Poucos brasileiros conhecem tão bem o tema da desigualdade social quanto Ricardo Paes de Barros. O professor de 66 anos transpôs os portões da academia para aplicar seu conhecimento na área na formulação de políticas públicas. Combina a frieza do engenheiro eletrônico, mestre em estatística, com a sensibilidade social que permite olhar a pobreza para além dos números – e das cifras necessárias para enfrentá-la. Defende, por exemplo, os Centros de Referência em Assistência Social (Cras) como os mais capazes de identificar quem realmente precisa dos programas de renda mínima. Doutor em Economia, professor no Insper, coordenador da Cátedra Instituto Ayrton Senna e membro do Conselho Acadêmico do Livres, ele tem se debruçado a estudar os efeitos da pandemia no aprofundamento das desigualdades, depois de quase dois anos de escolas fechadas ou de ensino híbrido. Nesta entrevista, realizada na última segunda-feira (4/10), avalia as perspectivas de futuro para as gerações afetadas pela crise sanitária e os erros e acertos do Auxílio Brasil, que deverá substituir o Bolsa-Família.
Um relatório recente da Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que a pandemia deve agravar as desigualdades sociais no Brasil e provocar retrocessos em várias áreas. Na educação, particularmente, já é possível avaliar a extensão dos prejuízos e apontar saídas?
Todos os estudos feitos até hoje no mundo apontam que os impactos da pandemia sobre a educação são enormes, e acho que a gente subestimou essa magnitude. Esse impacto é diretamente proporcional a quantos dias as escolas ficaram com o atendimento limitado, seja fechadas ou mesmo no ensino híbrido. O Brasil é um dos países que passaram mais tempo com as escolas fechadas e com um ensino plenamente remoto, e isso tem um impacto gigantesco sobre o aprendizado médio e sobre a desigualdade, porque o ensino remoto passa a ser ainda mais dependente do ambiente familiar. Depende da disponibilidade de equipamentos, de conexão eletrônica, de um espaço adequado, com tranquilidade, iluminação e isolamento acústico para a criança poder se concentrar e estudar. Todas as estimativas apontam que a perda é muito grande e muito desigual.
Se mesmo nas escolas privadas houve perdas pela dificuldade de adaptação ao ensino remoto, nas públicas o problema foi agravado pela falta de estrutura, de equipamentos e de treinamento dos professores. Quanto tempo será necessário para recuperar esses dois anos perdidos?
Se não fizermos nada, essa perda não vai se recuperar naturalmente. Tem dois grupos com os quais devemos nos preocupar, o que terminou o Ensino Médio no ano passado e o que está terminando neste ano. Eles estarão fora do sistema educacional, será preciso implementar outras estratégias para recuperar as perdas. Para se ter uma ideia, a perda para quem vai terminar o Ensino Médio neste ano é equivalente a quase tudo o que ele iria aprender durante todo o Ensino Médio. Ou seja, ele vai saber o que sabia quando concluiu o Fundamental, apenas isso. Ao ficar fora da escola, o aluno esquece várias coisas que havia aprendido e perde a capacidade de aprender mais. E, na volta, tem mais dificuldade de se envolver, porque perdeu o passo. A recuperação vai requerer muita perseverança e resiliência dos estudantes e do sistema educacional. Imagine um paciente que quebrou a perna. A recuperação dele é plenamente possível, mas requer um enorme esforço e uma quantidade de tempo em um programa especial. Estamos diante de uma situação em que a política educacional tradicional vai precisar de um esforço extra por muitos anos.
Como quantificar esse prejuízo no longo prazo?
A perda de renda dos trabalhadores no Brasil em 2020 foi em torno de R$ 220 milhões, e o auxílio emergencial do mesmo ano foi de R$ 230 milhões. Ele não chegou em todo mundo que deveria chegar, poderia ter sido feito de maneira muito melhor, mas, em termos globais agregados, é igual à perda dos trabalhadores em 2020. Na educação, a gente estima que a perda, se não for corrigida, representa, na renda futura dessa geração, R$ 700 milhões. Foram 35 milhões de estudantes sem aula praticamente o ano inteiro. O custo da pandemia incidiu bastante sobre os trabalhadores, mas o impacto sobre crianças e adolescentes é muito maior. Se uma criança que seria alfabetizada neste ano não o foi, o custo para a vida dela é gigantesco.
O custo da pandemia incidiu bastante sobre os trabalhadores, mas o impacto sobre crianças e adolescentes é muito maior. Se uma criança que seria alfabetizada neste ano não o foi, o custo para a vida dela é gigantesco.
A pandemia afetou economicamente o Brasil e o mundo. Embora se trate de um evento raro, o país poderia ter tomado providências diferentes para proteger os mais pobres?
Talvez o Brasil esteja transformando em algo crônico o que era para ser mais episódico. Como em nenhum momento a gente fez um distanciamento social de altíssima intensidade, não conseguimos baixar o grau de contaminação. Para a economia brasileira, seria muito melhor se a gente tivesse dado uma parada brusca de 21 dias, para depois tratar de uma pandemia em outro patamar, muito mais controlável. A melhor estratégia seria algo parecido com o auxílio emergencial, só que muito mais focalizado. Tivemos um programa mais caro do que precisava, e isso é um problema porque foi feito com aumento da dívida pública, que vai recair sobre nossas crianças. Acho que a gente gastou dinheiro demais para fazer um auxílio que não foi permanente. Precisávamos de um benefício mais focalizado, e para isso precisaria de muita colaboração das comunidades. Temos o sistema dos Centros de Referência da Assistência Social (Cras), a sociedade civil e as instituições comunitárias capazes de fazer isso. Precisávamos de um programa generoso, como o auxílio emergencial, mas mais duradouro é melhor focalizado, com muito mais apoio dos agentes locais.
Neste momento, o governo discute uma mudança no Bolsa-Família, chamado de Auxílio Brasil. Como deveria ser o auxílio permanente para as pessoas que vivem na pobreza?
O Auxílio Brasil, no seu primeiro artigo, descreve vários princípios corretos, mas que não estão implementados ao texto. Não há saída para a pobreza sem uma estreita e produtiva cooperação intergovernamental. A vacina contra a covid-19, por exemplo, só foi um sucesso porque conseguimos orquestrar governo federal, estadual, municipal e comunidade. O programa de combate à pobreza precisa dessa integração. Quem entende de pobre é a comunidade, mas quem tem o dinheiro é o governo federal.
De que forma a comunidade pode mostrar aos governos quem são os pobres que necessitam de auxílio?
Na hora em que você vai ver como os benefícios vão ser dados no Auxílio Brasil, percebe, por exemplo, que no benefício que visa a garantir creche para as famílias pobres, o governo federal quer dar um subsídio para o setor privado. Sou plenamente a favor de que o setor privado seja remunerado para oferecer essas vagas, mas isso tem de ser coordenado pelas secretarias municipais de Educação, e não pelo governo federal. Tem de se entender o seguinte: não há saída para a pobreza onde o pobre é anônimo. Precisa ter um agente ali ao lado dele para entender qual a razão da pobreza dele. Não existe solução para a pobreza que não seja profundamente local, em que eu saiba o que cada um precisa e tenha o atendimento VIP de dar tudo o que ele precisa. Outra coisa importante, que foi menos privilegiada no Bolsa Família, é a questão dos incentivos. O Auxílio Brasil chama atenção para isso, mas traz muita coisa errada. Se quero estimular o jovem a concluir a educação básica, a ideia de expandir o benefício até os 21 anos é ótima, mas não pode tirar o benefício de quem conclui o Ensino Médio.
Seria o caso de oferecer um incentivo específico para que esse estudante possa se inserir no mercado de trabalho?
Isso. Mas o programa só dá o benefício para o jovem que não concluiu o Ensino Médio. Para quem concluiu, tira o benefício. Deveríamos usar esse recurso para a inserção produtiva dele. É claro que, para o jovem que não concluiu, é um incentivo para continuar estudando. Mas, se ele parar de estudar porque concluiu, não poderia perder o benefício.
Seria um incentivo ao contrário, nesse caso.
Exato. Outra coisa: a ideia de incentivar o esporte e a ciência é muito boa, mas fazer isso baseado apenas em olimpíadas nacionais não vai servir muito como um incentivo e vai tirar todo o poder das escolas. O cara que ganha a olimpíada de matemática não precisa de incentivo, tem de dar o incentivo para aquele que se esforçar. Seria melhor dar uma cota de prêmios para cada escola brasileira, de tal maneira que ela vai eleger quem são os alunos que colocaram mais esforço e que se dedicaram mais para melhorar o seu aprendizado ou melhorar o seu desempenho esportivo.
No Rio Grande do Sul, um estudo encomendado pela Secretaria da Educação identificou uma defasagem muito grande no aprendizado de língua portuguesa e matemática, que terá de ser corrigida com aulas de reforço, para não deixar ninguém para trás. Além desse problema, há os adolescentes que não pretendem retornar à escola após a pandemia: a evasão deve crescer. De que forma os governos locais podem fazer com que os que não aprenderam acompanhem os demais?
É preciso dar todo o incentivo para os jovens voltarem para a escola. A escola tem de saber acolher jovens com o mais variado déficit de aprendizado. E o jovem tem de entender que qualquer que seja o déficit, a escola vai ajudá-lo. Em cima de tudo isso, tem de ter um programa de bolsa de estudo. Não um prêmio para o melhor aluno, mas um incentivo para quem não quer voltar. E, de novo, tem de descentralizar, e não criar programas federais. Com o dinheiro federal, chegar para uma escola e dizer “você tem cem bolsas aqui, e vai dar para os alunos que mais estão precisando de um incentivo”. Para essas gerações que se formaram no ano passado e neste ano, temos de dar formação intensiva nos próximos anos, em um horário alternativo, com um currículo atraente.
Há algum Estado em que isso esteja sendo feito e que possa servir de exemplo?
Não sei, mas talvez porque eu não tenha prestado atenção. Por enquanto, os Estados estão muito mais preocupados em trazer para escola quem está em idade escolar. Mas o 4º ano do Ensino Médio, que vários Estados têm considerado, é um caminho nessa direção. Não é uma coisa compulsória, só que o aluno percebe: “Com o que eu me formei, não vou ter uma nota razoável no Enem, não vou entrar na universidade”. Agora, esse 4º ano estará lidando com pessoas que já se formaram no Ensino Médio, então os incentivos, a organização, os horários terão de ser diferentes. Será uma educação voltada para adultos.
Não há saída para a pobreza onde o pobre é anônimo. Precisa ter um agente ali ao lado dele para entender qual a razão da pobreza dele. Não há solução para a pobreza que não seja profundamente local.
Os problemas atuais na formulação das políticas de combate à pobreza são de ordem técnica ou política?
A política social precisa ser focalizada ao pobre, mas não adianta só saber quem é pobre, pegar a digital e mandar o dinheiro para ele. Precisa conhecer individualmente quem é pobre, entender por que é pobre e ter um canal para fazer as coisas chegarem nele, com programas locais que resolvam o problema da pobreza. A política brasileira atual usa muito pouco a gigantesca capilaridade do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), com os Cras. Isso é um erro técnico ou político? Não sei.
Estamos em um momento de inflação elevada, que atinge mais os pobres. Junto do Auxílio-Brasil, o governo quer criar um remendo, que é o vale-gás para as pessoas mais carentes. Corremos o risco de voltar a ter aqueles vários auxílios ao invés de um programa consistente?
A gente está voltando lá atrás, porque já existiu o auxílio-gás. Resolvemos isso com o Bolsa Família. Essa história de ter vários programas é uma coisa na qual a gente não pode entrar. É estabelecido no mundo inteiro que uma estrutura com múltiplos programas sempre dá errado. Transferência de renda é muito melhor do que qualquer transferência de bens, então não devemos entrar nessa história de botijão de gás.
Qual seria o valor adequado para o Auxílio Brasil?
Esses valores são arbitrários. Por exemplo: com R$ 200 per capita uma família consegue viver? Depende. Se tem alguém com doença crônica, qual a composição etária dessa família, onde ela vive… Temos de ter como meta olhar para o artigo 6º da Constituição, que fala dos direitos sociais, e garantir que os brasileiros tenham aqueles direitos. O Brasil deve fazer como no caso da vacina: organizar a fila. O primeiro passo seria garantir, por exemplo, que ninguém viva com uma renda menor do que R$ 200. Com R$ 20 bilhões, bem focalizados, isso é possível. Então vamos organizar a fila.
De que forma?
Pega os 15% mais pobres e dá a garantia de R$ 200 per capita para todo mundo. O Bolsa Família hoje é de R$ 89. Mas eu preciso focalizar, então vou ter de tirar daqueles que não são tão pobres e dar para aqueles que são mais pobres. Ou seja: um Bolsa Família que dá mais para quem mais precisa, mas não dá nada para quem precisa menos. Vamos primeiro resolver as necessidades mais básicas de quem mais precisa. Quando tivermos mais dinheiro, vamos subindo. Quer subir (o gasto) para R$ 100 bilhões? Nada contra. Vamos desenhar um programa. Mas a sociedade brasileira tem de decidir quanto que ela quer dedicar ao alívio da pobreza. R$ 30 bilhões ou R$ 40 bilhões e gastar R$ 60 bilhões na inclusão produtiva. Dar às comunidades a chance de oferecer oportunidade e, portanto, a comunidade vai ter resolutividade na solução da pobreza. O problema brasileiro é menos gasto e mais organização da fila.
Nesse clima de campanha permanente, o que deve ser cobrado dos futuros candidatos à Presidência em relação às propostas de combate à pobreza?
A primeira coisa é uma política de combate à pobreza que volte ao Brasil Sem Miséria, que tinha três grandes pilares: alívio da pobreza, garantia de direitos sociais básicos e inclusão produtiva. Se o discurso não for compatível com o Brasil Sem Miséria, não é um discurso razoável. O problema é a falta de interação. O candidato que falar em políticas federais está fora de rota, porque as políticas vão ter de ser implementadas localmente. A gente tem de acreditar na comunidade e nos governos locais. Se você não acreditar nos governos locais e na comunidade, você não acredita na solução da pobreza, a pobreza vai continuar.
Na sua opinião, esse tipo de auxílio deveria ser inserido no texto da Constituição Federal ou é mais inteligente deixá-lo na lei ordinária?
Temos de começar a tirar coisas da Constituição, e não colocar. O quanto a gente precisa de programas de combate à pobreza depende muito da conjuntura, do tipo de pobreza e da política que vamos escolher. Temos que deixar que os governos escolham a melhor política. Constitucionalizar isso não é uma boa ideia.
Qual o perfil de ministro da Educação que o senhor gostaria de ver a partir de 2023, considerando que até lá não teremos grandes mudanças?
Difícil de dizer, mas acho que tem de ser um ministro que realmente entenda de educação e que não esteja preso a todas as corporações que envolvem a educação. Nesse momento, teremos de pedir aos nossos educadores muita dedicação e esforço, vai ser penoso. Vai ser um momento em que os educadores brasileiros vão ter de dar mais ao país do que receber, e eles já tinham um discurso histórico de que o país estava em dívida com eles. Precisamos de um ministro que consiga mobilizar a sociedade brasileira e os educadores para a educação. O professor, lá na ponta, tem de se sentir tocado pelo ministro da Educação e dar uma aula melhor, entender que cada aluno ali tem potencial para ser o presidente da República, o governador, um grande empresário, um grande cientista. Precisamos de um ministro inspirador, inteligente, que conheça bem a educação, mas que não vá assumir o cargo para resolver o problema de grupos, e sim para promover o desenvolvimento das crianças. Acho que o Paulo Renato (Souza, já falecido) e o Cristovam (Buarque) não estão muito longe desse perfil. Vocês aí no Rio Grande do Sul têm a secretária Raquel Teixeira, que é uma secretária fantástica. Ela tem um pouco esse perfil, seria uma boa ministra da Educação. Vocês estão em boas mãos.