Ignácio de Loyola Brandão leva na brincadeira quando o chamam de “Rei da Distopia”. Mas essa coroa lhe cai bem. Publicado há 40 anos, o profético Não Verás País Nenhum, um de seus principais livros, soa tão atual que ganhou uma edição comemorativa, recém-lançada pela editora Global. E ele segue fiel a essa forma particular de expressão artística. Aos 85 anos, homenageado pelo Prêmio Jabuti como a personalidade literária do ano (a láurea será entregue na cerimônia de 25/11), acaba de escrever um novo romance distópico que vislumbra um Brasil arrasado, no qual o futuro confunde-se com um passado remoto, incivilizado. Em conversa realizada por telefone, uma semana antes de viajar de São Paulo a Porto Alegre para participar do projeto Diálogos Contemporâneos, ele dá detalhes desse trabalho ainda inédito, chama a atenção para os absurdos do cotidiano brasileiro e exalta as novas gerações de ficcionistas do país.
Qual o significado de ser a personalidade literária de um ano como 2021?
É uma enorme satisfação. Minha amiga Lygia Fagundes Telles costuma repetir: “Eu quero as glórias quentes”. Ou seja, “me deem prêmios em vida. Depois que eu morrer, acabou”. É isso: depois que a gente está morto, não pode mais usufruir do privilégio das homenagens. Para o homenageado, não faz mais sentido. Pena que a entrega não será presencial (a cerimônia será totalmente online), porque eu queria ouvir as palmas ao vivo, ficaria ainda mais comovido.
Um de seus livros mais celebrados, Não Verás País Nenhum (1981), que acabou de ter uma edição comemorativa de 40 anos, é visionário em diversos aspectos da realidade futura (distópica) que vislumbrava, do fim das florestas à mediocridade das autoridades. Como o senhor anteviu tantos aspectos da realidade?
Agora está todo mundo me dizendo “você é um vidente”, mas na verdade o que eu faço é só olhar pela janela. Certa vez, quando trabalhava no jornal Última Hora, me aproximei de um colega mais velho, que raramente aparecia na redação em São Paulo, mas que, naquele dia, estava na cidade: Nelson Rodrigues. Fiquei perto, observando-o escrever, até que ele falou algo assim: “O que está olhando, jovem?”. Respondi que era um admirador, que ficava impressionado com o fato de ele escrever um conto por dia, sempre bom (a coluna A Vida Como Ela É). O que ele me respondeu: “Basta olhar pela janela. Olha lá fora. Está tudo aí”.
Não Verás País Nenhum já podia ser visto pela janela na virada dos anos 1970 para os 1980?
Escrevi esse livro desde meados dos anos 1970. Era uma época muito ruim, de ditadura. Eu olhava pela janela e achava tudo horrível, tudo ainda pior do que descrevo. Tanto que chegou um momento em que parei. Estava me fazendo mal escrever aquilo, pensei que ninguém leria algo tão para baixo. Dei um tempo. E, quando voltei, amenizei algumas coisas. Tornei a narrativa mais irônica, satírica – o que a tornou suportável para mim. Eu não tinha expectativa nenhuma, achei que seria um fracasso completo. Mas, em uma semana, o livro já estava esgotado. Foi muito surpreendente, na hora pensei: “Será que todo mundo é masoquista?”. Se já não tinha ficado claro antes ali percebi que realmente as pessoas sentiam a mesma desilusão com o país.
O que especificamente do dia a dia o inspira na criação de uma realidade distópica?
Para esse livro foi o seguinte. Eu trabalhava na editora Abril e, de tão impressionado com algumas notícias com as quais deparava – devastação da natureza, doenças estranhas aparecendo, até um episódio de neve no deserto do Saara (em 1979, e que se repetiu em 2017, 2018 e 2021) –, recortei-as e criei uma coleção delas. Somei 4 mil recortes em uns dois anos. Senti que alguma coisa estava acontecendo no mundo. Mas o episódio que serviu de ponto de partida para Não Verás País Nenhum, a ideia que uniu tudo isso, foi o que ocorreu no quarteirão em que eu morava em São Paulo, quando um ipê amarelo morreu. Todos nós, vizinhos, gostávamos daquela árvore. Então investigamos, conseguimos que um botânico a examinasse. E ele concluiu que ela foi envenenada. Fomos conversar com a mulher que morava em frente. Ela disse o seguinte ao confirmar que havia envenenado o ipê: “Essa maldita árvore sempre sujou minha calçada com suas flores desgraçadas”. Impressionante, não? Jamais esqueci essa frase. Um tempo antes, quando eu estava no trabalho, com uma caneta esferográfica, comecei a rabiscar minha mão. Desenhei um círculo e o pintei. E aí passou por mim o (dramaturgo e jornalista) Jorge Andrade, que perguntou: “Você tem um furo na mão?”. Ele estava sério. Resolvi manter o mesmo tom, respondi que sim. E aí, brincando, ele falou: “Então esconda isso, porque na Abril estão demitindo quem tem furo na mão”. Achei divertido, rimos, mas aquilo me fez adentrar em uma ideia de distopia. Cheguei em casa, e minha mulher logo perguntou: “O que é isso na sua mão?”. Respondi que era um furo. E ela também entrou na brincadeira. Disse: “Ih, Ignácio, estamos perdidos: quem tem furo na mão está sendo despejado do prédio”. Perguntei por quê. Ela respondeu: “Quem tem furo na mão é uma pessoa diferente. E os diferentes assustam os normais”.
Se eu escrevesse 'A Metamorfose', hoje, seria o seguinte: 'Naquela noite, após sonhos atribulados, Jair Bolsonaro acordou transformado num repulsivo inseto'.
Isso deu origem ao conto O Homem do Furo na Mão, que foi estendido e se tornou Não Verás País Nenhum.
Sim. Um conto de 10 páginas, que comecei a escrever dois dias depois. Quando escrevo algo e o publico, não volto àquilo. Mas daquela vez foi diferente. Logo após a publicação desse conto veio o episódio do envenenamento do ipê amarelo, que me fez voltar a essa ideia. Pensei que, em um mundo distópico, sem árvores, em que as flores incomodam as pessoas normais, eu poderia caracterizar um diferente como um homem com um furo na mão.
A fantasia é uma forma de refletir sobre uma realidade que, de tão complexa, ou absurda, não cabe no realismo mais naturalista?
O absurdo faz parte da realidade. Não esqueço o que uma professora falou para mim no colégio: “Meu filho, a realidade é mais absurda do que o próprio absurdo”. Eu já tinha propensão a escrever sobre a realidade recorrendo ao absurdo nas redações. Quando tinha nove anos, escrevi um texto sobre uma girafa com um pescoço de 200 metros. Ela destruía os fios, batia por tudo na cidade. Ganhei nota 10. Um colega que havia ganho 5 por um texto sobre a mãe, lavadeira, reclamou. Disse que havia escrito algo real, enquanto eu havia “mentido”. A professora respondeu: “Ele não mentiu. Ele inventou”. Nós tínhamos nove anos! Logo em seguida li Alice no País das Maravilhas (1865). E comecei a entender, ali, que a criação podia ser do jeito que a gente quisesse. A partir de então, sempre tive esse pé no fantástico. Quando estreei na literatura, com Zero (1974), as pessoas vinham me perguntar o que era aquilo sobre o que eu estava escrevendo, aquele casal vivendo em meio às aberrações. Para mim, aquilo ali era a ditadura. Também foi marcante, para mim, ter lido A Metamorfose (1915), do Kafka. Foi no colégio, ainda. Recomendação de um professor de Português. Primeiro pensei que a narrativa que se inicia com o protagonista acordando, “após sonhos atribulados, transformado em um gigantesco inseto”, era uma loucura, algo impossível. Falei: “Isso aqui é doido, não pode ser”. O professor: “Pode, sim”. É claro que pode. Uma prova é o nosso presidente. Se eu escrevesse A Metamorfose, hoje, seria o seguinte: “Naquela noite, após sonhos atribulados, Jair Bolsonaro acordou transformado num repulsivo inseto”.
O senhor lançou recentemente Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela. É uma continuação de Não Verás País Nenhum?
Sim. Estamos vivendo de novo uma situação semelhante à da ditadura. Tudo o que está acontecendo no país é o mais puro absurdo. E a gente vai levando, em meio a isso. Quando escrevi essa continuação, lembrava-me constantemente de um trecho de Os Sertões (1902), em que Euclides da Cunha descreve a vida em Canudos já no final do conflito, mais ou menos de volta à rotina, mas ainda cercada pelos canhões e pela ameaçadora presença militar. A frase: “E então Canudos vivia o normal dentro da anormalidade”. É o que ocorre hoje. Estamos vivendo uma rotina normal dentro de um contexto de anormalidade. O absurdo nos cerca, por mais que sigamos o nosso dia a dia normalmente.
Sua fala, no evento Diálogos Contemporâneos, será sobre a representação das grandes pestes na literatura. Em um exercício de futurologia, como a ficção vai retratar o período atual de pandemia?
Olha, posso falar sobre a minha ficção – que está quase pronta. Escrevi um livro durante a pandemia inspirado por essa loucura que vivemos, potencializada pela infâmia que foi a forma como o governo a tratou. No meu livro, a pandemia está durando sete anos e sete meses, e no Brasil há 214 milhões de mortos. O país foi reduzido a um imenso campo no qual se acumulam túmulos, túmulos, túmulos. Em um pequeno espaço de São Paulo vivem dois personagens, que vão levando suas vidas, se amando e brigando, até que percebem que estão absolutamente sós e que o tempo em que vivem voltou para trás. O tempo foi voltando. Abordo a perseguição à cultura, o apocalipse da educação e do meio ambiente, enfim, essa série atual de absurdos. Até título já tem. Na verdade, tem duas opções: Deus, Por que Você Não Diz o que Quer de Nós?, uma frase que tirei de um texto da Simone De Beauvoir, e Como Chegar ao Fundo do Poço Sem Perder de Vista as Estrelas, que busquei na obra do escritor amazonense Aldísio Filgueiras. O primeiro é mais desesperançoso, e o segundo, menos.
O livro é esperançoso ou desesperançoso?
Eu diria que é esperançoso. Ele termina na Idade da Pedra, mas um grupo está vindo de volta para o futuro, acompanhado de dinossauros, para incentivar a viagem no tempo – uma travessia que será melhor se tivermos aprendido alguma coisa do período. Espero que a gente aprenda.
Estamos vivendo episódios de censura e perseguição desde pelo menos a exposição Queermuseu (2017). Como alguém que sofreu com isso, sendo inclusive impedido de publicar Zero, vê essa situação?
Tenho medo do que está acontecendo. Um medo crescente, que já se transformou em pavor. Porque os episódios se acumulam. Tivemos um secretário da Cultura, Roberto Alvim, fazendo um manifesto nazista (em janeiro de 2020). Um goebbelsinho. O atual secretário, Mário Frias, dirige a Cultura do país com um revólver em cima da mesa. A vilanização dos artistas e o fim do investimento público na arte mostram que a intenção do governo é de fato, se puder, voltar ao que vivemos na ditadura. Isso é terrível, absurdo. É, no fundo, uma resposta ao que começou com o governo Lula, que é uma divisão do país entre “nós” e “eles”: ou a pessoa está do “nosso” lado ou é malvista. Mas é uma resposta muito forte, traz um aparato que perpassa todas as instâncias do poder, os ministérios da Educação, do Meio Ambiente, a Procuradoria-Geral da República. Foi tudo montado para a volta do obscurantismo.
Eventos culturais enfrentam dificuldades de sobrevivência, pela falta de verbas e também pela pandemia. O senhor tem relação especial com vários, inclusive no Rio Grande do Sul. De onde vem essa conexão com o Estado?
Acho que tem muito a ver com a Jornada de Passo Fundo, com a qual colaborei por mais de 30 anos, desde que, com muito orgulho, mesmo sendo paulista, fui eleito pelos gaúchos para substituir o grande Josué Guimarães como mediador. Na verdade, acho que isso começou por conta da Última Hora, onde trabalhei por 10 anos e que me levava muito a Porto Alegre, para encontros, entrevistas etc. Fiz uma grande amizade com Tarso de Castro, me apaixonei por uma gaúcha, depois por outra. Em 1959, eu escrevia críticas e era muito amigo do Fernando de Barros, que produziu o Festival de Cinema de Porto Alegre. Estive presente, não esqueço das noites no (bar) Treviso, a volta a pé para o hotel junto a Oscarito e Grande Otelo. Nos anos 1970, houve a Feira Literária de Bento Gonçalves, de grandes memórias, também. Mas a Jornada de Passo Fundo é especial. Nunca vi no mundo algo tão impressionante: 6 mil pessoas reunidas para mesas sobre literatura. Pena que, após a mudança na coordenação, com a saída da Tânia (Rösing, em 2015), o evento tenha tido dificuldades para prosseguir.
Nós sofríamos com a censura à imprensa, e a literatura era uma forma de expressão para driblá-la. Quando veio a democratização, parece-me que houve uma arrefecida nas coisas. E agora a gente vê, novamente, uma literatura mais combativa. Há muitos autores bons, principalmente mulheres. É uma geração que voltou à realidade. Pôs o pé no país em que vive.
Como o senhor vê o surgimento de uma geração de escritores que têm obtido grande reconhecimento ao abordar temas até então de menos destaque na literatura nacional, como o racismo?
É uma notícia boa. Minha impressão é de que a última grande geração da literatura brasileira havia sido a minha, ou seja, a dos autores que surgiram na ditadura militar. Antes, os grandes escritores eram funcionários públicos, trabalhavam em autarquias, no governo etc. Uma das características da geração de 1970 é que vínhamos dos jornais. Nossa escola foi a mídia, incluindo a televisão e a publicidade. Nós sofríamos com a censura à imprensa, e a literatura era uma forma de expressão para driblá-la. João Ubaldo (Ribeiro), Raduan (Nassar), Antônio Torres, todos tínhamos um inimigo em comum. Quando veio a democratização, parece-me que houve uma arrefecida nas coisas. Isso é curioso. E agora a gente vê, novamente, uma literatura mais combativa, com Paulo Scott, Djamila Ribeiro, Eliane Brum, entre outros. Há muitos autores bons, principalmente mulheres. É isso o que mais me chama a atenção: a presença feminina. E é uma geração que voltou à realidade. Pôs o pé no país em que vive.
Sumiu a ideia do inimigo em comum ou este voltou?
Hoje há muitos inimigos. Não é mais um só. Há muita coisa a combater. Havia muitos antes, mas nós não percebíamos. Talvez seja isso. A geração atual de escritores percebe melhor os inimigos.
Sua geração abordou vários problemas do país.
A questão racial nem tanto. Veja que antes tínhamos Carolina Maria de Jesus, praticamente só ela. Hoje surge um atrás do outro abordando essa questão. Inclusive as redescobertas, basta observar o que aconteceu com a Conceição Evaristo: ela de fato ganhou os holofotes bem mais tarde do que deveria ter ganho.
O próprio mercado literário ganhou um impulso recentemente, sobretudo com os e-books. Dá para ser otimista?
Sim. Com a pandemia, as vendas de livros cresceram no Brasil. Ótimo. O mercado estava sufocado pela ambição desmedida das grandes livrarias. Elas afundaram. Cresceram, mataram as pequenas, mas foram traídas pela própria ambição. O resultado foi uma reinvenção do mercado a partir do ressurgimento das pequenas livrarias. O impacto da pandemia é geral. Parece que nada mais será igual ao que era antes. Para onde você olha há mudanças significativas. Não sei como vamos viver depois. Como o mercado literário, teremos de recomeçar, reaprendendo a partir do básico.
Diálogos Contemporâneos
- O projeto literário Diálogos Contemporâneos está percorrendo o país com discussões que envolvem diversos autores brasileiros. Em Porto Alegre, serão duas noites por semana ao longo do mês de novembro, no Theatro São Pedro.
- Na primeira semana, Elisa Lucinda falará, quarta-feira (3), sobre empatia e preconceito, com mediação de Ricardo Silvestrin, e, na quinta (4), Ignácio de Loyola Brandão abordará pestes e distopias, com mediação de Luiz Antônio de Assis Brasil.
- Os demais convidados são Xico Sá (dia 9), Sérgio Vaz (10), Fabrício Carpinejar (16), Renato Janine Ribeiro (17), Mário Prata (23), Tereza Cruvinel (24), Mary Del Priore (29) e Fernando Morais (30).
- Os encontros têm entrada gratuita. Os ingressos serão distribuídos a partir das 18h de cada data do projeto, por ordem de chegada, e limitados a apenas um por pessoa.