que crescia em um momento de fim do “milagre econômico”. Uma delegacia da Rua Aurora, da mesma região central de São Paulo, homenageia hoje ninguém menos do que José Wilson Richetti.
LGBTs mais pobres ficavam mais vulneráveis às batidas policiais. É forte a descrição das travestis do Rio de Janeiro que se cortavam durante as batidas para, em vez de serem presas, irem ao hospital. Qual era o impacto em LGBTs com mais dinheiro?
Toda a comunidade LGBT+ foi afetada. É impossível fazer comparações, não se trata de saber quem sofreu mais ou menos. A população LGBT+ não podia viver sua sexualidade em espaços públicos. O que identifico é que a repressão mais desenfreada se dá contra o segmento mais pobre, nas pessoas expostas em ruas e esquinas, associadas à prostituição e a um submundo do crime e das drogas. Em relação à classe média, o que dá para notar na ditadura é um certo movimento ambíguo. Há políticas de perseguição, mas, ao mesmo tempo, proliferam casas noturnas e bares. Apesar dessa comunidade ter sofrido, vale ter essa visão mais interseccional para compreender como as dimensões de classe, raça, gênero e território também imprimiram características específicas para essas repressões.
A ditadura não usou a questão moral e sexual como algo secundário. A dimensão do conservadorismo moral e das políticas sexuais foram estruturantes do regime, que buscou educar a sociedade de modo conservador.
Você deixa claro que havia diferença de tratamento entre manifestantes de esquerda e LGBTs. Como cada grupo era tratado?
Muitas pessoas objetavam, em congressos, dizendo que a ditadura não tratava homossexuais como tratava militantes da luta armada. De fato, não é igual. Em relação aos militantes políticos, havia um circuito de repressão que mobilizava os DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), os DOI-CODIs (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) e as Forças Armadas em todo território nacional, com sistema de vigilância. E havia sequestros, em geral por agentes públicos à paisana que tiravam pessoas repentinamente de um lugar e as levavam para prisão e tortura. Já o circuito moral da repressão, apesar de não culminar necessariamente com assassinato e desaparecimento do corpo, passava por fases semelhantes. No começo, havia prisão arbitrária e pessoas eram mantidas presas sem acusação formal, sem contato com advogados, sem direitos básicos de acusado em qualquer processo penal. As pessoas eram torturadas e extorquidas. Muitas vezes era a mesma polícia que estava no DOPS. A partir do fim da década de 1970, quando os grupos de luta armada foram exterminados, boa parte do aparato repressivo se direcionou a perseguir a população jovem e negra da periferia, com os Esquadrões da Morte, uma história já razoavelmente conhecida, e com campanhas de higienização “moral” nas regiões centrais das cidades, pegando o público LGBT+.
Sua pesquisa sustenta que havia preconceito contra ativistas LGBT+ inclusive na esquerda. Como era essa relação?
É uma relação complexa. De um lado, o campo progressista reproduzia valores morais conservadores, porque é um caldo de cultura em que está inserido. Mostro casos de pessoas LGBT+ de esquerda tentando se assumir, mas era um momento também de resistência armada em que o espaço de debate era reduzido, esses grupos viviam na clandestinidade, fugindo de lugar para lugar. Era uma situação difícil para debates avançarem em relação a raça e gênero e sexualidade. Mas é interessante notar que alguns setores desse campo progressista se comprometeram em primeira hora com as lutas de liberação sexual.
Ou seja, a esquerda abraçou a população LGBT+ antes da direita?
Sim. Ao falar na relação entre esquerda e LGBTfobia, é importante pontuar que havia uma perspectiva hegemônica que reproduzia valores morais conservadores, até pela formação influenciada pelos partidos comunistas da terceira intencional, que viam a homossexualidade como uma decadência burguesa. Mas, ao mesmo tempo, é das esquerdas que se vê surgirem as primeiras alianças importantes para fortalecer a luta pela liberdade sexual. A esquerda hegemônica reproduzia valores morais conservadores, mas dentro dela houve setores que abraçaram a luta da liberação sexual. Isso só chega à direita e à centro-direita nos anos 2000 no Brasil, quando surgem setoriais LGBT+ nos partidos.
Você diz haver um equívoco no entendimento de que militares foram coniventes com a emergência da contracultura e a mudança de costumes na ditadura. Por quê?
O entendimento de que a contracultura e a luta por liberdade sexual decorram do autoritarismo da ditadura me parece colocar no crédito do regime um mérito que não se justifica empiricamente. Esses movimentos emergiram no mundo todo em um processo que decorre de uma série de fatores que passam por industrialização, urbanização e crescimento das cidades. No Brasil, isso já ocorria nas décadas de 1950 e 1960 nas grandes cidades. A ditadura se apresentou como uma maneira de paralisar a sociedade brasileira nesses processos de transformação.
Ao mesmo tempo em argumenta que a repressão à população LGBT+ não foi inaugurada na ditadura, você defende que essa repressão do regime deixou uma herança ao Brasil de hoje. Que herança foi essa?
A ditadura deixou como herança a naturalização da violência contra a população LGBT+. Não inaugurou nada de novo do ponto de vista da estigmatização, mas pegou esses discursos e converteu em políticas de Estado, dando instrumento para a perseguição. A mensagem passada é de certo passaporte livre de impunidade para a violência de Estado e de setores LGBTfóbicos, que entendem que é possível seguir fazendo esse tipo de violência, já que não houve punição em relação a esses crimes no passado.
Seria mais fácil hoje ser LGBT+ se não houvesse a repressão da ditadura?
É muito difícil fazer projeções contrafactuais, mas acho que sim. No mundo todo, a gente vê que os anos 1960 e 1970 foram um momento em que eclodiu a onda de liberação sexual questionando papéis de gênero, o lugar da mulher na sociedade e no mercado de trabalho, a questão do direito ao prazer. No Brasil, isso demora, só acontece no fim da década de 1970, justamente porque vivíamos a ditadura. Se a gente não tivesse um regime autoritário com esse componente LGBTfóbico, teríamos avanços mais significativos, porque não precisaríamos compensar uma década de atraso.
No último capítulo do livro, você traça um paralelo entre a repressão durante a ditadura militar e o governo atual. Quais as semelhanças entre os dois períodos?
Há muitas semelhanças visíveis nos discursos públicos de mandatários do governo Bolsonaro e do próprio presidente. A primeira declaração da ministra Damares (Alves) foi “menina veste rosa e menino veste azul”. A combinação entre autoritarismo político e conservadorismo moral, tão cara à ditadura, também aparece hoje. Não é coincidência, é uma articulação de um mesmo setor e que mobiliza bases muito parecidas a partir do programa de reforçar um único padrão de família. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da resistência, há muitas diferenças. Há um movimento organizado com 40 anos de trajetória. Também é interessante observar que hoje há inclusive um setor da comunidade LGBT+ que apoia o governo. Em geral, são pessoas com renda e escolaridade altas, o que mostra que o interesse de classe pode se sobrepor à orientação sexual ou de gênero. Ou seja, a identidade de classe fala mais alto do que a identidade sexual ou de gênero.
Ao citar a suspensão da exposição Queermuseu em Porto Alegre e dois espetáculos que relacionavam questões LGBT+ a religião, você diz que a repressão migrou do discurso da segurança nacional para a esfera religiosa. O quanto a religião nos pauta hoje?
Na ditadura, discursos religiosos e da segurança nacional entendiam pessoas LGBT+ como subversivas morais. Agora, em um momento democrático, há mais dificuldade para o Estado implementar essas políticas. Hoje, a religião ocupa um papel mais importante, até pelo pelo crescimento da expressão política de lideranças evangélicas neopentecostais, que propagam visões de preconceito. Se, na ditadura, era “contra a moral e os bons costumes”, agora a contestação é à “ideologia de gênero”.
A ditadura deixou como herança a naturalização da violência contra a população LGBT+. Não inaugurou nada de novo do ponto de vista da estigmatização, mas pegou esses discursos e converteu em políticas de Estado, dando instrumento para a perseguição.
Você cita o caso de censura, em 1969, para a TV da Guanabara tirar homossexuais dos programas de TV. Hoje há programas LGBT+ e figuras de sucesso, como Pabllo Vittar e RuPaul. O que aconteceu de lá para cá para que figuras assim fossem aceitas?
Essas mudanças de visibilidade e representatividade, que são políticas de reconhecimento, mostram o avanço das lutas de liberação sexual. A população LGBT+ aparecia na imprensa, durante o período da ditadura, geralmente na página de crime, como autor ou vítima. Ainda hoje se reproduzem visões estigmatizadas, mas em escala bem menor. A subcultura LGBT+ se tornou algo consumível, entrou em uma lógica de mercado a partir dos anos 1990 e 2000. Houve uma integração pela cidadania e pelo consumo, que refletem mudanças importantes graças a essas lutas.
Mas, na integração pelo consumo, quem não consome fica à margem.
Por isso é uma integração limitada. Mas garante a inclusão de determinado segmento da comunidade, que vai se assimilando ao modo de vida hegemônico. Há uma série de contradições nesse processo, mas ele mostra uma plasticidade do capitalismo, um neoliberalismo progressista, conforme a (filósofa norte-americana) Nancy Fraser, porque é um neoliberalismo regressivo, como este do governo Bolsonaro, que tem um neoliberalismo econômico, mas um conservadorismo moral.
A melhora de vida econômica dos brasileiros nas últimas décadas favoreceu a integração dos LGBTs às formas hegemônicas?
Sem dúvida o processo de melhoria da renda de parte da classe trabalhadora no período dos anos 2000, que coincide com período de efetivação formal de direitos LGBTs, contribuiu para isso. No campo LGBT+, a assimilação via consumo coincide com o discurso dos anos 1990 de emergência do neoliberalismo. Isso é muito marcado no caso do Brasil pela cultura GLS, que tomou espaço no anos 1990, além do “pink money”, o direito cor-de-rosa de um excedente econômico já que, sem constituir família, há renda acumulada. Aí se desenvolveu a ideia de mercados segmentados, como o turismo gay.
Você teme que LGBTs percam direitos no futuro próximo?
Ameaças existem, porque direitos não são eternos nem estão escritos na pedra: são frutos de construções culturais e de disputas de relações de poder na sociedade. É preciso estar atento para a manutenção de direitos conquistados formalmente, via decisões do Supremo Tribunal Federal, que é a via brasileira para reconhecimento dos direitos LGBT+.