Em 1897, o romance Estricnina, escrito a seis mãos por Mário Totta, José Carlos de Souza Lobo e José Paulino de Azurenha, registra a cidade em plena efervescência da modernização, em um processo no qual as carroças começavam a dar lugar aos bondes. Porto Alegre, no livro, serve de cenário para o desfecho trágico do casal Necco e Chiquita.
Diante da censura, do preconceito e da intolerância, o amor entre uma prostituta e um rapaz “de família” era inconcebível. Logo na abertura, os dois saem do Theatro São Pedro, descem a Rua da Ladeira (atual General Câmara), tomam a Senhor dos Passos até a Rua da Praia (hoje Rua dos Andradas). Nesse trajeto, o Centro é descrito de forma colorida e barulhenta. Há o vaivém dos transeuntes, o apito dos condutores dos bondes. No entorno da Praça da Alfândega, mulheres elegantes transitam entre trabalhadores a caminho da estiva, no porto. Dali, dirigem-se ao Menino Deus, bairro apresentado de forma bucólica.
O Centro Histórico tem especial relevância no primeiro romance de Erico Verissimo, Clarissa (1933). Nesse livro, a jovem personagem-título de 13 anos vinda do Interior sonha em ser professora. É nas ruas da Capital que ela, encantada com o que vê, vive suas aventuras. Clarissa se estabelece na pensão da tia Eufrasina, local que representa um microcosmo da cidade, uma vez que abriga diferentes tipos sociais, cada um com suas idiossincrasias.
A narrativa carrega uma forte marca visual e sonora – as descrições dos locais onde ocorrem as ações. Somos envolvidos pela doçura da protagonista, seus repentes de pré-adolescente, seus medos e sonhos. Erico faz, nos seus romances urbanos, segundo escreve Flávio Loureiro Chaves em Matéria e Invenção, uma descrição cuidadosa de Porto Alegre. “Erico captou como poucos a transição da cidade”, escreve, delineando os momentos de sua vida social.
Quatro anos depois, em 1937, a alegria dá lugar ao sombrio. Dyonélio Machado publica o romance Os Ratos, obra na qual o dinheiro se torna a síntese das relações sociais. Naziazeno, funcionário público endividado e cobrado para pagar a dívida com o leiteiro, é o retrato da miséria urbana. O personagem perambula pelas ruas em busca de dinheiro. Pelo caminho não vê ninguém, as casas todas fechadas. Decide, então, ir ao mercado. No trajeto, observa a escassez de automóveis e o silêncio. Uma cena que poderia ser considerada absurda, mas que, comparada ao isolamento em meio à pandemia, se assemelhou à realidade tantas décadas depois.
Camilo Mortágua (1980), o flâneur às avessas criado por Josué Guimarães, narra 70 anos da história do Rio Grande do Sul. Ao contar a trajetória rememorada do icônico personagem, Josué entrelaça fatos marcantes do começo do século 20 aos costumes de uma então nova Porto Alegre. Lugares como a Cidade Baixa, Avenida Independência, a Redenção, a Faculdade de Direito da Universidade Federal do RS (UFRGS), a Santa Casa de Misericórdia e a Igreja da Conceição aparecem no livro. "Quando chegou a noite, depois do jantar, Camilo vestiu a sua melhor roupa, mandou preparar a sua aranha e saiu. Rumou para a Cidade Baixa, Rua Venezianos..."
Geralmente caracterizado como uma figura despreocupada financeiramente e com tempo para perambular pelas ruas para capturar o espetáculo do cotidiano, o flâneur, nessa obra, observa as transformações pelas quais Porto Alegre passa – nas quais ele próprio se vê inserido.
Professor de Literatura na UFRGS, Luís Augusto Fischer arrisca dizer que Camilo Mortágua é o primeiro romance a de fato incorporar Porto Alegre em sua narrativa:
— Ali estão os bairros, as diferenças sociais marcadas pela geografia. A cidade em sua universalidade, poderíamos dizer com certa pompa, muito mais do que n’A Divina Pastora e em Clarissa.
Conforme Antônio Hohlfeldt, na obra Literatura e Vida Social, Camilo Mortágua, o personagem, acaba sucumbindo em confronto com o mundo real. Ex-estancieiro, ele se muda para a cidade grande e nela se perde — um movimento representativo da urbanização e da migração que marcaram o Estado ao longo do século 20. É um recorte de um signo latente – a derrocada de muitos fazendeiros.
Camilo Mortágua revê sua trajetória sempre que vai ao cinema, para assistir não ao filme em cartaz, mas ao filme de sua vida. Ele até idealiza a volta de seus seres amados, mas acaba morto casualmente, analisa Flávio Loureiro Chaves.
Já O Exército de um Homem Só (1973), um dos livros de Moacyr Scliar a reinventar, na ficção, ruas e bairros porto-alegrenses, conta a história do visionário Mayer Guinzburg, o Capitão Birobidjan. Espécie de Dom Quixote judeu, o personagem chega da Rússia em 1917. Em Porto Alegre, almeja criar, em sua utopia socialista, uma colônia coletiva de judeus. Ele transita do Centro Histórico ao Beco do Salso, passando, é claro, pelo Bom Fim, símbolo da colonização judaica na cidade e bairro retratado, entre outras obras, em A Guerra no Bom Fim (1972). "Quando a turma viu, os tanques vinham subindo a Rua Fernandes Vieira. Atrás avançavam as colunas de infantes, com lança-chamas."