Apesar das dificuldades fiscais vividas pelo país, o debate sobre a criação de um programa permanente de renda básica passa a ganhar força entre políticos e economistas. No Congresso, parlamentares tentam levar adiante projetos para garantir auxílio a camadas desfavorecidas da população no pós-pandemia. A discussão leva em conta a escalada do desemprego em meio à crise do coronavírus, que tende a acentuar a desigualdade social no Brasil.
O avanço de um programa nessa área, contudo, esbarra em incertezas neste momento. Economistas ponderam que ainda não existe uma definição sobre o número de pessoas que deveriam ser beneficiadas pela iniciativa. Tampouco há consenso sobre a forma de financiá-la.
Na teoria, a renda básica permanente serviria como continuação do auxílio emergencial de R$ 600 costurado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia. Segundo a Caixa Econômica Federal, 59 milhões de brasileiros foram considerados elegíveis para receber o suporte público. O auxílio tem validade de três meses, mas os efeitos da crise devem ser sentidos por mais tempo. Por isso, economistas consideram importante a criação de novo benefício.
— A situação fiscal já era desconfortável no país antes da pandemia. Agora, não houve jeito, tivemos de elevar os gastos, só que não há tendência de estabilização da dívida pública até 2030. Então, a renda básica deveria ser acompanhada por outras ações que busquem elevar receitas e conter despesas. A discussão ainda está incipiente — afirma o pesquisador Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).
Entre os projetos já apresentados, está um do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). A proposta é de concessão de renda no valor de meio salário mínimo por mês, mais um quarto de salário por criança ou adolescente menor de 18 anos. Em nota, a assessoria do parlamentar informa que o benefício utilizaria "critérios similares" aos do auxílio emergencial.
Professor da Escola de Negócios da PUCRS, o economista Ely José de Mattos entende que políticas de renda mínima podem ser implementadas no Brasil. Para isso, seria preciso flexibilizar o teto de gastos, que condiciona o aumento das despesas do governo ao comportamento da inflação. Ely acrescenta que a confirmação de uma reforma tributária também seria necessária no pós-pandemia.
— A renda mínima é uma política cara, mas não impossível. Existem algumas possibilidades. A questão é se organizar, seja com emissão de dívida ou com uso de recursos que estão parados em fundos públicos — diz o professor. — Por fim, é preciso pensar em uma reforma tributária de matriz progressiva, já que hoje os pobres pagam, proporcionalmente, mais impostos do que os ricos — emenda.
Ao assumir o Ministério da Economia, em 2019, Paulo Guedes prometeu avanços na agenda de reformas e contenção de gastos públicos, deixada de lado durante a pandemia. Seguir com o aumento de desembolsos após o problema sanitário iria contra o ideário defendido pelo ministro em diversas ocasiões.
Apesar disso, o secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, afirmou na semana passada que o auxílio emergencial "provavelmente" será prorrogado. O programa teria de funcionar sob outro formato, segundo ele.
Professor da Unisinos, Marcos Lélis sublinha que, diante dos estragos da pandemia, não resta outra saída ao governo a não ser elevar despesas. Para o economista, além de um programa de renda básica, o país também precisaria de pacote de obras públicas em infraestrutura. Mesmo com as dificuldades fiscais, o investimento na área serviria para estimular a geração de empregos e, assim, diminuir o número de dependentes da transferência direta de recursos do governo.
— A renda básica, sozinha, não é suficiente. Também é preciso criar condições para que as pessoas consigam deixar o programa e encontrem emprego com a reativação da economia. A questão é saber quantas estariam aptas a receber o benefício — comenta Lélis.
Devastação de empregos
O debate sobre a criação de programa de renda mínima no Brasil ocorre no momento em que os impactos do coronavírus começam a ser dimensionados no mercado de trabalho. Em abril, o país perdeu 860,5 mil empregos com carteira assinada. Trata-se do pior saldo para o mês desde o início da série histórica do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), divulgado pelo Ministério da Economia. As estatísticas estão disponíveis desde 1992.
No Rio Grande do Sul, a situação não é diferente. Em abril, o Estado fechou 74,6 mil postos formais. Também foi o pior desempenho da série histórica regional.
No último dia 21, o governador Eduardo Leite afirmou que o Palácio Piratini estuda possíveis fontes de financiamento para eventual transferência de renda a famílias carentes. Ainda em estruturação, o programa estadual deve entrar em vigor a partir de julho, segundo previsão feita nesta segunda-feira (1º) por Leite.
Em 2019, antes da pandemia, o deputado estadual Valdeci Oliveira (PT) apresentou projeto para criação de renda básica permanente no Estado. Neste ano, em razão dos efeitos da covid-19, o parlamentar lançou proposta de auxílio emergencial no Rio Grande do Sul, que amarga dificuldades fiscais, a exemplo do país.
A deputada Luciana Genro (PSOL) também apresentou projeto sobre o tema. A intenção é instituir uma renda básica emergencial com recursos do Fundo de Reaparelhamento do Poder Judiciário (FRPJ) e do Fundo Notarial e Registral (Funore), vinculados ao orçamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS).
— Esta é uma discussão que ganha corpo não só aqui, mas no mundo inteiro. Sabemos que o dinheiro é pouco, mas não podemos ficar de braços cruzados com pessoas morrendo de fome — afirma Oliveira.
No Exterior, um dos países que lançaram programa de renda básica é a Espanha. Na sexta-feira, o governo local aprovou a criação de benefício no valor de 462 euros (quantia equivalente a R$ 2,7 mil) para a população de baixa renda, devido aos impactos do coronavírus.
Segundo o professor de comportamento organizacional e inovação Ali Fenwick, da Hult International Business School, a renda básica universal busca reduzir a desigualdade social. O especialista, entretanto, pondera que a solução não pode ser implementada "rapidamente" em todos os países, por conta de "complexidades" registradas em cada região.
— Os propositores da renda básica universal sugerem que não apenas os governos banquem essa renda, mas que empresas contribuam com um dividendo social como parte do retorno para a sociedade — disse o especialista, em entrevista à colunista de GaúchaZH Marta Sfredo.
Entenda o assunto
- Com o aumento do desemprego em razão do coronavírus, ganhou força no país o debate sobre a criação de um programa de renda mínima voltado a camadas desfavorecidas da população no pós-pandemia. Parlamentares se articulam no Congresso para tentar levar a ideia adiante.
- A intenção seria criar um suporte para quem ficar sem renda devido à crise. Poderia representar uma espécie de ampliação do auxílio emergencial de R$ 600, que tem validade de três meses. Contudo, ainda há uma série de incertezas no ar.
- Até o momento, não existe uma definição sobre a forma de financiar o programa, nem sobre o número de pessoas que poderiam ser beneficiadas.
- Ao assumir o Ministério da Economia, em 2019, Paulo Guedes prometeu avanços na agenda de reformas e contenção de gastos públicos, deixada de lado durante a pandemia. Seguir com o aumento de desembolsos após o problema sanitário iria contra o ideário defendido por Guedes.
- No último dia 28, o secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, afirmou que o auxílio emergencial "provavelmente" será prorrogado. No entanto, o programa teria de funcionar sob outro formato, segundo ele. A Caixa Econômica Federal informou que 59 milhões de pessoas foram consideradas elegíveis a receber o suporte de R$ 600 durante a pandemia.