Dirigido por Carla Camuratti, o documentário 8 Presidentes 1 Juramento – A História de um Tempo Presente chega aos cinemas nesta quinta-feira (18/11). Fruto de uma pesquisa minuciosa, em que a cineasta se debruçou em arquivos de diferentes mídias, o filme relata o processo da redemocratização brasileira, do movimento das Diretas Já, na década de 1980, até a posse do presidente Jair Bolsonaro. Atriz destacada no cinema e na TV entre os anos 1980 e 1990, ela fez história na direção de seu primeiro longa, Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), apontado como marco inicial no período de retomada do cinema nacional pós-estagnação com a extinção das agências de fomento no início da década de 1990. Carla também atuou na gestão pública, sendo presidente da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro entre 2007 e 2014. Nesta entrevista, a diretora fala sobre 8 Presidentes 1 Juramento e seus demais projetos.
Qual foi o ponto de partida para 8 Presidentes 1 Juramento? O que te levou a realizar esse documentário?
Ter vivido essa história. Eu era diretora de conteúdo de cultura nas Olimpíadas do Rio 2016. Quando acabou o evento, já vinha com a ideia de fazer esse filme. Adoro História, desde pequena é um assunto que me interessa. Eu nem sabia que esse projeto existia com tanta força dentro de mim. Um dia acordei e ele estava ali. Sabia exatamente o que e como queria falar. É engraçado, me acontece um pouco isso com meus filmes: são assuntos que ficam dentro da minha cabeça, no plano das ideias.
Você trabalha com imagens de arquivo para traçar uma linha do tempo do processo de redemocratização. Que caminho você buscou representar dos fatos?
Eu não queria fazer um documentário entrevistando os presidentes. Não queria os bastidores, mas os fatos em si. E as emoções. Não queria filtro algum, e sim a crueza dos fatos. Se fosse uma série de entrevistas, seria insuportável e não chegaria a lugar algum. Realizamos uma pesquisa minuciosa de história e, depois, de mídias. Então, fomos atrás das imagens para começar a montar esse grande mosaico. Achamos que era importante não deixar o filme desanimador. Quem viveu o período anterior ao processo de redemocratização sabe a pedreira que foi.
Chegou a cogitar fazer uma minissérie?
Não cheguei, mas ainda tenho muita vontade de fazer. O filme tem muitas informações. Não deixa você parar para pensar. Se você pausa, tem que ir somando. De repente, essas informações que a gente viveu fluam melhor de forma seriada.
Qual foi o critério para dar mais foco a certos acontecimentos em detrimento de outros?
Quando você faz uma síntese, não dá para resumir em duas horas e 20 minutos tudo o que aconteceu. Há muitas histórias nesse percurso. O critério teve de ser as histórias que mudaram o país de alguma maneira, ou ao menos a impressão da população quanto a isso. Quando chegam 100 mil pessoas em Brasília, isso é forte, independentemente do partido ou se você acha certo ou errado. Não importa o que você acha. Importa que isso é um fato e existe. E um filme é um filme. Serve para inspirar você, fazer você refletir, se interessar. Quero despertar uma reflexão, uma curiosidade. Do jeito que fizemos, conseguimos passar todas as turbulências grandes que vivemos no período e como cada presidente as enfrentou. Sem precisar acusar ou defender. Não era a intenção. Não quero catequizar ninguém de nada com esse filme. Quero construir memória e reflexão.
O documentário traz os altos e baixos de todos os presidentes do período. A sensação que fica é que há mais baixos do que altos, concorda?
É uma curva dramática que a ficção dificilmente faria: sobe, desce, aí sobe, sobe, desce, desce, desce e desce! Caramba! (Risos.) Imagina se fosse reconstruir esses fatos na ficção com atores? Não teria estúdio que comprasse! Por isso documentários são importantes: porque permitem que a gente consiga se ver no espelho. Olhe o que está sendo a nossa construção de História. Precisamos de reflexão, não podemos seguir num caminho imprudente, imaginando que não dá para conviver com as nossas diferenças.
Observando esses mais de 35 anos, qual é o caminho para a maturidade política do Brasil?
Quem tem de pautar o país somos nós, a população. Nós que entendemos as dificuldades da vida no país. Nós que não moramos em Brasília. Não conhecemos os bastidores, mas uma coisa precisamos saber: o que a gente quer. Para que Brasília siga um desejo comum, não o desejo de um candidato, mas o desejo da população como um todo.
Não importa o que você acha. Importa que isso é um fato e existe. E um filme é um filme. Serve para inspirar você, fazer você refletir, se interessar. Quero despertar uma reflexão, uma curiosidade. Não quero catequizar ninguém de nada com esse filme. Quero construir memória e reflexão.
Você consegue ver alguma renovação ou a história é uma repetição de ciclos?
Pode ser uma repetição até que a gente amadureça. Assim como na história das nossas vidas, se formos observar: costumamos repetir erros até aprender (risos). Quantas vezes você brigou inutilmente? Quantas vezes foi desatento? Quantas vezes foi agressivo desnecessariamente? Se a gente fizer essa reflexão por dois segundos, já pensa: “É verdade, eu poderia ter feito diferente”. Creio que os erros se repetem, sim, mas você tem possibilidade de aprendizado e de mudança quando se criam a memória e um espelho da história viva, em que os personagens ainda estão aqui. A gente percebe que a história está nas nossas mãos. Por isso tentei construir um equilíbrio, em que todos têm o seu momento. Olhando para trás, buscando elaborar esse painel que sirva para todos. Se a gente não fizer isso, vamos continuar repetindo os erros. Tenho essa sensação.
Que conclusões você tirou ao observar esses oito presidentes em conjunto?
Eu gostaria de me manter isenta de opiniões. O público que assista e reflita sobre o que sentiu emocionalmente. Apesar de ter estudado muito, minha intenção não é sentar no lugar de quem sabe. Vou deixar que as pessoas tirem as conclusões. Pouco importa meu julgamento pessoal. Importa mais essa sensação de a gente ter encontrado o processo que tanto queríamos: a redemocratização. E pensarmos como chegamos até aqui. Todo o processo teve uma intensidade muito grande, tudo foi e continua sendo muito violento de alguma maneira. Foi tóxico para a população. A gente precisa parar. Não adianta a gente se comportar sem nenhuma reflexão do que estamos construindo no dia a dia.
No filme, há um momento em que Dilma Rousseff destaca que “a mulher, quando assume posição de mando, é vista fora de seu papel”. Ela está comentando sobre ser vista como durona. Você já se sentiu assim?
Nunca. Sempre me senti muito confortável dirigindo. Nunca fui desrespeitada no set. Às vezes, parece que boto medo nas pessoas (risos). E sou uma pessoa muito acessível! Quando estou trabalhando, tenho a consciência plena de que, se eu não der acesso total a minha equipe, vou perder mais do que ganhar.
Seu próximo documentário, Feminino.com (título provisório), irá explorar a relação das religiões com as mulheres. Como será esse projeto?
É um estudo que estou fazendo há muito tempo, desde que li um livro chamado A Bíblia da Mulher, de Elizabeth Stanton. Nessa obra, ela separou da Bíblia todos os textos que mencionam as mulheres. Então, passei a trabalhar com essa ideia, estendendo-a a outras religiões que têm manuscritos, que foram elaborados em momentos da humanidade em que as mulheres não sabiam escrever e eram proibidas de toda e qualquer coisa.
No brasil, tudo sofre desmonte. É uma coisa muito delicada, porque um país não consegue sobreviver destruindo aquilo que havia sido construído, mas sim aprimorando e refletindo. Temos que parar de derrubar o que foi tão difícil de ser desenvolvido. É incompreensível que a gente se sabote desse jeito.
Carlota Joaquina, Princesa do Brazil é apontado como o filme que trouxe o público de volta para os cinemas para ver as produções nacionais. Esse longa-metragem retratava um período histórico com leveza e humor, mas ao mesmo tempo foi realizado em um momento de grande dificuldade para o cinema brasileiro. Passados mais de 25 anos, como Carlota Joaquina envelheceu para você?
Carlota não envelhece. É um filme que ainda é muito visto. É vendido até hoje (para exibições na TV, nos cinemas e em outros espaços). Os filmes históricos estão dentro de um recorte diferente. Eu continuaria fazendo Carlota do jeito que eu fiz. Quando estou dirigindo, sou obsessiva na construção. Da maneira que construí, era tudo no limite do que eu tinha. Não deixei nada que estava ao meu alcance de fora. Se poderia fazer melhor? Talvez sim, em outro momento. Mas, naquele momento, estava na mesa tudo o que eu tinha.
Qual foi a maior dificuldade que você teve ao realizar Carlota Joaquina?
Todas (risos). Era um projeto que não tinha dinheiro, que foi sendo feito à medida que eu ia mostrando o filme. O máximo que a gente conseguiu rodar direto foram duas semanas. Filmava tudo picadinho, semana a semana. Tudo era muito delicado. Mas conseguimos organizar de tal maneira que não perdemos ninguém da equipe ou elenco nesse processo. As pessoas continuavam dentro do filme, torcendo e se dedicando. Marco Nanini e Marieta Severo (protagonistas do longa), que tinham uma agenda para lá de ocupada, estavam sempre presentes, mesmo nas dificuldades. Talvez por isso a gente conseguiu superar todos os obstáculos e lançá-lo.
Hoje, as leis de fomento e os editais de financiamento do audiovisual estão sendo paralisados pelo atual governo. Você teme que o cinema brasileiro enfrente algo semelhante ao colapso dos anos 1990 – que foi refletido na realização de Carlota Joaquina?
Consigo ver claramente que, no Brasil, tudo sofre desmonte ou desestruturação. É uma coisa muito delicada, porque um país não consegue sobreviver destruindo aquilo que havia sido construído, mas sim aprimorando e refletindo. É muito mais difícil construir do que destruir. Destruir você enfia a marreta e pronto. Temos que parar de derrubar o que foi tão difícil de ser desenvolvido, em todos os cantos, independentemente de quem estiver no poder. É incompreensível isso, que a gente se sabote desse jeito. Isso não tem outro nome que não seja sabotagem. A arte inspira e provoca reflexões, mas quem muda a História são as leis e instituições. Precisamos olhar para o que temos ao nosso redor de uma forma mais madura e responsável, menos reativa e inconsequente.
Como você avalia a atual produção do cinema brasileiro? O que tem te chamado atenção?
Melhorou em muitos aspectos. Alguém pode falar “ah, tem filme isso ou aquilo”. O Brasil tem uma multiplicidade enorme, com uma grande quantidade de pessoas produzindo conteúdo audiovisual. E temos construído coisas muito interessantes, múltiplas, abrangentes, para tudo o que é gosto. Falta? Falta. Temos muito a fazer e a construir. Conseguimos criar conteúdo e oportunidade, por isso é importante que a gente tenha amadurecimento e consciência de que é preciso investir em uma política de Estado. Não interessa se você acha A e eu acho B, pouco interessa o que a gente pensa, o mundo é entupido de opiniões de pessoas que não entendem do que falam, o que importa é que o Estado tenha uma política permanente, que possibilite ao país ter uma produção contínua ao longo dos anos. A gente só vê continuidade dentro de um mandato. É tudo muito fechado num tempo, sem planejamento ou perspectiva de formação.
Você não sente que muito dessa produção atual seja fruto da semente plantada lá atrás, por exemplo, com filmes como Carlota Joaquina?
Tudo é uma construção. Cada um vai lá e põe o seu tijolo. Tenho muita alegria quando vejo os números que o cinema brasileiro faz, fico muito orgulhosa. E temos filmes com perfis muito diferentes. Há uma produção diversificada e com muita aceitação. Se a gente não se atrapalhar, temos muito a oferecer.
Você abandonou a atuação em definitivo para investir na carreira de diretora e gestora?
Eu adoro interpretar! Na verdade, tenho me dedicado a outras coisas. Mais do que interpretar, eu adoro aprender. Não me acho sabendo de tudo. As coisas que não sei me interessam muito. Talvez por isso eu tenha saído do Carlota para dirigir uma ópera filmada (o longa-metragem La Serva Padrona, de 1998), para a qual tive que estudar muito (risos).
Você já dirigiu óperas propriamente ditas, como Carmen (2001) e O Barbeiro de Sevilha (2003). O que te atrai no gênero?
Adoro dirigir ópera. Neste ano, tenho convites para dirigir três, duas que estão sendo compostas e uma nova versão de Carmen. Para mim, ópera é um presente. Me faz entrar quase em outra dimensão. Quando estou ali, ouvindo aquela música, aqueles cantores, aquela orquestra, é tão prazeroso.
Em agosto, morreu o ator Paulo José, de quem você foi companheira nos anos 1980. Como você recebeu essa notícia? Que legado Paulo deixou?
Paulo deixou vários legados. As três filhas que teve, que conheço bem. Bel, Ana e Clara são mulheres incríveis. Sem falar no ator que o Paulo era. Ele tinha uma quantidade de recursos, da comédia ao drama, que era muito impressionante. Sabido que só ele! Sabia Fernando Pessoa de cor, trechos de Erico Verissimo. Foi uma perda muito grande para todos nós da cultura brasileira. Mas a vida tem esse sentido. Paulo já estava preso dentro dele mesmo. Não estava mais vivendo com a potência que ele tinha e que teve durante a vida inteira (o ator sofria de Parkinson). De alguma maneira, sofri muito porque vou sentir saudades dele e de sua voz, mas tenho dentro de mim as memórias tão claras de tudo que vivemos. A gente sempre se deu muito bem, mesmo depois que nos separamos. Minha relação com as filhas é de um amor profundo, fico até emocionada... É muito difícil a relação com a morte. Já tive tantas perdas. Não tenho pai, não tenho mãe, perdi minha melhor amiga.
Despedidas acumuladas.
Ao longo da vida, você vai sofrendo perdas e, de alguma maneira, você vai revendo tudo o que viveu. Talvez a coisa que mais me doa seja a memória do som, porque a memória de imagem de tudo que vivi é tão nítida dentro de mim que, se eu fechar o olho, quase consigo viajar para aquele momento. O som, a voz das pessoas, isso não. Isso me dá uma tristeza, sabe? Minha mãe estava doente, e, no dia que me dei conta de que, quando ela morresse, eu nunca mais escutaria sua voz, aquilo foi de uma dor imensa no meu coração. Eu estava na ioga e comecei a chorar imediatamente. Esse pensamento triscou a minha mente. E, no mesmo dia, minha mãe faleceu.
Que história.
Tinha marcado com as minhas tias e a minha irmã de irmos a CTI ver minha mãe. Tínhamos um tempo, das 14h às 15h. Estávamos lá eu e duas tias, minha irmã estava entrando, quando os aparelhos começaram a apitar. Até, de alguma maneira, incluí um pouco isso em 8 Presidentes 1 Juramento. Quando tem a quantidade de operações que o Tancredo Neves sofreu em 38 dias, é isso: você vai vendo um coração parando e um bip acelerando, aquela máquina fora de controle...