Na esteira da modernidade, um dos autores que mais e melhor registraram Porto Alegre na literatura com seus personagens errantes, sem passado nem futuro, importando apenas o presente, é João Gilberto Noll. Noll reflete sobre o sujeito fragmentado, marca dos tempos contemporâneos. Em Rastros de Verão (1986), por exemplo, aparecem locais como “o velho Mercado que beira a Praça Quinze”, em uma narrativa que aproxima o leitor dos lugares descritos, como no trecho em que o autor escreve “ele morava logo ali na Rua Riachuelo”, ou em “vi uma das torres da Igreja da Conceição” (localizada na Avenida Independência). Flávio Loureiro Chaves observa que a quase totalidade de seus personagens é desprovida de sentido. São pessoas tomadas por um sentimento de solidão.
Se Luiz Antônio de Assis Brasil ficcionalizou o que seria a vida do dramaturgo Qorpo Santo (1829-1883) em Cães da Província (1988), descrevendo as andanças do dramaturgo pela cidade em seu tempo, Charles Kiefer inseriu um serial killer na paisagem urbana em O Escorpião da Sexta-Feira (2002). Nessa obra, Antônio, um ex-seminarista, deixa Pau d’Arco (local recorrente na obra do escritor) para trabalhar na Cúria Metropolitana. Porém, na Capital, após uma desilusão amorosa, decide abandonar a vida religiosa e passa a percorrer bares e boates da Zona Norte, especialmente na Avenida Farrapos, para caçar prostitutas. Ele as leva ao seu apartamento, na Duque de Caxias, onde um escorpião venenoso acaba com a vida das mulheres.
As ruas porto-alegrenses são recorrentes na obra de Daniel Galera, de Até o Dia em que o Cão Morreu (2003), passando por Mãos de Cavalo (2006), até Meia-noite e Vinte (2016). Em Mãos de Cavalo, aparece a então Terceira Perimetral, recém concluída. "E assim, rapidamente, a avenida Teresópolis se transforma na Avenida Nonoai que se transforma na Avenida Eduardo Prado..." Nesse último, uma Porto Alegre escaldante é apresentada em trechos como aquele que descreve “o leito do Dilúvio (...) reduzido a um riacho serpenteando entre bancos de areia expostos ao sol”.
— Existem várias Porto Alegres dentro de Porto Alegre, ainda mais em termos literários — comenta o doutor em Escrita Criativa Gustavo Melo Czekster.
No caso de livros como Clarissa, Camilo Mortágua, Marrom e Amarelo (de Paulo Scott, 2019) e Os Supridores (de José Falero, 2021), a cidade aparece como algo muito maior do que um simples cenário ou ambientação da narrativa, mas como um espaço urbano que dialoga com as obras e apresenta novas visões para os conflitos que elas apresentam, mostrando a influência social da cidade e de seus habitantes nos destinos e dramas humanos retratados.
Os Supridores traz o pessoal “das quebrada” para o centro da narrativa. Com uma linguagem coloquial, repleta de gírias, o primeiro romance de Falero é protagonizado por Pedro e Marques, amigos que vivem na Lomba do Pinheiro e trabalham como repositores de mercadorias (os supridores do título) em uma rede de supermercados. "Não que a Lomba do Pinheiro fosse um paraíso... abandonada à própria sorte, assim tinha construído em torno de si uma assustadora fama de terra sem lei", descreve.
Politizado, Pedro alerta o amigo de que são explorados de forma sistemática pelo patrão. Ele quer uma vida confortável, mas não enxerga saída honesta para atingir esse objetivo. Então, convence o amigo a venderem maconha. A ascensão é rápida, mas repleta de percalços. Algumas passagens são bem-humoradas, outras irônicas. Todas possuem um olhar crítico para a desigualdade social.
Para Luís Augusto Fischer, a forma como Porto Alegre é descrita em obras como Os Supridores, Marrom e Amarelo e O Avesso da Pele (de Jeferson Tenório, 2020) joga luz sob a força da cultura produzida na periferia. Segundo Fischer, são livros como esses que fazem com que as comunidades saiam das páginas da crônica policial e dos estudos sociológicos ou antropológicos para virar arte. "Talvez tu tivesse presunto pra botar no pão, no café da manhã, e eu, só aquela mortadela chinelona", retrata.
No caso de Falero, trata-se de um depoimento “de dentro”, de alguém que conhece o que é viver na periferia, observa o professor:
— Embora somente isso não garanta a qualidade que o livro dele de fato tem, faz diferença ao apresentar a dinâmica do cotidiano.
Czekster acrescenta que essas obras não só iluminam essa parte da cidade como a incluem no núcleo urbano, de onde ela sempre havia sido mantida distante:
— Em algumas obras nas quais Porto Alegre foi retratada ou surgiu como espaço físico onde se desenvolvem os conflitos da narrativa, a periferia aparecia de forma limitada. Mostrava-se somente um lado da cidade, geralmente os bairros centrais ou os pontos onde estão monumentos ou elementos da vida boêmia da classe média.
Fischer lembra que “corredor de supermercado e tráfico de drogas não têm nacionalidade”, o que significa dizer que o livro de Falero é legível em qualquer parte do mundo.
— No entanto, quando Porto Alegre aparece, é com força, em lugares que o leitor local logo identifica — sublinha, citando a Vila Planetário e o trecho “bom, cês sabe, eu moro na Planetário... e a Planetário fica pertinho do Palácio da Polícia, tá ligado?”.
Tanto Marrom e Amarelo quanto O Avesso da Pele são livros que abordam o racismo estrutural presente no cotidiano de Porto Alegre. O primeiro narra a história dos irmãos Federico e Lourenço, que enfrentam realidades distintas em função da cor da pele. A narrativa está centralizada em parte no bairro Partenon, mas muitos outros locais são citados, do “salão de bilhar da esquina da Barão do Amazonas” ao excerto em que o narrador lista “as reivindicações das comunidades aqui da região, da Santo Antônio até a Lomba do Pinheiro, Aparício, Jardim Carvalho, Agronomia, Tuca”. "Subi a Garibaldi, peguei a Cristóvão Colombo, caminhei até a Doutor Barros Cassal, fui até a esquina com a Independência", detalha.
Já em O Avesso da Pele, terceiro romance do carioca radicado em Porto Alegre Jeferson Tenório, o narrador, um estudante de arquitetura de 22 anos, relembra a vida do pai assassinado por policiais em uma rua da capital gaúcha. As paisagens descritas levam o leitor a imaginar locais do dia a dia de uma sociedade que vivencia o racismo, e a lembrança de detalhes da casa do pai, incluindo os objetos pessoais e familiares, não deixam o episódio da morte ser apagado da memória do protagonista.
É uma outra forma de apresentar a cidade que, em sua trajetória de 250 anos a serem completados em março, tem seu lugar imortalizado na literatura, seja funcionando apenas como elemento ficcional, seja como ponto central de alguma narrativa. Da realidade à aparência, ou vice-versa.